domingo, 29 de julho de 2018

UMA HISTÓRIA DE GUERRA CHAMADA SÃO


Mais uma reunião de um grupo de amigos, todos a chegarem ao topo da escadaria dos sessenta, numa primeira Sexta-Feira do mês (igual a todas as outras primeiras Sextas-Feiras em que ali se reuniam), conversando animadamente sobre as aventuras e desventuras da vida (tantas para contar), e uma senhora, no mesmo topo da escadaria dos sessenta, sempre muito bem disposta, que por ali passa todas aquelas mesmas Sextas-Feiras, a quem todos chamam «São», a caminho da sua banca da fruta no mercado ali perto, que, no entanto, naquela Sexta-Feira, contrariamente às outras Sextas-Feiras, apresenta no seu rosto uma profunda expressão de tristeza.
- Que foi São, que aconteceu?- pergunta o grupo de amigos, pronto para, de alguma forma, minimizar a tristeza naquele rosto tão comunicativo e contagiante de alegria.
            E a São, a vendedoura de fruta, contou a sua pequena história.
            Há muitos anos namorou um rapaz, o Manuel, um namoro mesmo de paixão, um namoro que se via mesmo ir dar num casamento longo e sempre muito feliz. Num final de tarde o Manuel abordou-a e disse-lhe, de supetão, que ao outro dia iria embarcar no navio Vera-Cruz para África, para a guerra do ultramar. Nessa noite, ela e o Manuel aventuraram-se muito para além dos simples beijos- a noite mais feliz da sua vida.
            O Manuel partiu…e pouco tempo depois morreu despedaçado por uma mina, numa desventurada picada de África.
            A São ficou solteira. Casou com a memória do Manuel. E naquela Sexta-Feira, em que trazia o rosto mergulhado em sofrimento, fazia anos, muitos anos, que o pai do Manuel lhe dera a notícia da morte do seu filho na guerra do ultramar.
            Não, não conheço nenhum destes amigos que constituíam aquele grupo, nem tão pouco conheci aquela «São», nem sei se esta história é verdadeira, porque não fui eu que a criei. Apenas posso dizer que foi com imenso prazer que li a crónica intitulada «A importância de se chamar São», no Diário de Aveiro, da autoria do senhor Carlos Campos, de quem tenho lido outras saborosas crónicas, mas que esta, por tratar de um tema que me é tão sensível, a guerra do ultramar, achei merecedora deste destaque.
            Muitas «Sãos» como aquela existirão ainda por este Portugal, de Norte a Sul, dramas reais, de uma juventude sofredora, histórias que o tempo vai apagando, passados sem grande futuro na memória de um povo.
            Aquela crónica preencheu alguns minutos de uma leitura emocionada. Um verdadeiro quadro da vida de um povo.

domingo, 22 de julho de 2018

EM ALFEIZERÃO UMA CAIXA DE SURPRESAS


A Teresa, uma simpática senhora de meia-idade, que na medida do possível ajudava o padre José Soares, cozinhara para aquele almoço um suculento arroz pardo. Regado com bom vinho tinto, o almoço estava divinal, ajudando assim a que a frigidez, que a princípio existira entre os dois homens, acabasse por desaparecer.
- Aqui nesta sala, muitas vezes almoçou comigo o morgado Vitorino- começou por dizer o padre José Soares.
- O morgado Vitorino, dono da herdade que o senhor Barreto Raposo comprou - acrescentou Américo Afonso.
- Dono da herdade que o Barreto Raposo ocupa- corrigiu o padre- parecem dizer os factos que a comprou, mas eu recuso-me a acreditar nisso.
- E porquê?
- Porque fui eu que eduquei o Vitorino. Eu era o seu conselheiro. Ele não tinha intenção de vender a herdade porque ela era a sua vida. Mas mesmo que tivesse intenção de o fazer, tinha-me transmitido essa vontade. Essa venda, essa transmissão de propriedade, foi forjada.
- Eu concordo consigo senhor padre - disse o advogado - só numa situação de efectiva instabilidade, como foi a república substituir a monarquia, é que esta venda pôde ter lugar, através de um simples documento. Eu trago-o aqui copiado.
- Não me diga! Conseguiu isso?
- Fui na qualidade de advogado, tutor do pequeno Carlos.
- Esse é um outro assunto delicado - disse o padre José Soares.
- Qual? - perguntou Américo Afonso.
- O nome do pequeno. Ele não se chama Carlos Avilar. O seu nome é Leandro Vital de Lourena Fernandes.
- Como? Leandro? Esta história é uma caixa de surpresas.
- E ainda não acabaram senhor doutor. Se realmente defende os interesses do Leandro, não pode ficar só por aí. Tem também de defender os interesses do irmão.
- Como assim? - perguntou Américo Afonso, com semblante de grande confusão.
- O morgado Vitorino tinha dois filhos, o Leandro e o Helder. São gémeos. Como pode calcular, aqui em Alfeizerão, vive um rapazinho com treze anos de idade, que deve ser uma réplica perfeita do Leandro. E digo deve, porque eu não vejo o Leandro há doze anos. O senhor doutor, se quiser, poderá conhecer o Helder.
- Olhe senhor padre, eu já não sei que lhe diga. A minha Luísa quando souber disto tudo, não sei como reagirá. Será melhor nem lhe dizer nada agora. Está para breve o nascimento do nosso filho. Mas diga-me senhor padre, o senhor Barreto Raposo sabe alguma coisa sobre a existência das duas crianças?
- Não, este é um segredo que Alfeizerão guardou muito bem guardado. Eu e a Lucinda...
- Quem é a Lucinda?
- A Lucinda está para o Helder como a D. Luísa está para o Leandro.
- Percebo. E a mãe dos pequenos quem é?
- A mãe dos gémeos foi a saudosa Marta. Morreu ao dá-los à luz.
- Meu Deus, os miúdos estavam predestinados ao infortúnio- disse Américo numa reflexão sentida - o senhor padre falava na Lucinda... (em continuação, ex. LIII)

in Quando Um Anjo Peca

Março/1998

domingo, 15 de julho de 2018

UM GRANDE EXEMPLO DE SOLIDARIEDADE NUMA GRUTA INÓSPITA DA TAILÂNDIA


Durante cerca de três semanas o mundo quase suspendeu a respiração de ansiedade e expectativa.
Na longínqua Tailândia doze miúdos, praticantes de futebol, na companhia do seu treinador, a 22 de Junho faziam uma incursão à natureza, diria uma brava e inóspita natureza. Com o início da época das monções (de que nos fala Rui Veloso no seu álbum Auto da Pimenta), foi aquele grupo surpreendido por chuva bastante intensa, pelo que se refugiou numa gruta…e desapareceu, muito embora ainda não tenha sido explicado como tal aconteceu.
A partir desse momento assistiu-se à mobilização do mundo no sentido de o grupo de jovens e o seu treinador ser encontrado, numa imensa gruta, grande parte dela submersa em alguns metros de profundidade da água das chuvas. Passados alguns dias, e quando o cepticismo em relação à descoberta dos jovens se começava a instalar, eis que um grupo de mergulhadores britânicos conseguiu encontrar os jovens e o treinador, vivos, numa concavidade localizada bem na profundidade da gruta.
Graças à união dos mergulhadores tailandeses (com a ocorrência da morte de um deles, na preparação das condições sub-aquáticas para que o resgate viesse a ser possível) e de outros de algumas nacionalidades, foi possível o resgate daquelas treze vidas.
Mas que enorme momento para a humanidade! E quando emprego o termo «humanidade» dir-se-ia ter-se tratado do resgate de centenas ou mesmo milhares de pessoas, e não apenas de treze, mas quando a vida humana é criminosamente desvalorizada pela acção de comunidades humanas e não alienígenas, como miseravelmente temos assistido nesta nossa Europa, Médio Oriente e Estados Unidos, é motivo de enorme alegria ver o mundo mobilizar-se para salvar apenas treze pessoas.
O exemplo da Tailândia é de guardar no mais profundo dos nossos corações!