domingo, 24 de maio de 2015

ENTRANDO NUM DESERTO MENTAL I

...Instalaram-no numa camarata atribuída à 5ª companhia. Serôdio observou atentamente os seus colegas, que como ele se propunham a ser futuros policias. Ficou decepcionado com a observação. Por estimativa, dos quinhentos e setenta guardas provisórios que com ele formavam a primeira escola de alistados de 1983, previa que talvez apenas cinquenta tivessem concluído o liceu. Dos restantes, a esmagadora maioria não teria estudado além da quarta classe. De que falavam eles? Conversavam das suas realidades, que em nada coincidiam com a sua realidade. Ali, ele não ouvia falar do título de um livro, de um estilo musical, do nome de um L.P. Não que fosse desprestigio falar-se de técnicas utilizadas na construção civil, da melhor forma de se conduzir um tractor ou de qual a melhor maneira de se limpar o carburador de um motor. Mas ali, Serôdio desvinculava-se de tudo o que era cultural e isso entristecia-o. No entanto, em muitos desses seus colegas, ele ia descobrindo personalidades simpáticas, de coração aberto a uma boa amizade, o que atenuava a sua tristeza. Com o passar dos meses, independentemente dos desníveis culturais, todos aqueles rapazes iriam formar um grupo coeso. Algumas vezes, à mente de Serôdio, aflorou o pensamento de que um dia viria a comandar os seus actuais colegas. Pura ilusão, como mais tarde constatou, porque veio a compreender que na policia, em oitenta por cento dos casos, não è promovido quem está melhor habilitado nos aspectos intelectual e psicológico, mas antes quem melhor sabe servir, hipocritamente, a falta de moral e de escrúpulos...(em continuação, pág. 82- ex. XXIX)
in Filhos Pobres da Revolta

Março/2003

sexta-feira, 8 de maio de 2015

LUCIUS CORNELIUS SULLA- ROMA, ANO 80 A.C

Nestes tempos, social e economicamente conturbados em que vivemos, momentos que não são estranhos a este nosso adorado Portugal, pois que outros já aconteceram e também foram ultrapassados, cada um de nós (os que pertencemos aos comuns mortais, e porque do Olimpo muito distante é feita a nossa vida, o que determina que estejamos expostos a todas as vicissitudes de que se reveste esta já prolongada crise, que nos provoca uma multiplicidade de problemas humanos, tanto de índole económica como sentimental), faz por tentar ultrapassar esses mesmos problemas, das formas que melhor considera serem as ajustadas para auxiliar na luta.  No que me diz respeito, uma das formas que utilizo é a leitura, muito embora  ler seja um feliz hábito que me acompanha desde a adolescência.
E no manancial de livros já lidos, surgem por vezes verdadeiras preciosidades, tanto pela forma como pelo conteúdo, como «O Ferro Velho» de Anthony Burgess ou «O Espião de D. João II», de Deana Barroqueiro, com a consciência de que mais alguns livros existem nesse lote.
 Neste momento leio 1034 páginas de uma escrita soberba e um conteúdo extraordinário: «O Primeiro Homem de Roma», de Colleen McCullough. Uma viagem fascinante ao senado romano, onde tomamos conhecimento da forma como o senado de Roma funcionava, as intrigas, as traições, as amizades, as alianças que se faziam no seio dos senadores, onde ficamos a conhecer a real magnitude do Império Romano e a forma como se fazia a gestão do poder nas várias regiões ocupadas, onde se incluía a velha Hispânia, principalmente a Hispânia Ulterior  onde nos encontramos neste momento. O enredo passa-se no decorrer do último século antes do nascimento de Jesus Cristo, por volta do ano 80 A.C., numa república cuja figura máxima era o Cônsul, tendo numa fase posterior sido substituída pela figura do imperador. E este livro aborda uma questão, na qual eu já havia pensado: Roma e Itália eram a mesma coisa? Até este período de que trata o romance, não, não eram a mesma coisa, tendo essa questão originado uma guerra no interior da república, pois que os italianos pretendiam a cidadania romana, que lhes foi negada pela maioria dos senadores.
O romance, que tem um conjunto formidável de personagens, baseia-se muito na personalidade e feitos de duas delas: Caio Mário e Lúcio Cornélio Sila.
Surpreendentemente um tema magistralmente abordado e escrito (com um enorme trabalho de pesquisa por certo) por alguém, que, na minha opinião, absolutamente nada tinha em comum com a cultura romana, como era o caso da autora, de nacionalidade australiana, falecida no dia 29 de Janeiro deste ano.

Este livro, uma preciosidade de facto!

sexta-feira, 1 de maio de 2015

TORRES NOVAS, UM PERMANENTE SENTIMENTO PROVISÓRIO

...Já se haviam passado três anos e meio, desde que ingressara na P.S.P. Tivera receio de que, com a dificuldade de memorizar o que lia, não conseguisse ingressar na PSP, tal como lhe acontecera no C.O.M. em Mafra. Mas graças a Deus tudo correra bem. A policia não fora tão exigente como a tropa e ele melhorara imenso no seu problema intelectual.
         Chegara a Torres Novas no dia 24 de Janeiro de 1983. Naquela vila ribatejana estava instalada a E.F.G. (Escola de Formação de Guardas). A escola era um velho edifício restaurado, onde outrora estivera aquartelado um regimento de cavalaria. Estava pintada de cor amarela. A fachada, enorme, pintalgada por inúmeras janelas e portas, sobressaia na massa de casario da vila. Dois canhões do tempo das invasões francesas, pintados de preto, ladeavam a entrada principal do edifício. Era ali que Serôdio iria passar os próximos cinco meses. Lembrava-se da forma tímida como entrara. Afinal estava a entrar num departamento policial, coisa de que o povo português fugia como o diabo foge da cruz. No entanto, depressa se adaptou  ao ambiente, pois estar ali ou na tropa apenas diferia na cor da farda. Ao passo que em Mafra os recrutas vestiam a farda de trabalho número três, de cor verde, em Torres Novas envergavam uma farda de trabalho número três, de cor azul.
         Ainda nesse ano ele pôde constatar que a vida militar afinal diferia em muito da vida policial. Mas, e enquanto fosse guarda provisório, viveria na enganadora sensação de que voltara à tropa.
         Tal como no exército, por ali circulavam homens com patentes idênticas: segundos e primeiros sargentos; alferes, tenentes e capitães. Apenas os nomes mudavam. Respectivamente aos anteriores, passavam a chamar-se então segundos e primeiros subchefes, subchefes ajudantes, chefes de esquadra e segundos comissários. Havia no entanto diferenças enormes. Enquanto que na tropa um galão de alferes ou dois galões de tenente eram utilizados por rapazes novos, na policia o galão de subchefe ajudante ou os dois galões de chefe de esquadra eram atribuídos, na maioria dos casos, a homens velhos e quase em fim de carreira.

         Assim como no exército, os quinhentos e setenta novos guardas provisórios foram divididos por companhias e subdivididos em pelotões. As primeiras formalidades, em consonância com o que se praticava na tropa, foram preencher papelada e tirar a primeira fotografia fardado. Ao contrário do que lhe acontecera com a farda do exército, dentro da farda de policia Serôdio sentiu-se pateta. E depois que viu a fotografia do seu rosto, encimado por aquele abominável boné, sentiu tristeza por ir abraçar aquela profissão. Mas a vida tinha de ser ganha de alguma forma...(em continuação, pág. 81, ex. XXVIII)
in Filhos Pobres da Revolta

Março/2003