sexta-feira, 22 de agosto de 2014

PROJECTO ARGUS, PROMESSA DE UM BOM LIVRO, ENQUANTO A GUERRA ACONTECE

...No 61 da Rua Frei Tomé de Jesus o silêncio imperava. Catarina encontrava-se no seu quarto, embrenhada na fabulosa e sedutora imaginação de um autor desconhecido, que fosse quem fosse, escrevera o livro « Contacto ». Ela lia deitada na cama, bem aconchegada pelo calor macio dos cobertores, caricia muito ansiada num Novembro muito frio.
         Era Sábado à noite. Só ela estava em casa. Os pais tinham ido passar a noite a uma quintarola de pessoas amigas, nos arredores de Coimbra, lá para os lados de S. Martinho do Bispo. Claro está que a tinham convidado, mas não, aquela pequena quinta não a seduzia em nada. No seu quarto, no seu pequeno grande mundo, sentia-se muito feliz. Ali residiam as suas tristezas, as suas alegrias, os seus gostos e desgostos, as suas certezas e incertezas, os seus pensamentos sérios, os seus devaneios, o amor de Álvaro expresso nas cartas escritas por ele, que ali no seu quarto guardava. Havia quatro dias que não recebia nem uma letrinha dele. Como isso a fazia sentir-se vazia! Decerto que tivera qualquer coisa para fazer, que o obrigava a afastar-se de uma folha de papel. Como estava a ser tola! Era claro que ele não estava em Angola para escrever cartas, mas... que malvadez o Estado fazia aos casais apaixonados, quando  arrancava os namorados dos braços um do outro e os afastavam por distâncias inimagináveis, durante eternidades, que os angustiavam, desgastavam e envelheciam. Catarina tomou uma expressão de preocupação. Seria possível que Álvaro viesse mais velho? Bem, mais velho viria!  Devia também vir mais tisnado, bronzeado pelo sol africano. Mas vinha mais maduro, mais homem. Deus permitisse que não viesse transformado num durão, como já ouvira muitas histórias de rapazes, que após cumprirem o serviço militar no Ultramar, vinham metamorfoseados em pessoas de coração frio, sem sentimentos de ternura, sempre prontos para uma boa briga. Mas não, com Álvaro tinha a certeza de que nada disso se iria passar, porque ele tinha a capacidade natural de conjugar harmoniosamente o verdadeiro homem que havia em si, com a delicadeza de espirito, a sensibilidade às coisas belas, o saber dar e receber amor.
         O livro mantinha-o aberto, virado com as páginas para baixo, poisado no ventre. A mente divagara um pouco, sinal de que o cansaço e o sono reclamavam aquele momento. Pegou no livro de capa preta e leu de novo as últimas linhas da penúltima página a que chegara. Era a página 80.- « ...anómala fonte rádio intermitente em ascensão recta 18h 34m, declinação mais 38 graus 41 minutos, descoberta por exploração sistemática do céu pelo Argus... ». Sem dúvida o projecto Argus detectara qualquer coisa no céu. O romance prometia. Olhando para o relógio reparou que já passava da uma hora da manhã. Fechou o livro, tendo o cuidado de colocar o marcador de papel amarelo na página 80, e poisou-o na mesinha de cabeceira. Seguidamente embrenhou-se no calor dos cobertores, deixou que toda a cama a envolvesse, apagou a luz e imperceptivelmente começou a escorregar para o mundo dos sonhos, o mundo onde muito se faz sem que disso se tenha consciência...(em continuação, pág. 86- ex. XXVI)

in Visitados
Novembro/1999
        


sábado, 16 de agosto de 2014

SOLDADO MILHÕES, EM ARMENTIÉRES...ESSE HERÓI ESQUECIDO

Durante uma semana, no mês passado, nos programas da manhã, a Rádio Renascença dedicou pequenas rubricas ao centenário da eclosão da I Grande Guerra, que aconteceu no dia 28 de Julho de 1914. E fê-lo, com a sensibilidade histórica de quem respeita a memória dos seus combatentes.
E confesso que enriqueceu os meus conhecimentos sobre o envolvimento de Portugal neste conflito, através do Corpo Expedicionário Português. E conseguiu-o, porque muito embora há muito que dedique a minha atenção á última batalha em que tropas portuguesas se viram envolvidas- a Batalha de La Lys, também conhecida por Armentiéres, nos pântanos da Flandres, em 9 de Abril de 1918, eu nunca tinha ouvido citar o nome de um herói nacional, completamente esquecido, do qual, esta semana a Rádio Renascença trouxe a memória á luz do dia- o soldado Aníbal Augusto Milhais, que ficou conhecido como o «Soldado Milhões».
O Soldado Milhões, nesse trágico dia 9 de Abril de 1918, em que vários milhares de soldados portugueses sucumbiram á avalanche alemã, completamente sozinho na sua trincheira, apenas acompanhado pela sua metralhadora Lewis, enfrentou as colunas alemãs, retardando o seu avanço, o que permitiu a retirada a muitos seus camaradas portugueses e também a soldados ingleses, para as posições defensivas. Deambulando pelas trincheiras, o Soldado Milhões salvou ainda um médico escocês de morrer afogado num pântano no local da batalha, médico este que deu conta do heroísmo do nosso soldado, natural de Valongo- Murça, em Trás-Os-Montes, ao exército aliado.
O Comandante Ferreira do Amaral diria, mais tarde, que o Soldado Aníbal Milhais, embora sendo «Milhais», valia por Milhões, daí a sua alcunha.
O Soldado Milhões é o único militar português, sem qualquer patente, ainda hoje, condecorado com a Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito, por bravura demonstrada no campo de batalha.
Aníbal Augusto Milhais faleceu a 3 de Junho de 1970.

De um outro português, 96 anos depois, merece bem esta simples homenagem.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

PELO POVO CHORAM OS CARVALHOS

...Era já noite quando o mouro abandonou o solar. Mais uma vez, entre o fivelas e o mouro ficara selada uma sentença de morte. Entre os dois ficou ainda a convicção de que o pobre povo é destituído de ideias. Erro deles! O povo tem sempre a bolsa vazia, o que não obriga a ter vazia a mente. O povo sofre, o povo chora, mas o povo pensa. E quando o povo, esporadicamente, ultrapassa a barreira do pensamento, quando transforma ideias em actos, surgem as revoluções. Dizia o padre José Soares que " numa boa ou má política está a sorte de um povo". E na vontade do povo está a sorte dos políticos.
Em contraste com as mentes perversas daqueles dois homens, que dominavam toda a herdade Vila de Ló, a natureza corria meiga. Naquele principio de Novembro de 1922, o Outono deleitava as pessoas com a maciez do ar. Mesmo na dura labuta da lavoura os homens deixavam-se envolver pelas carícias outonais, pelos sorrisos que a natureza lhes enviava. Viver a mãe natureza, respirar a mãe natureza, tornava de uma certa forma  menos penosa a tarefa de à mãe natureza resgatar o pão.

A mesma mãe natureza que por abandono do homem fizera nascer junto aos seis carvalhos, existentes bem pertinho do Casal das Rãs, um espesso silvado, pintado aqui e ali pelo despontar medroso de uma esquiva rosa ou tímido cravo, memórias antigas do labor de um dedicado jardineiro. E se se estiver bem atento, talvez se adivinhe que os seis carvalhos choram quando o vento outonal desliza pelos ramos nus. Choram os carvalhos a memória do jardineiro. Choram os carvalhos a memória de Vila de Ló...( em continuação, pág. 115, ex. XLII)

in Quando Um Anjo Peca
Março/1998