...A minha vida, em Coimbra, era regulada pelo padrão eclesiástico do convento de Santa Cruz. Embora não tivesse intenções de me dedicar à vida do sacerdócio, tinha de viver consoante as regras pelas quais era regulamentada a vida dos frades. Enquanto o reino lambia as feridas deixadas pelos franceses e o povo tentava sobreviver numa terra devastada, a minha existência como que decorria dentro de um casulo, preocupando-me apenas em absorver conhecimento, completamente abstraído das convulsões que, no exterior do convento, tinham lugar.
Durante esses oito anos fui visitar os meus pais apenas em quatro ocasiões. Em cada uma delas, os meus pais encontravam-me sempre diferenças: mais alto e mais homenzinho. Eu gostava de apreciar o reboliço que ia por Malhal de Sula, e já com quinze anos, numa das vezes que visitei os meus pais, quis participar nos trabalhos da lavoura, quis ter a noção do que seria ser lavrador como o meu pai, pretendi, enfim, dar-me a conhecer àquele chão que um dia iria ser meu. Mas o meu pai disse-me, com um sorriso, que os doutores não tinham sido feitos para amanhar terras. Não queria que eu, ao pegar num cabo de enxada, rebentasse mãos tão mimosas, sem calosidades, mãos que haviam sido feitas para apalpar barrigas de gente e mexer em instrumentos complicados.
E eu nunca soube o que custou fazer de Malhal de Sula uma terra fértil.
Entrei finalmente na universidade. Ao despedir-me de frei Lourenço, com os olhos rasos de lágrimas, não tinha a verdadeira noção do quanto a minha vida iria mudar.
No lugar em que me encontro já algumas vezes me cruzei com frei Lourenço. Faz parte do meu grupo espiritual. Como frade, viveu ele a sua última experiência terrena. Nessa época, frei Lourenço foi uma pessoa muito influente na minha vida, a quem devi a base sólida da minha formação. Pena foi que a causa que abracei então, o liberalismo, tivesse considerado frei Lourenço uma inutilidade. Mas, mais uma vez, liberalismo era coisa de política, e como a política foi criada pelos homens, logo o liberalismo não podia ser perfeito.
Ao entrar na universidade, tomei contacto com uma cidade que desconhecia, embora lá vivesse havia oito anos.
Através da velha universidade de Coimbra tive acesso a toda uma cidade que fervilhava de paixão, romantismo, tradição. As tricanas do Mondego inundaram de beleza a minha vida. Por duas ou três dessas tricanas bateu fortemente o meu coração apaixonado, em noites de lua cheia, tão próximo que estava do astro brilhante, num céu de escura magia, sentado numa lapa do Penedo da Saudade; senti o encanto das ruas empedradas e estreitas da Alta, como a Rua da Matemática ou a Rua da Ilha, paredes meias com a imponente Sé Velha; o Mondego, cujas águas feitas de saudade, me transmitia uma melancolia saborosa, quase me transformando em poeta. Rio que dá liberdade à mente, a solta, a faz vibrar, a aproxima do que mais belo há no ser. Não há no mundo outro assim; e a sempre eterna rivalidade entre nós, estudantes de Coimbra, e os futricas, potenciais maridos das tricanas. Quantas disputas foram resolvidas a varapau! Cabeças rachadas, sangue que corria, a capa negra rasgada, a tradição que se impunha…e os ecos do liberalismo, que varreram a velha academia com um ímpeto avassalador. Ali não existia um único coração que não fosse anti-britânico. Sentia-se que as invasões francesas eram coisas do passado, como se tivessem ocorrido há muitos anos. Impunha-se… exigia-se o regresso de El-Rei D. João VI ao reino. E o rei acabou por vir… e com ele, veio a guerra…uma vez mais...(em continuação, pág. 18, ex. VIII)
in ALMA DE LIBERAL
Junho/2009
quarta-feira, 8 de dezembro de 2010
sexta-feira, 26 de novembro de 2010
UMA ADVERTÊNCIA DE HÓRUS
...O palácio do faraó estava mergulhado na semi-obscuridade. O sol há muito que se pusera. Em vários pontos do palácio ardiam archotes, que transmitiam a pouca luz com que o enorme palácio era iluminado. Amenhotep, o quarto, andava embrenhado com os preparativos da coroação da sua rainha. Enquanto o não fosse, Nefertiti dormiria num quarto bem afastado do dele. O faraó escolhera algumas aias, filhas de altos funcionários do reino, vizires e hatiuás, para iniciarem Nefertiti na sua futura condição de rainha, ensinando-lhe os preceitos básicos da realeza. O palácio ficara inundado por esbeltas ninfas, que enchiam o palácio real de gargalhadas doces, bem femininas, transmitindo ao faraó um enorme sentimento de volúpia. E fora com esse sentimento que o faraó se lançara para a sua cama, ouvindo, ao longe, as aias que brincavam entre si, rindo… preenchendo a sua bela Nefertiti de sentimentos superiores, preparando-a para a coroa. Lá fora o povo cantarolava, os burros zurravam, o Nilo corria belo, as brisas do deserto passavam quentes, o Egipto acontecia…e a sua futura rainha ali estava, tão perto dele, pronta a fazê-lo feliz, a ajudá-lo a tornar-se um faraó resplandecente, poderoso, dono de tudo e de todos, do povo, do Nilo, do deserto, das pirâmides, da história… dos deuses!
Sim, claro, lá havia alguém mais poderoso no Egipto do que o faraó? Amon-Rá?! Balelas!! Ia encerrar o templo de Amon em Tebas! E o que faria com o Sumo-Sacerdote estrangeiro? E se fizesse dele um escravo!? Considerava ser uma boa opção!
E estendido na sua cama, com as mãos cruzadas por debaixo da cabeça, sentindo a brisa quente do deserto que entrava pela janela do seu quarto, o faraó sorria.
- Achas que tens motivos para sorrir?
Ao ouvir a voz que fizera tal pergunta, o faraó estremeceu de susto. Um archote existente ao fundo do quarto dava pouca luminosidade. Por essa razão o faraó saltou da cama e procurou a sua adaga. Foi então que viu uma figura tomar forma mesmo ao fundo da sua cama. Era o deus Horus, que o fitava com o seu olhar penetrante de falcão.
- Deus Horus… que susto me pregaste; mas a tua presença consola-me.
- Estás satisfeito por me veres?- perguntou Horus.
- Bastante! É bom termos na nossa presença o nosso protector- respondeu o faraó.
- Pouca protecção Horus pode dar ao faraó, se o faraó não se souber proteger a si próprio- retorquiu o deu Horus, dando ás palavras uma entoação de impotência.
- O que queres dizer com isso?- perguntou intrigado o faraó.
- Sabes Amenhotep, o quarto, na verdade a minha função é dar protecção espiritual e intelectual aos faraós, a ti. É o que estou a tentar fazer neste momento. Mas tens de ter algo bem presente: eu devo lealdade ao deus supremo Amon-Rá. Não posso pois proteger quem lhe não tem o devido respeito.
- Estás a insinuar que eu faltei ao respeito a Amon-Rá?
- Nefertiti, a sacerdotisa, vive no teu palácio?- Perguntou Horus.
- Sim, vive- respondeu o faraó secamente.
- Então eu não insinuo, eu afirmo que tu faltaste ao respeito a Amon-Rá.
- Como pode Amon-Rá dar-se ao direito de se sentir ofendido por eu lhe ter subtraído uma sacerdotisa, quando ele escolheu para seu Sumo-Sacerdote um estrangeiro!?
- Atenção Amenhotep, o quarto, pondera melhor o que dizes. Tu não estás a falar de um mortal, tu estás a questionar a conduta do deus supremo do Egipto- disse Horus em tom de desagrado.
- Tu estás equivocado, Horus. O deus supremo do Egipto sou eu.
- Cala-te desgraçado- disse Horus rispidamente- Amon-Rá é a continuação do grande criador da terra egípcia, Aton. Ao lado de Amon-Rá tu mais não és do que um grão de poeira.
- Horus, estou a ver que és muito mau diplomata. Se vieste com o propósito de me convenceres a devolver Nefertiti, só fizeste disparates.
- Assim que me acerquei do teu palácio, pressenti nos fluidos que emanas o fracasso da minha missão; mas tinha de te olhar nos olhos. Não tens perfil algum para faraó. Em ti apenas existe prepotência e arrogância. Mas se pensas que vais conseguir reinar sem a protecção de Amon-Rá, sem o apoio de MassiftonRá, prepara-te para seres o faraó dos gafanhotos do deserto, porque a terra egípcia te renegará.
- Vai-te Horus, rosto de falcão- berrava o faraó- eu sou descendente de uma alta linhagem, do mais puro e valioso que o Egipto jamais viu. Nas minhas veias corre o sangue que deu vida ás imponentes pirâmides…
- Amenhotep, o quarto, tu não passas de um momento de criação dos deuses; apenas és um sopro da sua vontade- disse Horus, ao mesmo tempo que esticou em frente, com rapidez, os seus braços musculados, originando uma onda de choque, que propagando-se pelo ar, bateu em cheio no peito do faraó, fazendo com que este fosse violentamente arremessado ao chão- vês como eu te domino tão facilmente- disse Horus, desaparecendo.
- Nefertiti será rainha no Egipto, anuncia-o a Amon-Rá; e diz-lhe também que o Sumo- Sacerdote estrangeiro vai ser meu escravo pessoal. Faço questão disso… e Amon-Rá que o impeça se for capaz. Eu sou deus na terra. Eu sou o Egipto- gritava o faraó, enquanto se levantava, humilhado.
- Divino senhor, em que te posso servir?- disse um escravo do palácio, que alertado pelos gritos do faraó, acorreu em seu auxílio.
- Desaparece daqui imbecil, antes que eu próprio te corte a cabeça- respondeu o faraó ao solicito escravo.
Horus se fora mas ainda ouvira as palavras gritadas do faraó. Levava o coração muito triste. Pela primeira vez, desde que Aton projectara o Egipto, de MassiftonRá saíra uma péssima decisão, que dava pelo nome de Amenhotep, o quarto...(em continuação, pág. 37, ex. XII)
in A CAUSA DE MASSIFTONRÁ
Novembro/2005
terça-feira, 23 de novembro de 2010
UM ERRO NA SELECÇÃO NATURAL DA MAET
Finalmente Amon-Rá saiu da sua profunda reflexão e dirigiu-se para uma zona de MassiftonRá, onde os deuses se encontravam concentrados. Amon-Rá dirigiu-se ao ancião deus Aton.
- Aton, na tua infinita experiência, algum momento houve em que te tenhas sentido menos capaz de lidar com um problema que os homens te tenham colocado?
Todos os deuses fixaram Amon-Rá com perplexidade. Mas que raio de pergunta era aquela?
- Não Amon- respondeu o deus Aton imediatamente - os homens nunca foram, nem nunca hão-de ser capazes de criar embaraços a um deus. Os homens são um enorme amontoado de carne e ossos, iluminados apenas por uma centelha mental. Ao contrário, o deus, todo ele é mente, propagação constante e infinita de energia; no entanto, quando o Egipto sofreu a invasão dos Hicsos, tenho de reconhecer que tive algumas dores de cabeça, que, bem vistas as coisas, foram resultado apenas de um maior fluxo de trabalho, no sentido em que tive de despender de muita energia para ajudar o faraó a manter intactas as raízes da estrutura mental do Egipto, perante as influências culturais do povo invasor. Mas só isso. Porquê essa pergunta?
- E se esse homem que te colocasse um problema fosse o faraó ? – Insistiu Amon-Rá em questionar Aton.
- Não te percebo Amon. Os faraós não colocam problemas aos deuses. Os faraós anseiam pelas bênçãos dos deuses!
- Então estamos na presença de um faraó que nunca o deveria ter sido- exclamou Amon-Rá.
- Referes-te a Amenhotep, o quarto?- perguntou o deus Aton.
- Exactamente. Amenhotep, o quarto, teve a ousadia de subtrair uma das minhas sacerdotisas do templo de Tebas, e levá-la para o seu palácio. Quer fazer dela a sua rainha.
- Perdão- disse o deus Horus, com a incredulidade estampada no seu rosto de falcão.
- É o que tu ouviste, Horus. O faraó, a quem tu deves proteger e aconselhar, está a cometer esse acto. Foi-me transmitido pelo meu Sumo-Sacerdote Masahemba; e o sifto encarregue de recolher as emanações, apenas encontrou sentimentos de raiva. Teve de sair do templo rapidamente. Eu sei que tenho de tomar uma atitude, mas qual? O faraó não é um humano qualquer! Ele é o rosto do Egipto.
- Agora compreendo a tua pergunta- disse Aton- quando eu projectei o Egipto, dei aos faraós o poder psíquico necessário para estarem alguns degraus acima dos restantes homens, com a finalidade de os homens que formam o povo egípcio reconhecerem no faraó um ser superior, iluminado, e por conseguinte de se sentirem subjugados perante o seu superior intelecto, e como tal, o aceitarem como o seu guia. Mas não disse aos faraós que eles tinham o direito de se equipararem aos deuses; até porque não se equiparam! Os faraós são mortais!
- Mas consideram-se os deuses na terra- exclamou Amon.
- E foi assim que eu quis que eles fossem sentidos. Mas o faraó ser deus na terra é uma coisa; o faraó ser deus no seio dos deuses… aí, alto! O faraó em funções tem de ser colocado no seu lugar ou então destituído do trono.
- Destitui-lo do trono seria uma atitude demasiado prepotente da minha parte- disse Amon- porque, o faraó, não está a colocar em risco a integridade do Egipto ao roubar uma sacerdotisa ao templo. Ele apenas está a pôr em questão a sua submissão a mim. Amon-Rá é um deus amado, por isso quero continuar a sê-lo.
- Mas é um mau indicativo o facto do faraó ter a ousadia de te provocar de uma forma tão directa. Se a sua índole lhe permite fazer isso com o deus supremo, o que não poderá ele fazer com o seu povo?
- Essa observação é bastante pertinente- exclamou Amon-Rá- mas tudo ao seu tempo. De momento apenas lhe tenho de fazer sentir o quanto estou aborrecido. Ele é jovem, pode ser que reconsidere.
- E tu aceitarias de novo a sacerdotisa, depois de ter sido tocada por um homem?- perguntou a deusa Ísis.
- Caso o queira, pode, pois o homem que lhe tocou foi o faraó, que tem a nossa chancela divina- respondeu Aton.
- Bem, sendo assim, vou actuar com diplomacia. Horus, tu que estás encarregado de apoiares os faraós nas suas missões de governação, ficas incumbido de contactares o faraó Amenhotep, o quarto, e de perceberes as razões que o levaram a cometer tal loucura, bem como de o persuadires a devolver a sacerdotisa Nefertiti. E por agora chega. Hoje a minha alimentação vai ser de qualidade inferior, já que apenas me vou alimentar de emanações de simples oráculos do povo, pois o tabernáculo do templo não me foi benéfico, o que à partida me traz um certo cansaço.
E Amon-Rá retirou-se. Os restantes deuses ainda conversaram um pouco mais sobre o assunto, tendo chegado a um consenso: poderia ali estar a germinar um sério problema!
Aton, o deus ancião, estava perplexo. Fora ele o criador da força mental que estava na base da existência do Egipto. Como tinha sido possível que a selecção natural da Maet tivesse permitido que aquele indivíduo chegasse a faraó? Pela primeira vez, o seu estruturado projecto da criação demonstrava uma falha. Mas, ele já cumprira a sua missão. Ao ter sido substituído por Amon-Rá, Aton sentia que o lugar do deus supremo continuava a ser muitíssimo bem ocupado. Amon-Rá tinha capacidade para fazer frente a este desafio, com que, ele próprio, Aton, nunca se vira confrontado… felizmente! (em continuação, pág. 33, ex XI)
in A Causa de MassiftonRá
Novembro/2005
sábado, 6 de novembro de 2010
PARA LÁ DA MÚSICA
A música, e não a política, é que deveria tomar conta dos destinos da humanidade. Principalmente, porque a música, para se fazer notar, não necessita de riqueza material. A sua riqueza é a alma. E a alma está a fazer falta à humanidade.
domingo, 31 de outubro de 2010
DE REGRESSO
...Ligado a um ventilador, Serôdio confiava que a máquina lhe mantivesse a vida.
Em resultado das agressões de que fora vítima, sofrera múltiplas lesões: costelas partidas, fractura de um braço, fractura da cana do nariz e o pior de tudo- aquela violenta pancada com a cabeça na esquina da parede provocara-lhe traumatismo craniano, pelo que havia três meses que se encontrava em coma profundo.
A principio a sua mãe achara que era ilusão de óptica, mas depois confirmou que afinal era verdade. Serôdio mexia a mão direita e nos seus lábios havia movimento.
A mãe de Serôdio saiu a correr do quarto do hospital a fim de avisar alguém. Sim, era verdade, Serôdio acordava lentamente e finalmente regressava à vida.
A mãe e dois médicos que agora o rodeavam estavam ansiosos por saberem em que estado físico ele se encontrava, depois de regressar da batalha que durante três meses mantivera com a morte.
Os globos oculares movimentavam-se por debaixo das pálpebras fechadas. As mãos e os pés mexiam-se energicamente, o que era um óptimo sinal. A sua parte motora em principio não fora afectada. Restava saber como estaria a sua condição sensorial e principalmente a intelectual.
Enquanto Serôdio era avidamente observado pela mãe e pelos médicos, ele próprio ia, segundo a segundo, tomando consciência do seu corpo. Na mente bailavam-lhe imagens confusas de uma linda senhora vestida de branco, de rostos amigos que antes não vira e de uma certa mensagem relacionada com uma tal alma gémea, a sua alma gémea, que o acompanhava havia muitos séculos. Era incrível! E essa alma gémea era... sim, era ela, não tinha dúvidas nenhumas... D. Silvina.
No despertar para a vida, no meio do movimento brusco dos olhos ainda fechados e de espasmos musculares, Serôdio ia balbuciando: « D. Silvina... Silvina... alma gémea».
- O meu filho pronunciou o nome Silvina- comentava a mãe de Serôdio, fixando os médicos com um olhar que demonstrava um misto de felicidade e estranheza- quem será esta Silvina?
- A senhora não deve ligar importância ao que o seu filho diz, mas à forma como fala. Parece que articula bem as palavras. O resto são apenas reacções a um estado profundamente traumático, do qual finalmente se liberta- explicou um dos médicos.
- Sim, só pode ser isso- disse D. Amélia, mãe de Serôdio, que teria ficado muito feliz se em vez de ouvir «Silvina» da boca do filho que despertava de um coma profundo, antes tivesse ouvido a palavra «mãe»...(em continuação, pág. 55- ex. XVII)
in FILHOS POBRES DA REVOLTA
Março/2003
sexta-feira, 22 de outubro de 2010
ESPREITANDO A ETERNIDADE
...Para espanto de Serôdio, o modo de locomoção era algo incrível. Flutuavam!! Guiado por aquela bela e misteriosa senhora, Serôdio ia passando por cenas que à sua frente se iam projectando em telas invisíveis. Aquelas cenas não lhe eram desconhecidas... eram-lhe até muito familiares. Serôdio viajava pela sua própria vida. Estava-lhe a ser feita uma retrospectiva de tudo o que ele fizera na vida, até àquele momento.
- Isto è fantástico- dizia Serôdio.
- Reconheces aquela criança?- perguntou a senhora de branco, referindo-se a imagens que surgiam de um menino que se baloiçava num balancé.
- Aquele sou eu. Lembro-me perfeitamente. E ali está o ... o meu irmão! È verdade, eu tenho um irmão. Onde è que ele anda que nunca mais o vi?
- O teu irmão irá fazer parte de um momento crítico da tua vida futura.
- Um momento crítico?
- Sim, será uma prova para ti e para ele.
- Mas, se somos irmãos, que prova poderá ser essa?
- Vocês são irmãos, mas nesse momento futuro não se irão lembrar disso.
- Não?
- Não, porque o teu irmão embora saiba que existes, não te vê desde que eras uma criança, aquela criança que há pouco pudeste observar. O teu irmão não te irá reconhecer. Pelo teu lado, tu não te vais lembrar sequer que tens um irmão.
- Mas se me lembro agora!
- Enquanto encarnado lembraste-te?
- Não.
- Pois vais voltar a esquecê-lo- afirmou a senhora.
- Porque razão deixou o meu pai que eu me esquecesse do meu irmão?
- Tu e o teu irmão não são filhos do mesmo casamento. Vocês têm mães diferentes. O teu irmão è quinze anos mais velho do que tu. Um dia, em conversa, o teu pai e o teu irmão discutiram. O teu pai criticou a ex-mulher e o teu irmão defendeu a mãe. O teu irmão decidiu então não mais ver o pai. Já está arrependido, mas passaram-se muitos anos. O teu irmão já criou raízes no afastamento do pai. Foi uma decisão muito má, essa que o teu irmão tomou. O teu pai sofre com isso, mas perdeu o paradeiro do filho mais velho. Não se vêem há catorze anos.
- E o meu irmão lembra-se de mim?
- Sim, ele sabe que tu existes em algum lugar.
- Sinto-me tão bem com tudo isto que a senhora me revelou. Posso saber quem è?
- Eu? Eu sou a tua permanente amiga. Fui encarregada de te acompanhar nesta paragem desta tua vida terrena.
- Quer dizer então que a minha vida vai continuar?
- Sim, o teu Karma precisa de ser completado. Quando reencarnaste no corpo que tens hoje, obrigaste-te a padeceres algumas dificuldades.
- E em alguma delas vou cruzar-me com o meu irmão?
- Assim será. Como já te disse, será uma prova para os dois. Reconheces a tua alma gémea?
- Eu... a minha alma gémea...
- Esforça-te um pouco. Lembrarte-ás. Agora vamos viajar. Existem espíritos teus amigos que estão ansiosos por comunicarem contigo.
- Quem são?
- Quando os vires logo os reconhecerás. E vais recordar ainda alguns momentos de algumas vidas passadas. Aproveita este pequeno intervalo nesta tua vida para fazeres um balanço de ti mesmo, fazeres uma revisão de toda a matéria que vai preencher os teus dias futuros, tomares consciência do nível em que está a tua espiritualidade e repores energia, a energia que vem do Alto e que a todos consola. Vamos?
E Serôdio embrenhou-se na eternidade...(em continuação- pág. 53- ex. XVI)
in FILHOS POBRES DA REVOLTA
Março/2003
- Isto è fantástico- dizia Serôdio.
- Reconheces aquela criança?- perguntou a senhora de branco, referindo-se a imagens que surgiam de um menino que se baloiçava num balancé.
- Aquele sou eu. Lembro-me perfeitamente. E ali está o ... o meu irmão! È verdade, eu tenho um irmão. Onde è que ele anda que nunca mais o vi?
- O teu irmão irá fazer parte de um momento crítico da tua vida futura.
- Um momento crítico?
- Sim, será uma prova para ti e para ele.
- Mas, se somos irmãos, que prova poderá ser essa?
- Vocês são irmãos, mas nesse momento futuro não se irão lembrar disso.
- Não?
- Não, porque o teu irmão embora saiba que existes, não te vê desde que eras uma criança, aquela criança que há pouco pudeste observar. O teu irmão não te irá reconhecer. Pelo teu lado, tu não te vais lembrar sequer que tens um irmão.
- Mas se me lembro agora!
- Enquanto encarnado lembraste-te?
- Não.
- Pois vais voltar a esquecê-lo- afirmou a senhora.
- Porque razão deixou o meu pai que eu me esquecesse do meu irmão?
- Tu e o teu irmão não são filhos do mesmo casamento. Vocês têm mães diferentes. O teu irmão è quinze anos mais velho do que tu. Um dia, em conversa, o teu pai e o teu irmão discutiram. O teu pai criticou a ex-mulher e o teu irmão defendeu a mãe. O teu irmão decidiu então não mais ver o pai. Já está arrependido, mas passaram-se muitos anos. O teu irmão já criou raízes no afastamento do pai. Foi uma decisão muito má, essa que o teu irmão tomou. O teu pai sofre com isso, mas perdeu o paradeiro do filho mais velho. Não se vêem há catorze anos.
- E o meu irmão lembra-se de mim?
- Sim, ele sabe que tu existes em algum lugar.
- Sinto-me tão bem com tudo isto que a senhora me revelou. Posso saber quem è?
- Eu? Eu sou a tua permanente amiga. Fui encarregada de te acompanhar nesta paragem desta tua vida terrena.
- Quer dizer então que a minha vida vai continuar?
- Sim, o teu Karma precisa de ser completado. Quando reencarnaste no corpo que tens hoje, obrigaste-te a padeceres algumas dificuldades.
- E em alguma delas vou cruzar-me com o meu irmão?
- Assim será. Como já te disse, será uma prova para os dois. Reconheces a tua alma gémea?
- Eu... a minha alma gémea...
- Esforça-te um pouco. Lembrarte-ás. Agora vamos viajar. Existem espíritos teus amigos que estão ansiosos por comunicarem contigo.
- Quem são?
- Quando os vires logo os reconhecerás. E vais recordar ainda alguns momentos de algumas vidas passadas. Aproveita este pequeno intervalo nesta tua vida para fazeres um balanço de ti mesmo, fazeres uma revisão de toda a matéria que vai preencher os teus dias futuros, tomares consciência do nível em que está a tua espiritualidade e repores energia, a energia que vem do Alto e que a todos consola. Vamos?
E Serôdio embrenhou-se na eternidade...(em continuação- pág. 53- ex. XVI)
in FILHOS POBRES DA REVOLTA
Março/2003
quarta-feira, 13 de outubro de 2010
NÚMERO 61- CÓDIGO DE CONTACTO
...- Tens recebido noticias do Álvaro?- perguntou a amiga.
- Sim, ele está bem. O meu Álvaro dava um óptimo jornalista, pois manda-me autênticas reportagens de guerra. Apetece-me dizer que tenho África em directo.
- Deve ser óptimo ter um namorado que goste assim de escrever.
- È muito bom- respondeu Catarina- comunicando-se assim constantemente, ele sente-se mais vivo e quase comunga o dia a dia comigo. E eu, pelo meu lado, tenho a responsabilidade de o integrar nas coisas banais e nas coisas importantes que me vão acontecendo, para alimentar essa comunhão. E no tempo que gastamos a escrever cartas, e na ânsia que vivemos em as receber, os meses passam mais depressa. Quase sem darmos por isso já passaram nove.
- Eu acho que quando arranjar um namorado, vou escolher um homem que tenha o serviço militar já cumprido.
- Porquê?- perguntou Catarina, rindo.
- Não gosto muito de escrever. Se o meio de atenuar a saudade fosse apenas através das cartas, iria fazê-lo por obrigação e não por devoção, como conviria.
- Estás enganada Isabel. Irias fazê-lo por amor, que è algo totalmente diferente. Irias reparar que a lapiseira quase escreveria sozinha. E se amasses verdadeiramente o teu namorado, irias compreender que as cartas seriam o único meio que vos restava de se amarem.
- És feliz Catarina?
- Se sou feliz? Sob certas condicionantes posso dizer que sim. Tenho uns pais maravilhosos, tenho os meus amigos, tenho-te a ti, tenho-o a ele através dos aerogramas- dizia Catarina que com um pálido sorriso fixava o rosto da amiga. Esta segurou-lhe nas mãos e apertando-as disse-lhe:
- Querida amiga, podes sempre contar comigo. Mas agora tenho de me ir embora. Está a chegar a hora do eléctrico. Ficas?
- Sim, fico. Vim para estudar um pouco.
- Então até amanhã Catarina.
Ali, no primeiro andar, apenas mais duas mesas estavam ocupadas. Era estranho entabular-se uma conversação com um amigo, sobre um assunto tão sério, e seguidamente ficar-se só. Era como se esse amigo, por momentos nos tivesse ajudado a enfrentar os adversários da nossa vida, e nós, encorajados com essa ajuda, tivéssemos redobrado as forças. Mas o amigo ia-se embora e compreendíamos que aquela ajuda fora apenas uma ilusão. O adversário, a saudade, era sempre tão forte, tão intenso, tão presente, por mais cartas que se escrevessem.
Catarina ali se manteve por bastante tempo. Após muitas páginas de filosofia estudadas, muitas páginas de sebenta preenchidas com anotações, abandonou o Nicola e nem uma linha lera do livro Contacto. Afinal não sabia porque o trouxera. Eram quase seis da tarde. A noite quase se instalara. A paragem do eléctrico ficava mesmo em frente ao café de onde Catarina acabara de sair. Naquela paragem, instalada no largo passeio, existia grande aglomeração de pessoas. Ali estavam para apanharem as várias carreiras de eléctricos e tróleis que serviam toda a cidade. Para Catarina seria o 4, o que trazia escrito num pequeno rectângulo, na parte superior « Cruz de Celas ». Como o tempo esfriara. Aconchegou melhor o seu grosso casaco preto ao corpo. Os livros tinha-os colados ao peito e abraçava-os. Observava as pessoas que passavam. De vez em quando sorria a crianças que a observavam.
Finalmente surgiu o seu eléctrico. Já levava bastante gente e naquela paragem entraram mais umas quantas pessoas. O condutor do eléctrico, com o pé fez soar um dispositivo sonoro que se encontrava no chão, bem junto a uma base metálica, que suportava uma roda de que o condutor se servia para travar e destravar o eléctrico. Parecia uma roda de leme. Dois fortes batimentos metálicos que o condutor provocara e o eléctrico pôs-se em movimento. Catarina conseguira arranjar um lugar sentada, na parte da frente, junto ao compartimento do condutor. Já existiam alguns passageiros de pé, que de alguma forma atrapalhavam os movimentos do cobrador dos bilhetes, com a sua mala gasta, de cabedal castanho, que trazia a tiracolo e de onde retirava moedas, com as quais ia fazendo os trocos.
Ela não reparara, mas no eléctrico entrara um jovem que a observava intensamente. Era o mesmo que estivera sentado na mesa do café, quando Catarina ali entrara.
Ele tentava disfarçar a sua presença o mais que podia. Aquela loira não podia aperceber-se de que ele ia ali. Se calhar já nem se lembrava. Haviam trocado um olhar tão rapidamente! Ela ficara desconfiada. Mas que raio havia aquele livro ter de tão de especial, que o tivesse obrigado a ele, um jovem rapaz cheio de vida e com um promissor futuro como engenheiro, a aguentar todas aquelas horas meio escondido, aguardando que aquela sujeita saísse do café, obrigando-o a ele a persegui-la no interior de um eléctrico apinhado de gente, para tentar descobrir onde residia ela. O seu pai não era nenhum parvo. Se ele ambicionava ter o livro de capa preta que aquela loira levava no regaço, ele lá sabia porquê.
Chegado o 4 ao Largo da Conchada, no início da Rua António José de Almeida, Catarina saiu. O seu perseguidor atrasou a saída o mais que pôde. Já o eléctrico se punha de novo em movimento quando o rapaz saltou para o exterior. A loira levava-lhe um avanço de cerca de vinte metros. Contornou uns poucos de prédios e entrou numa rua, que abria, formando uma espécie de largo, assinalada com uma placa onde estava escrito « Rua Frei Tomé de Jesus ». Havia necessidade de anotar o nome da rua e foi o que o jovem fez, sem perder de vista a rapariga.
Catarina entrou em sua casa sem nunca se ter apercebido de que era seguida. O jovem deixou que ela desaparecesse no interior da habitação e aproximou-se para ler o número da porta. Era o número 61. Muito bem! O número 61 da Rua Frei Tomé de Jesus correspondia a uma pequena vivenda pintada de vermelho. Anotou a observação e foi-se embora. Caramba, que o pai nunca mais lhe pedisse fretes daqueles. Se ao menos o pai lhe tivesse dado a possibilidade de ele se poder comunicar com a loira!! Agora assim...(em continuação, pàg. 68- ex. XV)
in VISITADOS
Novembro/1999
- Sim, ele está bem. O meu Álvaro dava um óptimo jornalista, pois manda-me autênticas reportagens de guerra. Apetece-me dizer que tenho África em directo.
- Deve ser óptimo ter um namorado que goste assim de escrever.
- È muito bom- respondeu Catarina- comunicando-se assim constantemente, ele sente-se mais vivo e quase comunga o dia a dia comigo. E eu, pelo meu lado, tenho a responsabilidade de o integrar nas coisas banais e nas coisas importantes que me vão acontecendo, para alimentar essa comunhão. E no tempo que gastamos a escrever cartas, e na ânsia que vivemos em as receber, os meses passam mais depressa. Quase sem darmos por isso já passaram nove.
- Eu acho que quando arranjar um namorado, vou escolher um homem que tenha o serviço militar já cumprido.
- Porquê?- perguntou Catarina, rindo.
- Não gosto muito de escrever. Se o meio de atenuar a saudade fosse apenas através das cartas, iria fazê-lo por obrigação e não por devoção, como conviria.
- Estás enganada Isabel. Irias fazê-lo por amor, que è algo totalmente diferente. Irias reparar que a lapiseira quase escreveria sozinha. E se amasses verdadeiramente o teu namorado, irias compreender que as cartas seriam o único meio que vos restava de se amarem.
- És feliz Catarina?
- Se sou feliz? Sob certas condicionantes posso dizer que sim. Tenho uns pais maravilhosos, tenho os meus amigos, tenho-te a ti, tenho-o a ele através dos aerogramas- dizia Catarina que com um pálido sorriso fixava o rosto da amiga. Esta segurou-lhe nas mãos e apertando-as disse-lhe:
- Querida amiga, podes sempre contar comigo. Mas agora tenho de me ir embora. Está a chegar a hora do eléctrico. Ficas?
- Sim, fico. Vim para estudar um pouco.
- Então até amanhã Catarina.
Ali, no primeiro andar, apenas mais duas mesas estavam ocupadas. Era estranho entabular-se uma conversação com um amigo, sobre um assunto tão sério, e seguidamente ficar-se só. Era como se esse amigo, por momentos nos tivesse ajudado a enfrentar os adversários da nossa vida, e nós, encorajados com essa ajuda, tivéssemos redobrado as forças. Mas o amigo ia-se embora e compreendíamos que aquela ajuda fora apenas uma ilusão. O adversário, a saudade, era sempre tão forte, tão intenso, tão presente, por mais cartas que se escrevessem.
Catarina ali se manteve por bastante tempo. Após muitas páginas de filosofia estudadas, muitas páginas de sebenta preenchidas com anotações, abandonou o Nicola e nem uma linha lera do livro Contacto. Afinal não sabia porque o trouxera. Eram quase seis da tarde. A noite quase se instalara. A paragem do eléctrico ficava mesmo em frente ao café de onde Catarina acabara de sair. Naquela paragem, instalada no largo passeio, existia grande aglomeração de pessoas. Ali estavam para apanharem as várias carreiras de eléctricos e tróleis que serviam toda a cidade. Para Catarina seria o 4, o que trazia escrito num pequeno rectângulo, na parte superior « Cruz de Celas ». Como o tempo esfriara. Aconchegou melhor o seu grosso casaco preto ao corpo. Os livros tinha-os colados ao peito e abraçava-os. Observava as pessoas que passavam. De vez em quando sorria a crianças que a observavam.
Finalmente surgiu o seu eléctrico. Já levava bastante gente e naquela paragem entraram mais umas quantas pessoas. O condutor do eléctrico, com o pé fez soar um dispositivo sonoro que se encontrava no chão, bem junto a uma base metálica, que suportava uma roda de que o condutor se servia para travar e destravar o eléctrico. Parecia uma roda de leme. Dois fortes batimentos metálicos que o condutor provocara e o eléctrico pôs-se em movimento. Catarina conseguira arranjar um lugar sentada, na parte da frente, junto ao compartimento do condutor. Já existiam alguns passageiros de pé, que de alguma forma atrapalhavam os movimentos do cobrador dos bilhetes, com a sua mala gasta, de cabedal castanho, que trazia a tiracolo e de onde retirava moedas, com as quais ia fazendo os trocos.
Ela não reparara, mas no eléctrico entrara um jovem que a observava intensamente. Era o mesmo que estivera sentado na mesa do café, quando Catarina ali entrara.
Ele tentava disfarçar a sua presença o mais que podia. Aquela loira não podia aperceber-se de que ele ia ali. Se calhar já nem se lembrava. Haviam trocado um olhar tão rapidamente! Ela ficara desconfiada. Mas que raio havia aquele livro ter de tão de especial, que o tivesse obrigado a ele, um jovem rapaz cheio de vida e com um promissor futuro como engenheiro, a aguentar todas aquelas horas meio escondido, aguardando que aquela sujeita saísse do café, obrigando-o a ele a persegui-la no interior de um eléctrico apinhado de gente, para tentar descobrir onde residia ela. O seu pai não era nenhum parvo. Se ele ambicionava ter o livro de capa preta que aquela loira levava no regaço, ele lá sabia porquê.
Chegado o 4 ao Largo da Conchada, no início da Rua António José de Almeida, Catarina saiu. O seu perseguidor atrasou a saída o mais que pôde. Já o eléctrico se punha de novo em movimento quando o rapaz saltou para o exterior. A loira levava-lhe um avanço de cerca de vinte metros. Contornou uns poucos de prédios e entrou numa rua, que abria, formando uma espécie de largo, assinalada com uma placa onde estava escrito « Rua Frei Tomé de Jesus ». Havia necessidade de anotar o nome da rua e foi o que o jovem fez, sem perder de vista a rapariga.
Catarina entrou em sua casa sem nunca se ter apercebido de que era seguida. O jovem deixou que ela desaparecesse no interior da habitação e aproximou-se para ler o número da porta. Era o número 61. Muito bem! O número 61 da Rua Frei Tomé de Jesus correspondia a uma pequena vivenda pintada de vermelho. Anotou a observação e foi-se embora. Caramba, que o pai nunca mais lhe pedisse fretes daqueles. Se ao menos o pai lhe tivesse dado a possibilidade de ele se poder comunicar com a loira!! Agora assim...(em continuação, pàg. 68- ex. XV)
in VISITADOS
Novembro/1999
sexta-feira, 8 de outubro de 2010
EM COIMBRA, NO CAFÉ NICOLA
....Como sempre, o Nicola estava cheio. Catarina elegera um canto daquele espaço como seu. Por isso o procurava sempre. Ficava no primeiro andar, pois o Nicola tinha um primeiro andar, frequentado mais pelos clientes habituais. E esses eram na maioria jovens estudantes, que a troco de uma bica, ocupavam mesas por horas a fio. Mas a gerência não se importava, pois se por um lado os estudantes transmitiam ao café « o status dos tesos », por outro lado era bem verdade que os mesmos estudantes também escolhiam o Nicola para conviverem, e nessas horas, sem estarem preocupados com as Matemáticas e as Físicas, sempre eram mais generosos para com a gerência do café.
Catarina atravessou o corredor formado entre as mesas e o comprido balcão. Mesmo para aqueles que estavam habituados à sua presença, o facto de mais uma vez aparecer, nunca passava despercebido. E naquele dia ela irradiava luz e fazia os corações de alguns baterem mais apressadamente.
No regaço transportava três livros: um compêndio de filosofia, outro de literatura e um romance de capa preta, onde a meio existia uma mancha amarela, uma fonte de luz, rodeada por uma massa disforme que dava a percepção de ser uma grande concentração estrelar. Imediatamente abaixo surgia a lua em quarto minguante, e mesmo no fundo da capa aparecia a palavra « Contacto », escrita em letras grandes de cor cinzenta. Aquele era um dos livros que Álvaro lhe emprestara, e embora tivesse muita vontade e muita curiosidade em lê-lo, quando tinha o impulso de iniciar a sua leitura, algo havia que a fazia sentir angustiada. Por essa razão era, que havendo já passado nove meses, desde a partida do seu namorado para Angola, só na semana anterior iniciara a leitura do livro. Na penúltima carta que escrevera a Álvaro mandara-lhe dizer:
« Meu querido, finalmente consegui libertar-me daquele patético sentimento de angústia, sempre que tomava o livro Contacto nas mãos e me propunha a lê-lo. Ontem lutei contra mim própria e li o primeiro capítulo. Não foram muitas as páginas. Só li vinte, mas já surgiu uma personagem com quem eu estou a simpatizar- a Ellie, embora ela seja doidinha por matemática, o que até me faz arrepios. No pouco que li, já percebi que a ficção que aqui se faz deve ser baseada em sólidos conhecimentos científicos...»
Catarina caminhava devagar, dirigindo-se para as escadas de ferro que a levariam ao primeiro andar. O livro Contacto ia no seu regaço, com a capa virada para onde se encontravam as mesas. Qualquer um que ali estivesse sentado, perfeitamente observaria a capa preta e lhe leria o título. Catarina foi obrigada a parar, pois um empregado passou à sua frente transportando uma bandeja, onde equilibrava várias chávenas de café e alguns copos de água. Nessa sua paragem fugaz reparou numa mesa bem perto de si, onde se encontravam dois homens que ela nunca vira. Um era jovem e o outro bem mais velho. Ambos a observavam intensamente. Todavia percebeu nos seus olhares intenções e sentimentos diferentes. O mais novo corria-a gulosamente com os olhos, expressando desejo devasso. O mais velho mantinha o olhar parado, fixo num ponto do seu corpo que ela não podia determinar. Via naquele olhar uma espécie de surpresa. Sentiu-se perturbada e ainda o empregado não acabara de passar, já ela forçava a passagem, tendo ainda empurrado o pobre homem que quase se viu defraudado na sua arte de, com perícia, fazer chegar aos clientes todo o saboroso conteúdo, transportado nas frágeis chávenas. Desconfiada, ao chegar às escadas, deitou um olhar disfarçado à mesa onde se encontravam os dois homens. Eles ainda a observavam. Subiu as escadas, e quando chegou ao topo, olhou para a sua mesa predilecta, e viu que lá se encontrava uma das suas melhores amigas. Ficou satisfeita e encaminhou-se para lá.
- Olá Catarina- disse a amiga.
- Olá Isabel- respondeu Catarina sentando-se- está uma pessoa tão bem disposta e de repente fica-se nervosa...
- Porquê?- perguntou a amiga.
- Ali em baixo estão sentados dois tipos que me olharam de uma maneira...
- Que esperas tu minha querida? Se até há mulheres que te admiram fisicamente, que hão de pensar os homens!
- Desses olhares frívolos e banais estou eu habituada, e já não me incomodam. Mas a maneira como principalmente o mais velho me olhou, deixou-me intrigada. Nunca sentiste possuíres qualquer coisa que de repente sentes ser pertença de outrem?
- Não sei o que queres dizer.
- Olha, nem eu...Isabelinha, sê minha amiga, e vai ali ao parapeito, olha para baixo e vê se encontras nalguma mesa dois homens com aspecto de serem pai e filho, bem parecidos.
- Está bem- disse a amiga de Catarina que se levantou, foi ao fim do recinto do primeiro andar, olhou para baixo, observou atentamente todas as mesas e regressou- não existe ali ninguém com aspecto de pai e filho.
- Mesmo naquela mesa que está em frente à máquina do café?- perguntou Catarina.
A amiga voltou ao parapeito e atentamente observou a tal mesa. Regressando disse:
- Na mesa não está ninguém.
- Óptimo. Assim já me sinto melhor- retorquiu Catarina sorrindo... (em continuação, pág. 65, ex. XIV)
in VISITADOS
Novembro/1999
sexta-feira, 1 de outubro de 2010
NA SOMBRA DE ANTÓNIO AVILAR VEM O CAMINHANTE
...O Caminhante sofria. As lágrimas corriam-lhe abundantes pelo rosto barbado e endurecido pelas mágoas da vida. O seu olho cego tinha a única utilidade de ajudar a fazer brotar as tristezas que lhe escureciam a vida. No seu minúsculo casebre rangia os dentes e furiosamente agredia as paredes do pobre lar. Vencido pelo destino, tomou uma resolução - ir dar-se a conhecer ao Padre José Soares. Não suportava mais aquela situação sozinho. O padre era a pessoa certa para o poder ajudar. O sol de outono estava a pôr-se no horizonte salgado de S. Martinho do Porto. Era o momento.
Deu um pouco de água ao rosto e convictamente partiu em direcção à casa do pároco. Encontrou-o pelo caminho.
- Santas tardes senhor padre.
- Viva homem de Deus. Não vais ao caldo?
- Primeiro preciso de alimentar o espírito.
O padre parou.
- Queres-te confessar?
- Quero sim senhor padre. Quero-me confessar a Deus e aos homens - e duas lágrimas pesadas, carregadas de escuridão, lhe desceram pelo rosto.
- Estou a ver - disse o padre José Soares - vamos até minha casa. Não podes por mais tempo manteres-te um incógnito. É isso não é?
- É sim senhor. E será muito mais do que isso. Preciso de ajuda.
- Assim eu tivesse podido ajudar a todos, como te posso ajudar neste momento. Vamos a isso.
Os dois homens entraram na casa do pároco. Uma casa que ele habitava havia já vinte e um anos. Com o desaparecimento do morgado Vitorino, não mais recebera visitas. O Caminhante era o primeiro. O padre José Soares abria a sua porta àquele homem simples, porque nele sentia estarem latentes aqueles valores humanos de que ele próprio tanto precisara. Também a sua vida se tornara mais sombria desde o desaparecimento do seu pupilo, do pequeno Leandro e do José Chambão.
- Senta-te homem - disse o padre José Soares, sentando-se também - abre-me esse espírito.
- Preciso muito de ajuda espiritual senhor padre. Sou um homem só. Desgracei a minha vida na herdade onde trabalho, numa noite que já tem doze anos.
- Ali na herdade? Há doze anos? - perguntou o padre intrigado.
- Senhor padre, chamo-me... António Avilar. Sou do Bombarral e participei no assalto em que morreu o morgado e o capataz.
Ao ouvir aquelas palavras, como que empurrado por força invisível, o padre José Soares levantou-se de um salto, foi até à janela mais próxima, mãos postas junto ao rosto, mantendo-se em silêncio. O Caminhante, um António Avilar de rosto transformado pelas agruras da guerra, sentiu que algo muito sério se passava no íntimo do padre.
- Como disseste que te chamas?
- António Avilar, senhor padre.
- Diz-me então António, porque razão vieste para Alfeizerão?
- Vim para tentar reparar o mal, que sem querer, ajudei a fazer.
- Como é isso possível? Deste-me a certeza de que o meu querido Vitorino está morto.
- Vitorino? Quem é o Vitorino senhor padre?
- Vitorino era o morgado de Alfeizerão. Que reparo podes fazer? Que remédio tens tu para a morte?
- Nenhum senhor padre. Mas posso tentar devolver os bens ao menino que eu raptei.
O padre José Soares não aguentou mais. Virou-se repentinamente. Os olhos estavam endurecidos com a chama do desgosto e da raiva.
- Foste tu que roubaste ao berço o pequenino Leandro?
- Fui senhor padre, para o salvar da fúria do Barreto Raposo. Eu não matei ninguém. Vim enganado, era jovem. O ideal republicano fervia-me no sangue.
- Que fizeste tu ao menino?
- Levei-o para minha casa. Lá anda pelo Bombarral. Está um belo rapazinho.
- Deus seja louvado - ria e chorava o padre - o pequenino Leandro está vivo e mora no Bombarral.
- Mas senhor padre, ele não se dá por esse nome. Ele chama-se Carlos Avilar. Foi o nome que eu lhe dei.
- Pois fica sabendo que esse rapazinho, quando tu o tiraste ali do solar, já se chamava Leandro Vital de Lourena Fernandes. Que alegria a Lucinda vai ter quando souber.
- A Lucinda Matias?
- Essa mesma - disse o padre.
- É ela a mãe do pequeno?
- Não, a mãe do pequeno morreu quando ele nasceu. Ele e o irmão.
- O Helder - disse António Avilar.
- Como sabes?
- Eles são iguais senhor padre.
- Confirmasse agora a tua história - disse o padre - efectivamente são gémeos. Tu a fugires com um para um lado e a Lucinda com outro para outro lado, concretizaram a separação dos dois.
- A Lucinda apercebeu-se da nossa chegada?
- Apercebeu. Na altura tinha o Helder ao colo e com ele fugiu. Dás-me então a certeza de que o responsável por tudo isto é o Barreto Raposo?
- É verdade sim senhor. Quando ele descobriu que eu fugira, perseguiu-me. Fui obrigado a sair de Portugal.
- Bem a Lucinda tinha razão ao dizer que reconhecera a voz desse Raposo. Qual foi o teu destino?
- A guerra, a maldita guerra...(em continuação, pág.97, ex. XXXIII)
in QUANDO UM ANJO PECA
Março/1998
Deu um pouco de água ao rosto e convictamente partiu em direcção à casa do pároco. Encontrou-o pelo caminho.
- Santas tardes senhor padre.
- Viva homem de Deus. Não vais ao caldo?
- Primeiro preciso de alimentar o espírito.
O padre parou.
- Queres-te confessar?
- Quero sim senhor padre. Quero-me confessar a Deus e aos homens - e duas lágrimas pesadas, carregadas de escuridão, lhe desceram pelo rosto.
- Estou a ver - disse o padre José Soares - vamos até minha casa. Não podes por mais tempo manteres-te um incógnito. É isso não é?
- É sim senhor. E será muito mais do que isso. Preciso de ajuda.
- Assim eu tivesse podido ajudar a todos, como te posso ajudar neste momento. Vamos a isso.
Os dois homens entraram na casa do pároco. Uma casa que ele habitava havia já vinte e um anos. Com o desaparecimento do morgado Vitorino, não mais recebera visitas. O Caminhante era o primeiro. O padre José Soares abria a sua porta àquele homem simples, porque nele sentia estarem latentes aqueles valores humanos de que ele próprio tanto precisara. Também a sua vida se tornara mais sombria desde o desaparecimento do seu pupilo, do pequeno Leandro e do José Chambão.
- Senta-te homem - disse o padre José Soares, sentando-se também - abre-me esse espírito.
- Preciso muito de ajuda espiritual senhor padre. Sou um homem só. Desgracei a minha vida na herdade onde trabalho, numa noite que já tem doze anos.
- Ali na herdade? Há doze anos? - perguntou o padre intrigado.
- Senhor padre, chamo-me... António Avilar. Sou do Bombarral e participei no assalto em que morreu o morgado e o capataz.
Ao ouvir aquelas palavras, como que empurrado por força invisível, o padre José Soares levantou-se de um salto, foi até à janela mais próxima, mãos postas junto ao rosto, mantendo-se em silêncio. O Caminhante, um António Avilar de rosto transformado pelas agruras da guerra, sentiu que algo muito sério se passava no íntimo do padre.
- Como disseste que te chamas?
- António Avilar, senhor padre.
- Diz-me então António, porque razão vieste para Alfeizerão?
- Vim para tentar reparar o mal, que sem querer, ajudei a fazer.
- Como é isso possível? Deste-me a certeza de que o meu querido Vitorino está morto.
- Vitorino? Quem é o Vitorino senhor padre?
- Vitorino era o morgado de Alfeizerão. Que reparo podes fazer? Que remédio tens tu para a morte?
- Nenhum senhor padre. Mas posso tentar devolver os bens ao menino que eu raptei.
O padre José Soares não aguentou mais. Virou-se repentinamente. Os olhos estavam endurecidos com a chama do desgosto e da raiva.
- Foste tu que roubaste ao berço o pequenino Leandro?
- Fui senhor padre, para o salvar da fúria do Barreto Raposo. Eu não matei ninguém. Vim enganado, era jovem. O ideal republicano fervia-me no sangue.
- Que fizeste tu ao menino?
- Levei-o para minha casa. Lá anda pelo Bombarral. Está um belo rapazinho.
- Deus seja louvado - ria e chorava o padre - o pequenino Leandro está vivo e mora no Bombarral.
- Mas senhor padre, ele não se dá por esse nome. Ele chama-se Carlos Avilar. Foi o nome que eu lhe dei.
- Pois fica sabendo que esse rapazinho, quando tu o tiraste ali do solar, já se chamava Leandro Vital de Lourena Fernandes. Que alegria a Lucinda vai ter quando souber.
- A Lucinda Matias?
- Essa mesma - disse o padre.
- É ela a mãe do pequeno?
- Não, a mãe do pequeno morreu quando ele nasceu. Ele e o irmão.
- O Helder - disse António Avilar.
- Como sabes?
- Eles são iguais senhor padre.
- Confirmasse agora a tua história - disse o padre - efectivamente são gémeos. Tu a fugires com um para um lado e a Lucinda com outro para outro lado, concretizaram a separação dos dois.
- A Lucinda apercebeu-se da nossa chegada?
- Apercebeu. Na altura tinha o Helder ao colo e com ele fugiu. Dás-me então a certeza de que o responsável por tudo isto é o Barreto Raposo?
- É verdade sim senhor. Quando ele descobriu que eu fugira, perseguiu-me. Fui obrigado a sair de Portugal.
- Bem a Lucinda tinha razão ao dizer que reconhecera a voz desse Raposo. Qual foi o teu destino?
- A guerra, a maldita guerra...(em continuação, pág.97, ex. XXXIII)
in QUANDO UM ANJO PECA
Março/1998
sexta-feira, 24 de setembro de 2010
REVELA-SE O SEGREDO DE UM CAMALEÃO
-... O Carlos nasceu em Alfeizerão e muito provavelmente deve ser filho de um morgado que por lá existiu.
- Um morgado? O mesmo morgado que foi dono da herdade que o Barreto Raposo comprou e para onde levou muitos homens daqui?
- Esse mesmo.
- Mas, mas então porque razão mantiveste o Carlos todos estes anos aqui no Bombarral? Ainda antes disso, porque motivo é que o miúdo veio aqui parar? Onde está o pai?
- Américo, tu estás a partir do princípio de que ali houve uma troca legal de donos. Mas tudo isso é falso. O Barreto Raposo tomou de assalto a herdade.
- O quê? Que me estás a dizer?
- E matou o morgado e o seu capataz. Os corpos estão enterrados aqui no Bombarral. Só o Barreto Raposo sabe onde.
- Pára um pouco Luísa. Deixa-me respirar. Falas-me de assassinos e assassinados, toda uma história relacionada com aquele pequeno. Como veio então o Carlos aqui parar? Como sabes tu de tudo isso?
- O António participou no assalto. Foi ele que raptou a criança sem os outros verem e fugiu com ela para a nossa casa. Como eu era muito nova, ninguém achou estranho eu ter um bebé. Nessa noite a nossa vida mudou para sempre. Ele teve de fugir da ira do Barreto Raposo. Cansou-se dessa vida, pelo que resolveu alistar-se na tropa. Assim foi parar a França. Assim lá ficou.
- Que história dramática está por detrás do Carlos. Ele sabe de tudo isto?
- Ele não sabe de nada. Eu não quero que ele saiba.
- Enquanto for menor Luísa! Mas quando chegar a homem, tem o direito de saber, para poder lutar pelo que lhe foi roubado. Será uma deslealdade não lhe dar a conhecer a verdade.
- Mas eu amo-o como se realmente fosse mãe dele. Fui eu que o criei.
- Tu serás sempre a mãe espiritual dele. Mas há-de haver um dia em que ele deverá saber que não foste tu que o geraste. Quem é a senhora?
- Não sei. O António nunca descobriu o seu nome nem viu qualquer mulher na casa do morgado, no momento do assalto.
- Eu tinha do António uma concepção muito diferente.
- Podes e deves mantê-la. O António era um homem às direitas. Foi enganado. Caiu no logro do Barreto Raposo.
- Poderei eu fazer alguma coisa pelo rapazito?
- Queres dizer pelo meu filho Carlos? Não sei. Isso já aconteceu há doze anos.
- Hei-de sondar a Conservatória de Alcobaça. Alguma coisa lá deve haver. É espantoso como grandes histórias acontecem junto a nós e não damos por nada.
- O Barreto Raposo soube camuflar bem toda a situação. Na herdade de Alfeizerão estão a trabalhar, entre os homens que foram daqui, os restantes seis que também fizeram parte do assalto. Mas o exemplo do António faz-lhes calar a boca - disse Luísa.
- No dia em que falei aos meus pais sobre nós, cruzei-me com um pobre diabo aqui no Bombarral. Disse-me que trabalhava em Alfeizerão. Era um homem estranho. Estou a ver que Alfeizerão é uma terra de grande poder místico. É propícia a acontecimentos complicados.
- Talvez seja uma terra de grande nobreza - respondeu Luísa.
- É possível. Um dia destes vou até lá. Quero sentir a terra onde uma história triste como esta aconteceu e ainda se desenrola, e onde tu tiveste e tens participação directa. Afinal, o herdeiro daquela herdade mora aqui connosco. Alguma coisa tem de ser feita.
Luísa dormia. Habituada que estava ao conhecimento da injustiça, o tempo foi esbatendo e tirando clarividência ao sentimento de revolta. Mas, para Américo Afonso, que acabara de tomar conhecimento do drama de Carlos Avilar, os factos eram muito fortes e muita matéria criminal estava por receber o devido tratamento. Essa mesma matéria, metamorfoseada em legalidade, vivia impune e fartamente em Alfeizerão, rindo-se e porventura gozando da sede de justiça de alguém, que decerto também por lá viveria. Impunha-se uma investigação. A ética profissional assim lho exigia... (em continuação, pág. 94, ex. XXXII)
in QUANDO UM ANJO PECA
Março/1998
- Um morgado? O mesmo morgado que foi dono da herdade que o Barreto Raposo comprou e para onde levou muitos homens daqui?
- Esse mesmo.
- Mas, mas então porque razão mantiveste o Carlos todos estes anos aqui no Bombarral? Ainda antes disso, porque motivo é que o miúdo veio aqui parar? Onde está o pai?
- Américo, tu estás a partir do princípio de que ali houve uma troca legal de donos. Mas tudo isso é falso. O Barreto Raposo tomou de assalto a herdade.
- O quê? Que me estás a dizer?
- E matou o morgado e o seu capataz. Os corpos estão enterrados aqui no Bombarral. Só o Barreto Raposo sabe onde.
- Pára um pouco Luísa. Deixa-me respirar. Falas-me de assassinos e assassinados, toda uma história relacionada com aquele pequeno. Como veio então o Carlos aqui parar? Como sabes tu de tudo isso?
- O António participou no assalto. Foi ele que raptou a criança sem os outros verem e fugiu com ela para a nossa casa. Como eu era muito nova, ninguém achou estranho eu ter um bebé. Nessa noite a nossa vida mudou para sempre. Ele teve de fugir da ira do Barreto Raposo. Cansou-se dessa vida, pelo que resolveu alistar-se na tropa. Assim foi parar a França. Assim lá ficou.
- Que história dramática está por detrás do Carlos. Ele sabe de tudo isto?
- Ele não sabe de nada. Eu não quero que ele saiba.
- Enquanto for menor Luísa! Mas quando chegar a homem, tem o direito de saber, para poder lutar pelo que lhe foi roubado. Será uma deslealdade não lhe dar a conhecer a verdade.
- Mas eu amo-o como se realmente fosse mãe dele. Fui eu que o criei.
- Tu serás sempre a mãe espiritual dele. Mas há-de haver um dia em que ele deverá saber que não foste tu que o geraste. Quem é a senhora?
- Não sei. O António nunca descobriu o seu nome nem viu qualquer mulher na casa do morgado, no momento do assalto.
- Eu tinha do António uma concepção muito diferente.
- Podes e deves mantê-la. O António era um homem às direitas. Foi enganado. Caiu no logro do Barreto Raposo.
- Poderei eu fazer alguma coisa pelo rapazito?
- Queres dizer pelo meu filho Carlos? Não sei. Isso já aconteceu há doze anos.
- Hei-de sondar a Conservatória de Alcobaça. Alguma coisa lá deve haver. É espantoso como grandes histórias acontecem junto a nós e não damos por nada.
- O Barreto Raposo soube camuflar bem toda a situação. Na herdade de Alfeizerão estão a trabalhar, entre os homens que foram daqui, os restantes seis que também fizeram parte do assalto. Mas o exemplo do António faz-lhes calar a boca - disse Luísa.
- No dia em que falei aos meus pais sobre nós, cruzei-me com um pobre diabo aqui no Bombarral. Disse-me que trabalhava em Alfeizerão. Era um homem estranho. Estou a ver que Alfeizerão é uma terra de grande poder místico. É propícia a acontecimentos complicados.
- Talvez seja uma terra de grande nobreza - respondeu Luísa.
- É possível. Um dia destes vou até lá. Quero sentir a terra onde uma história triste como esta aconteceu e ainda se desenrola, e onde tu tiveste e tens participação directa. Afinal, o herdeiro daquela herdade mora aqui connosco. Alguma coisa tem de ser feita.
Luísa dormia. Habituada que estava ao conhecimento da injustiça, o tempo foi esbatendo e tirando clarividência ao sentimento de revolta. Mas, para Américo Afonso, que acabara de tomar conhecimento do drama de Carlos Avilar, os factos eram muito fortes e muita matéria criminal estava por receber o devido tratamento. Essa mesma matéria, metamorfoseada em legalidade, vivia impune e fartamente em Alfeizerão, rindo-se e porventura gozando da sede de justiça de alguém, que decerto também por lá viveria. Impunha-se uma investigação. A ética profissional assim lho exigia... (em continuação, pág. 94, ex. XXXII)
in QUANDO UM ANJO PECA
Março/1998
terça-feira, 21 de setembro de 2010
SERENATA NO PENEDO
O fado. O fado português, que canta a alma de todo um povo, que realça a sua nostalgia, que dá sentido à saudade...
e o fado de Coimbra, que de amor faz a sua melodia. Em Coimbra, e só nela, está a sua alma, enobrecida pelas águas poéticas do Mondego.
sexta-feira, 17 de setembro de 2010
MALHAL DE SULA, ENTRADA DE UM PEQUENO PARAÍSO
...Malhal de Sula era uma pequena mas muito produtiva quinta. O meu pai, Manuel Passos Lopes, e a minha mãe, Beatriz de Sousa, haviam-na comprado três anos antes de eu nascer. Trabalharam arduamente para que, do terreno até então baldio, nascesse uma área agrícola muito fértil. A maior riqueza residia na produção vinícola, muito embora os currais da quinta estivessem atulhados de porcos e de vacas. Por essa razão, a quinta de Malhal de Sula apresentou-se-me com o aspecto de imensos vinhedos, o fervilhar de gente assalariada, e nunca outra coisa onde tivesse entrada a desolação.
A casa onde eu nasci e me criei muito longe estava de ser um palácio, mas era uma casa enorme, nobre, nobreza que nada tinha a ver com sangue real, mas nobreza de carácter, respeito tanto por a quem se devia obediência, como por quem obedecia. Princípios valiosos estes. E era também uma casa cheia. Cheia de fartura e de amor. Os meus pais, pessoas educadas na terra, e que à terra pediam o sustento, para além do trabalho duro do braço na enxada, e mais tarde, na responsabilidade e preocupação em bem saber gerir a riqueza que criaram, tiveram a sensibilidade de fazer de mim uma criança feliz.
Por alturas da terceira invasão francesa, aquando da batalha do Buçaco, que decorreu a poucos quilómetros da nossa casa, o meu pai escondeu-me a mim e mais a minha mãe num alçapão que tinha construído por debaixo da adega, enquanto ele e os seus assalariados patrulhavam a quinta, na tentativa de demover de más acções quem, eventualmente, ali penetrasse com intenções menos honestas. É que naquela época não eram somente os soldados franceses que pilhavam. Muitos salteadores, bem portugueses, aproveitando-se do caos e temor reinantes, também o faziam.
O meu pai não quis que eu fosse lavrador como ele. Queria ver o seu único filho como médico. O rapaz havia de ser doutor. E assim me vi entregue aos cuidados de frei Lourenço, natural da Mealhada, frade muito letrado, do convento de Santa Cruz de Coimbra. Corria o ano de 1811.
Durante os oitos anos que se seguiram, frei Lourenço transmitiu-me muito do seu saber. Aprendi latim, língua que me serviu de veículo para ter acesso ao conhecimento de toda a ordem. E como de ciências se tratava o meu futuro, estudei muitos compêndios de física e química, tendo-me maravilhado com os trabalhos sobre anatomia de Leonardo Da Vinci...(em continuação, pág. 16, ex VII)
in Alma de Liberal
Junho/2009
A casa onde eu nasci e me criei muito longe estava de ser um palácio, mas era uma casa enorme, nobre, nobreza que nada tinha a ver com sangue real, mas nobreza de carácter, respeito tanto por a quem se devia obediência, como por quem obedecia. Princípios valiosos estes. E era também uma casa cheia. Cheia de fartura e de amor. Os meus pais, pessoas educadas na terra, e que à terra pediam o sustento, para além do trabalho duro do braço na enxada, e mais tarde, na responsabilidade e preocupação em bem saber gerir a riqueza que criaram, tiveram a sensibilidade de fazer de mim uma criança feliz.
Por alturas da terceira invasão francesa, aquando da batalha do Buçaco, que decorreu a poucos quilómetros da nossa casa, o meu pai escondeu-me a mim e mais a minha mãe num alçapão que tinha construído por debaixo da adega, enquanto ele e os seus assalariados patrulhavam a quinta, na tentativa de demover de más acções quem, eventualmente, ali penetrasse com intenções menos honestas. É que naquela época não eram somente os soldados franceses que pilhavam. Muitos salteadores, bem portugueses, aproveitando-se do caos e temor reinantes, também o faziam.
O meu pai não quis que eu fosse lavrador como ele. Queria ver o seu único filho como médico. O rapaz havia de ser doutor. E assim me vi entregue aos cuidados de frei Lourenço, natural da Mealhada, frade muito letrado, do convento de Santa Cruz de Coimbra. Corria o ano de 1811.
Durante os oitos anos que se seguiram, frei Lourenço transmitiu-me muito do seu saber. Aprendi latim, língua que me serviu de veículo para ter acesso ao conhecimento de toda a ordem. E como de ciências se tratava o meu futuro, estudei muitos compêndios de física e química, tendo-me maravilhado com os trabalhos sobre anatomia de Leonardo Da Vinci...(em continuação, pág. 16, ex VII)
in Alma de Liberal
Junho/2009
terça-feira, 14 de setembro de 2010
UM INFANTE NO EXÍLIO
...Não sei que pensamentos, que sentimentos terão passado pela mente e coração do rei D. João VI, mas decerto que agradáveis não terão sido. Com poderia eu, conduzindo os destinos da minha casa, fazê-lo convictamente, sabendo que estava a ir contra a vontade da minha mulher e do meu filho? É certo que um rei, ao conduzir os destinos da sua casa, conduz também o destino de um povo; mas também não é menos verdade que aquela esposa era também rainha e que o jovem filho era infante!
Ao rei talvez lhe tenha faltado convicção política no liberalismo, quem sabe se até força de carácter. O que é certo foi que perante a Vilafrancada D. João VI aboliu a Constituição de 1822, que jurara, e atribuiu o comando do exército ao infante D. Miguel. O absolutismo regressava a Portugal. O rei, que fora aclamado como o salvador do povo, tornava-se agora no seu principal repressor… mas assegurava o seu lugar no trono. Que importância tinha o povo?! Volvidos que são dois séculos, terá o povo adquirido a importância a que diz ter direito?
A ambição terrena leva muitas vezes à perdição. No lugar em que me encontro é convicção que a riqueza aí na terra produz muita pobreza aqui, pois ser dono da riqueza material é a maior prova à elevação da alma; e quantas riquezas existem que não têm produzido qualquer elevação espiritual.
D. Miguel já se mentalizara de que o trono de Portugal lhe havia de pertencer; por isso, mesmo com o pai a ceder ao absolutismo, sem no entanto ter abdicado do trono, o infante, com o apoio da sua mãe, continuava a conspirar. O seu objectivo não era agora o regresso do regime absoluto, que esse já o alcançara, mas o próprio trono. E existiam planos para que o rei fosse preso em Vila Viçosa. Essa conspiração foi descoberta apenas cinco meses depois da Vilafrancada, em 26 de Outubro de 1823. Perante este golpe D. João VI foi brando. Era marido e pai.
Entretanto chegou o ano de 1824. Em Fevereiro desse ano, uma grande ameaça foi feita ao rei, quando o seu conselheiro, o Marquês de Loulé, foi assassinado. Dois meses depois ocorreu o segundo golpe militar absolutista – no dia 30 de Abril de 1824. Ficou conhecido como a Abrilada. O infante D. Miguel não pretendia repor o absolutismo, pois que continuava em vigor, mas somente obrigar o pai a abdicar do trono. As forças de D. Miguel chegaram a prender D. João VI. No entanto o corpo diplomático estrangeiro interveio, pelo que foi possível ao rei refugiar-se num navio inglês ancorado no Tejo. Desse navio, o rei D. João VI, tomou, finalmente, uma atitude: determinou o exílio de D. Miguel e intimidou a rainha D. Carlota Joaquina a que fizesse o mesmo. De novo, a coroa portuguesa, num momento politicamente crítico, era auxiliada por Inglaterra, a fim de manter a soberania do rei.
E foi neste cenário politico, terrivelmente conturbado, que eu nasci, me criei na pacatez da quinta dos meus pais, Malhal de Sula, fui estudar para Coimbra sob a orientação do mui sábio, venerando e afável frei Lourenço de Santa Cruz, e me formei como médico, na universidade de Coimbra. Saí doutor em 1823, o doutor Joaquim Passos Lopes...(em continuação, pág. 14, ex. VI)
in ALMA DE LIBERAL
Junho/2009
sábado, 11 de setembro de 2010
O DESAFIO DE UM MORTAL A AMON-RÁ
...Mais uma vez a horda de siftos acabara de chegar do mundo dos homens, depositando em MassiftonRá a sua preciosa carga; mas fluídos negativos impregnavam o mundo dos deuses. À mente de Amon-Rá chegara uma mensagem, enviada telepaticamente pelo seu Sumo-Sacerdote Masahemba, em que o deus dos deuses era informado de que a sua sacerdotisa de cabelos de fogo, Nefertiti, havia sido levada do templo, pelo faraó, e que este se preparava para fazer de Nefertiti a sua rainha. Perante tal mensagem, Amon-Rá cerrou os olhos. Não era possível! Um faraó não teria a ousadia de mexer com o equilíbrio existente entre os deuses e os homens. Um faraó não podia ser capaz de se apoderar de uma sacerdotisa escolhida pelo deus supremo. Isso, a ser verdade, desafiava a própria lógica, que fundamentava o estatuto de um deus perante os homens. Tal aberração, nunca ocorrera em toda a história do Egipto. Mas, e se fosse verdade, se se viesse a concretizar a mensagem telepática, qual deveria ser a atitude que ele, Amon-Rá, deveria tomar em relação ao faraó?
Os siftos chegavam da sua incursão ao mundo dos homens. Imediatamente Amon-Rá ordenou que o sifto encarregado de ir ao seu templo, em Tebas, se apresentasse a si.
O sifto em questão, no mesmo momento captou a ordem de Amon-Rá, pelo que se dirigiu à sua presença.
- Qual foi a tua recolha?- perguntou Amon-Rá ao sifto.
- Nenhuma, divino Amon. O templo estava intoxicado com fluídos perversos. Tive de o abandonar rapidamente.
O deus dos deuses fez sinal ao sifto de que se podia retirar. A informação recebida apontava para que a mensagem de Masahemba, correspondia a uma verdade amarga; mas tinha de se certificar de que Nefertiti não era mais sua sacerdotisa.
Durante algum tempo Amon-Rá manteve-se imóvel. O seu olhar vagueava pela imensidão das águas profundas do Nilo, que rodeavam MassiftonRá, enquanto a sua mente estava em turbilhão. Perante a ousadia do faraó, Amon-Rá tinha a sensação de ser impotente para conseguir resolver tal questão, ou seja, reaver a sacerdotisa sem que o fizesse de forma a não prejudicar a maet. Sim, tinha de ser cuidadoso, já que o faraó demonstrara uma irresponsabilidade gritante. É que não havia dúvida nenhuma de que poderiam entrar em confronto as duas mais fortes fontes de poder egípcio: de um lado o faraó, do outro lado o deus dos deuses. Uma coisa era certa: o reino do Egipto não poderia sair fragilizado desta contenda. Também era certo que uma sacerdotisa não seria um valor assim tão importante, pela qual se pusesse em risco a integridade da terra egípcia. Mas não era bem a sacerdotisa que estava em questão, embora lhe fosse extremamente grata, pois uma sacerdotisa com cabelos cor do fogo era raríssima, o que determinava o seu valor, bem digna de estar ao seu serviço, ele, que era o deus supremo; mas a verdadeira questão residia na ousadia que o faraó tivera, na coragem de que estava possuído para conseguir subtraí-la ao templo e levá-la para o seu palácio. Era com essa ousadia que Amon-Rá estava preocupado. De onde viera a força ao faraó, para conseguir cometer tal acto? No fundo, o faraó era um mortal, um mortal que tão frontalmente desafiava a vontade de um deus, ainda por cima o deus supremo. A solução para o problema tinha de ser muito bem ponderada...(em continuação, pág. 30- ex. X)
in A CAUSA DE MASSIFTONRÁ
Novembro/2005
quarta-feira, 8 de setembro de 2010
DURA PRAXIS SED PRAXIS
Coimbra, sete da tarde. Uma trupe, constituída por seis doutores, avança em direcção a um caloiro desprevenido. Sete da tarde! Há uma hora que deveria estar em casa. Amanhã irá aparecer no liceu (se for aluno a partir do 5º ano), ou na universidade, de cabelo todo rapado, pois não terá outra hipótese senão recorrer a um barbeiro, depois do corte ao cabelo a que a trupe o irá sujeitar, pois foi apanhado na rua depois das seis...a não ser que se refugie debaixo de um telhado e surja o seu padrinho de faculdade para o proteger.
Este o cenário a que qualquer caloiro estava sujeito, em Coimbra, até 1974. As trupes, grupos de estudantes finalistas formados por acção da tradicional e velhissima praxe coimbrã(não sei se ainda existem), vigiavam assim a cidade, no sentido de obrigarem os estudantes ao recolhimento, no intuito de promover boas horas de estudo.
Isto para dizer que, por estes dias, na minha cidade, me veio parar ás mãos um manifesto, um manifesto anti-praxe. Um manifesto escrito por estudantes universitários, da universidade de Coimbra. Fiquei banzado!
Queixam-se eles de que a praxe retira toda e qualquer dignidade ao caloiro. A praxe Coimbrã, mãe de todas as praxes existentes hoje em dia nas universidades portuguesas,a meu ver, não pretende humilhar ninguém, apenas fazer sentir ao caloiro que um curso superior é algo de muito importante na vida de cada um, demonstrando-lhe, de forma gozona, quão despido de importância ele é antes de iniciar o seu curso, e a importância que virá a ter depois de ter o curso concluído. Evidentemente que ninguém pode levar a sério os tribunais de praxe, nem os nomes «carinhosos» com que se é presenteado. Há que ter o mínimo de senso de humor, e só alguém, que toda a vida viveu dentro de uma redoma de vidro é que se pode sentir ofendido com a sua «minimização» como pessoa.
A Queima das Fitas é um símbolo da academia conimbricense, um emblema da cidade, e é impossível haver a «queima» sem existir a praxe. Mas decerto que quem subscreveu o manifesto passa bem sem a queima das fitas, sem capa e batina e sem o fado de Coimbra.
É que quem escreveu o manifesto, de uma coisa eu tenho a certeza: não é de Coimbra, e depois do curso tirado, não assimilou a mais ínfima centelha do espírito coimbrão.
É que, Coimbra, é para deixar saudades para toda a vida. Quem essas saudades não sentir, não foi merecedor de ter pisado a histórica, ancestral e gasta calçada da Alta.
sábado, 28 de agosto de 2010
MASSIFTONRÁ
...Longe de Tebas, bem perto da antiga capital do Egipto, Mênfis, o rio Nilo, que ao aproximar-se das águas do mar Mediterrâneo abria o seu caudal num imenso delta, guardava um descomunal segredo. Nas profundezas das suas águas existia algo de que os homens não suspeitavam- O Mundo dos Deuses. E a esse mundo, criado por Aton havia imensas gerações, o antigo deus, soberano de Mênfis e do Egipto, lhe dera o nome de MassiftonRá.
No seio das águas do Nilo, MassiftonRá era delimitado por densas paredes de água, densidade maior do que a da restante água que se deslocava para o mar. E dentro dessas paredes, os deuses atingiam o auge da perfeição, do equilíbrio mental de que necessitavam ter, para poderem reger, também com equilíbrio, o dia a dia da mente humana que dava vida à gloriosa terra do Egipto. Cada deus tinha uma função específica no desenrolar do quotidiano egípcio. Mas, findo cada dia de trabalho, em MassiftonRá encontravam a paz desejada, que lhes trazia repouso ao espírito e sabedoria para fazerem frente aos enormes enigmas, com que todos os dias eram confrontados. A raça humana era composta por mentes complexas, algumas que, felizmente, aplicavam a sua complexidade na execução do bem, mas, infelizmente, uma grande maioria criava uma complicada teia, onde se vinculavam sentimentos de ódio, egoísmo, vingança. E a todos esses problemas os deuses tinham de estar aptos a darem uma resposta, pela qual o equilíbrio mental e sentimental regressassem ao seio dos homens. Por essa razão MassiftonRá era tão importante… e completamente desconhecido pela espécie humana.
É claro que a grande maioria dos problemas existentes entre os homens, tinha a sua origem na nefasta intervenção do deus Seth, o único deus da míriade de deuses egípcios, que não habitava MassiftonRá. Seth, irmão de Osíris, bem cedo começou a revelar tendência para a excentricidade, a boémia, e por fim o mau carácter. Sendo assim, e já tendo por deus dos deuses Amon-Rá, este expulsou-o de MassiftonRá, com muita pena dos pais de Seth, a deusa Nut e o deus Geb, os quais, no entanto, compreenderam e aceitaram a decisão de Amon-Rá.
Os deuses tinham de estar na base do desenvolvimento humano, não na sua destruição. Mas com a expulsão de Seth, Amon-Rá viu-se na necessidade de criar uma força que tornasse impossível o acesso a MassiftonRá, por parte de entidades indesejáveis, na eventualidade criadas por Seth, pois muito embora o irmão de Osíris tivesse sido expulso da comunidade divina, isso não queria dizer que tinha perdido as suas faculdades como ser divino. Assim, Amon-Rá elegeu Sobek, o deus crocodilo, como guardião de MassiftonRá. Para o ajudar na enorme tarefa, que era de velar pela segurança de MassiftonRá, o deus Sobek recrutou uma enorme legião de crocodilos do Nilo, que consigo passaram a trabalhar. Dois desses crocodilos, que Sobek considerou como os de maior inteligência e capacidade de liderança, promoveu-os ao posto de bhokurac. Aos restantes crocodilos que integravam a sua legião defensiva, deu-lhes o posto de Taaril. Os dois bhokurac, que mais próximos estavam do deus crocodilo Sobek, chamavam-se ptahmor e belthaknor.
MassiftonRá tinha ainda ao seu serviço uma imensidão de obreiros, peixes naturais do rio Nilo, aos quais Amon-Rá concedera certos atributos. A estes peixes muito particulares, Amon-Rá deu o nome de siftos. A sua função crucial era a de, todas as noites, se dirigirem ao mundo dos homens, e quando estes dormiam, deslocavam-se aos seus locais de oração, onde atraíam para si todos os bons sentimentos e pensamentos, que haviam sido dedicados aos deuses. Por essa razão, todas as noites, uma enorme invasão de siftos tomava conta de Tebas, visitando todos os oráculos onde homens e mulheres haviam orado. Eram esses sentimentos de amor que serviam de alimento a todos os deuses. Para executarem essa função, os siftos, originariamente peixes, deslocavam-se em direcção ás margens do Nilo. Ali chegados, emergiam e automaticamente tomavam a forma de crianças. Depois, numa corrida silenciosa mas desenfreada, dirigiam-se para as zonas habitadas pelos homens. Recolhidos os bons sentimentos, que se lhes colavam à pele, que tinham por destinatários os vários deuses, os siftos, em forma de crianças, corriam estonteantemente em direcção ao Nilo; lá chegados, submergiam, voltando a tomar a forma de peixes; e logo nadavam na direcção de MassiftonRá, onde os deuses os aguardavam, ávidos pelo alimento. Os siftos emanavam um fluído especial, o qual era detectado por todos os guardiães de MassiftonRá, que assim os sabiam distinguir dos peixes normais, aos quais estava vedada a entrada. Esse fluído servia de repelente, caso um crocodilo comum visse num sifto uma potencial refeição...(em continuação, pág. 28, ex. IX)
in A CAUSA DE MASSIFTONRÁ
Novembro/2005
quarta-feira, 25 de agosto de 2010
MÚSICA DE UMA VIDA- INDIA
Gal Costa, uma das grandes vozes do Brasil, nesta India maravilhosa dos deliciosos anos 70, que ainda hoje me continua a deliciar.
domingo, 22 de agosto de 2010
UM TOQUE DE LUZ
...Caminhava sozinho, atento ao delicioso silêncio de uma cidade adormecida. Como o céu estava estrelado! Subitamente, na Rua de S. Sebastião, a cerca de duzentos metros de sua casa, saltaram-lhe ao caminho quatro indivíduos. Tinham estado escondidos na profunda escuridão de um pequeno beco. Serôdio logo os reconheceu. Eram o Narciso Conde e o seu grupo. Aí estava a resposta ao que se passara três meses antes. Serôdio estacou o passo. A sensação de perigo iminente penetrou fundo nos seus sentidos, fazendo com que a adrenalina tomasse conta de si. O batimento cardíaco disparou. Serôdio observou atentamente aqueles quatro rostos. Somente Narciso Conde denotava raiva e ódio. Os outros três tentavam apenas mostrar agressividade.
- Vocês aqui a esta hora?- perguntou Serôdio.
- È verdade- respondeu Narciso Conde- eu amanhã vou para França, trabalhar na apanha do tomate. Estou aqui para te agradecer as ricas férias que me arranjas-te.
- Eu?? Mas...
Serôdio não teve tempo de dizer mais nada. Num movimento rápido, aprendido nas aulas de artes marciais, Narciso Conde atingiu-o violentamente no rosto, com um dos pés. De um instante para o outro Serôdio sangrava abundantemente do nariz. À voz de comando de Narciso, os outros três rapazes lançaram-se sobre Serôdio, agredindo-o com murros e pontapés. Recebendo golpes sobre golpes, Serôdio foi fortemente empurrado contra a esquina formada pelo beco onde os atacantes tinham estado escondidos, e a parede de um prédio. Entorpecido pelas dores, naquela esquina bateu violentamente com a cabeça, tendo de imediato perdido os sentidos.
Breves foram os momentos da agressão, mas suficientemente poderosos para deixarem Serôdio inanimado, com profundas lesões.
Narciso Conde e o seu grupo, ao verem Serôdio por terra, sem dar sinal de si, sangrando abundantemente, desataram a fugir.
- Se calhar exagerámos- disse um dos do grupo.
- Se morrer eu envio-lhe uma coroa de « fleures»- disse Narciso Conde cinicamente.
Instintivamente, enquanto agrediam Serôdio, os quatro rapazes, possuídos por ancestrais sentimentos animalescos de caça, berraram e guincharam, pelo que acordaram algumas pessoas que dormiam nas casas vizinhas.
Serôdio estava perplexo. As dores que sentira inexplicavelmente haviam desaparecido. Ainda correu alguns metros em perseguição dos seus agressores, mas eles já iam longe. Como viu que entretanto algumas pessoas chegavam ao local, resolveu voltar para trás.
- Foi o Narciso Conde que me atacou. Por sorte estou bem- dizia ele para as pessoas que se aproximavam.
Alguma coisa não estava bem. As pessoas parecia que o não viam. Duas senhoras, olhando para a entrada do beco, levavam as mãos ao rosto, enquanto pediam desesperadamente que fosse chamada uma ambulância. Serôdio olhou para onde elas olhavam... e ficou estarrecido. Ali, no chão, estava abandonado o seu corpo ensanguentado. O seu forte cabelo russo era agora uma horrível pasta de sangue, sangue esse que lhe cobria todo o rosto, o pescoço e lhe empapara a simples camiseta que vestia. Serôdio começou a apalpar-se... e sentia-se, estava vivo, mas se calhar também estaria ali morto. Foi quando estava possuído por aquela indescritível confusão, que sentiu a aproximação de luz com uma intensidade que nunca vira. A luz era imensamente forte, mas não iluminava a rua, nem as casas, nem as pessoas, nem o seu próprio corpo para ali atirado. Apenas ele era bafejado por aquela intensa e confortável luminosidade. Junto a si, sem que tivesse dado pela sua chegada, encontrava-se uma bela senhora, vestida com compridas vestes brancas.
- Não tenhas receio, está tudo bem- disse a senhora.
- Está?- perguntou Serôdio- mas eu estou ali cheio de sangue...
- Não, tu estás aqui a falar comigo. Ali está apenas o teu corpo, a vestimenta de um tal Serôdio naquela vida.
- Aquele e eu não somos o mesmo?
- Em relação à vida terrena aquele è o Serôdio. Relativamente ao Cosmos, aquele è um corpo a quem deram o nome de Serôdio, corpo esse que tem servido de invólucro a um certo espirito que és tu, que antes de te chamares Serôdio, já tiveste outros nomes.
- Minha senhora, eu estive com amigos junto à ria. Não bebi nada...
- Sossega- disse a senhora exibindo um terno sorriso- daqui a pouco já vais entender muitas coisas- e pegando-lhe na mão guiou-o através da luz...(em continuação, pág. 50, ex. XV)
in FILHOS POBRES DA REVOLTA
MARÇO/2003
terça-feira, 17 de agosto de 2010
UMA METAMORFOSE
...Passaram-se três meses. O ano escolar chegara ao fim, os exames também. Naquele período de tempo, a vida de Narciso Conde não fora das melhores. Vivendo sob uma apertada vigilância do pai, o rapaz foi passando os dias distribuindo o tempo entre a casa e o liceu. Não que tivesse tido qualquer tipo de rebate de consciência! Nada disso. Tinha apenas medo de que a velha tivesse ido bater com a língua nos dentes à policia. Por essa razão sentia-se desconfortável na rua. Quando via um policia, « macaco cinzento» como ele chamava aos homens da Policia de Segurança Pública, evitava cruzar-se com ele. Tinha medo que o guarda ao olhar para ele descobrisse o assalto que ele fizera à casa da tia. Era um disparate, ele sabia disso. Aqueles débeis mentais nem o que estava à vista viam, quanto mais o que só existia na mente das pessoas. Era estúpida aquela sensação, mas era mais forte do que ele.
Evitando despertar as atenções sobre si, optou por na escola tomar uma atitude passiva e despercebida. Ele e o seu grupo. Da noite para o dia Narciso Conde e os seus três amigos tornaram-se simpáticos, cordiais, buscando a amizade e companhia dos outros colegas. Narciso apenas se limitava a seguir as orientações do pai. Mas aquela forma de proceder não se coadunava à sua maneira de ser. Fazia-o apenas como disfarce, pois no seu verdadeiro intimo reinava a intenção de submeter os outros à sua vontade. E se para isso tivesse de dar meia dúzia de socos, tanto melhor. Era pois com imenso sacrifício que vestiu a pele de bonzinho e simpático.
Havia ainda um outro factor que o trazia acabrunhado: o fantasma da campanha dos tomates em França. Esse seria o seu destino para as férias daquele verão. Sabia que o pai já havia tratado de tudo. E agora que os exames tinham chegado ao fim, a hora da partida estava para breve. Lá iam ficar as matas do Algarve desprovidas da sua presença. Lá ficariam também de coração desfeito todas as raparigas que por aquele Algarve ansiavam pelos seus quentes beijos de verão. Enfim, o dinheiro que não gastaria em Portugal iria ganhá-lo em França, no meio dos horríveis tomatais. Era uma tragédia que se abatera sobre a sua vida. Mas essa tragédia teve um construtor e esse era o seu colega Serôdio. Já tinha planeado uma acção de graças em agradecimento às belíssimas férias, que por vontade do Serôdio lhe calharam em sorte. Esse presente estava para muito breve.
Todos os colegas de Narciso Conde estavam estupefactos com a mudança. O antigo rufião mostrava-se agora afável, comunicativo. Com a ano lectivo a terminar, muitas raparigas suspiravam com pena de o Narciso Conde em tempos se ter mostrado um rapaz insuportável. Ele até era um bonitão. Agora que a simpatia lhe banhava o rosto, estava mesmo apetecível.
Muito desconfiado andava Serôdio. Sabia que D. Silvina fora falar com o irmão, o pai de Narciso Conde. Tomara conhecimento de que na altura não fora muito bem recebida. Sabia ainda que posteriormente D. Silvina recebera a pedido de desculpas por parte do irmão. O Narciso Conde confessara o seu delito ao pai. Tinha plena consciência de que o Narciso reconhecia nele toda a culpa pelo insucesso do assalto, e das más relações que daí advieram entre ele e o pai, o engenheiro Carlos Conde. E no entanto o Narciso não tivera uma palavra azeda para com ele, nem uma atitude agressiva, como ele esperara que viesse a acontecer. Isso era muito estranho.
Pensando em tudo isto, numa quente noite de princípios de Julho do ano de 1977, Serôdio encaminhava-se para sua casa, depois de ter estado com alguns amigos numa boa cavaqueira, sentados no muro do canal central da ria, no Cais do Cojo, absorvendo a relativa frescura que emanava da água, naquela noite tão quente. Já que ali estavam, tinham conversado sobre a triste sorte daquela ria, que em tempos fora o fluxo de vida de Aveiro e agora se tornara no seu esgoto.
A conversa fora agradável mas eram horas de procurar o aconchego da cama. Serôdio morava numa casa antiga, situada na Viela da Fonte dos Amores...(em continuação, pág. 48, ex. XIV)
in FILHOS POBRES DA REVOLTA
MARÇO/2003
Evitando despertar as atenções sobre si, optou por na escola tomar uma atitude passiva e despercebida. Ele e o seu grupo. Da noite para o dia Narciso Conde e os seus três amigos tornaram-se simpáticos, cordiais, buscando a amizade e companhia dos outros colegas. Narciso apenas se limitava a seguir as orientações do pai. Mas aquela forma de proceder não se coadunava à sua maneira de ser. Fazia-o apenas como disfarce, pois no seu verdadeiro intimo reinava a intenção de submeter os outros à sua vontade. E se para isso tivesse de dar meia dúzia de socos, tanto melhor. Era pois com imenso sacrifício que vestiu a pele de bonzinho e simpático.
Havia ainda um outro factor que o trazia acabrunhado: o fantasma da campanha dos tomates em França. Esse seria o seu destino para as férias daquele verão. Sabia que o pai já havia tratado de tudo. E agora que os exames tinham chegado ao fim, a hora da partida estava para breve. Lá iam ficar as matas do Algarve desprovidas da sua presença. Lá ficariam também de coração desfeito todas as raparigas que por aquele Algarve ansiavam pelos seus quentes beijos de verão. Enfim, o dinheiro que não gastaria em Portugal iria ganhá-lo em França, no meio dos horríveis tomatais. Era uma tragédia que se abatera sobre a sua vida. Mas essa tragédia teve um construtor e esse era o seu colega Serôdio. Já tinha planeado uma acção de graças em agradecimento às belíssimas férias, que por vontade do Serôdio lhe calharam em sorte. Esse presente estava para muito breve.
Todos os colegas de Narciso Conde estavam estupefactos com a mudança. O antigo rufião mostrava-se agora afável, comunicativo. Com a ano lectivo a terminar, muitas raparigas suspiravam com pena de o Narciso Conde em tempos se ter mostrado um rapaz insuportável. Ele até era um bonitão. Agora que a simpatia lhe banhava o rosto, estava mesmo apetecível.
Muito desconfiado andava Serôdio. Sabia que D. Silvina fora falar com o irmão, o pai de Narciso Conde. Tomara conhecimento de que na altura não fora muito bem recebida. Sabia ainda que posteriormente D. Silvina recebera a pedido de desculpas por parte do irmão. O Narciso Conde confessara o seu delito ao pai. Tinha plena consciência de que o Narciso reconhecia nele toda a culpa pelo insucesso do assalto, e das más relações que daí advieram entre ele e o pai, o engenheiro Carlos Conde. E no entanto o Narciso não tivera uma palavra azeda para com ele, nem uma atitude agressiva, como ele esperara que viesse a acontecer. Isso era muito estranho.
Pensando em tudo isto, numa quente noite de princípios de Julho do ano de 1977, Serôdio encaminhava-se para sua casa, depois de ter estado com alguns amigos numa boa cavaqueira, sentados no muro do canal central da ria, no Cais do Cojo, absorvendo a relativa frescura que emanava da água, naquela noite tão quente. Já que ali estavam, tinham conversado sobre a triste sorte daquela ria, que em tempos fora o fluxo de vida de Aveiro e agora se tornara no seu esgoto.
A conversa fora agradável mas eram horas de procurar o aconchego da cama. Serôdio morava numa casa antiga, situada na Viela da Fonte dos Amores...(em continuação, pág. 48, ex. XIV)
in FILHOS POBRES DA REVOLTA
MARÇO/2003
domingo, 15 de agosto de 2010
QUANDO UMA CARÍCIA É BRIOSA
Foi mais forte do que eu! Eu sabia que a minha Briosa ia hoje jogar à Luz. Pensei que não era a melhor forma de se começar o campeonato. Mal por mal que não perdessem por muitos, pois que isto de a Académica ir ganhar ao estádio do Benfica, que aconteceu em 2007 e 2008, foram dois rebuçados que tão depressa a mancha negra não iria provar.
Pois não é que aqui estou eu a saborear este terceiro rebuçado?! A Académica foi ganhar ao Benfica por 2-1. Afinal esta é a melhor forma de se começar o campeonato!
Grande Jorge Costa!!
Na realidade, para este blogue, não há melhor cor de fundo do que o negro. Não há mesmo! E quando, de vez em quando, surge este emblema...é uma carícia.
quarta-feira, 11 de agosto de 2010
NA HUMILDADE DO MARENOTO
Não tenho rosto, nem voz. Apenas uma alma portuguesa, que nas sombras do escuro anónimato me impeliu ao glorioso passado, contando em terra de sal uma magnífica história de mar,na simplicidade de mim a glória de um povo, esta lusitana paixão que emana da humildade do marenoto.
domingo, 1 de agosto de 2010
UM «BATE-ESTRADAS» IMPREGNADO DE SILÊNCIO
Á memória do Manuel da Conceição Lopes, combatente do ultramar, militar no Ninda.
...Por vezes Álvaro deixava transparecer, involuntariamente, a tristeza e a amargura que lhe ia na alma.
« È de noite. Estou à porta desta cabana que ostenta o nome pomposo de messe de oficiais. Estou agitado, sofro de insónia. Saí da camarata e vim para aqui. Fui buscar uma mesa e um banco e aqui estou na rua, à luz frouxa duma lâmpada carcomida pelos dejectos dos imensos insectos, colocada sobre a porta de entrada por onde passam os nossos galões. E bem venturosa è esta fraca luz. Brevemente não terei mais nenhuma, pois à meia-noite o gerador è desligado. Aqui sentado deixo que a noite me envolva e me acaricie.
Neste momento, nos seis abrigos de vigia que envolvem o Ninda, encontram-se de sentinela homens do pelotão que eu comando. Nunca a noite se me apresentou tão negra como neste minúsculo ponto de África. A escuridão è tão densa que consigo ver daqui a ponta incandescente de um cigarro que uma sentinela está a fumar. Hoje não há luar. O profundo silêncio è algo que aí na Metrópole nós não conhecemos. Nestas alturas estou convicto de que os corações dos que estão acordados latejam de saudade, pois a verdadeira natureza, entrando-nos pelos ouvidos e nariz, purifica a nossa alma, trazendo ao de cima o que de melhor há em nós. E decerto que o que de melhor há em mim è o amor, a paixão que sinto por ti. Como te beijaria, como te envolveria, como te amaria se neste momento estivesses a meu lado. O fogo desta paixão, que não tem como se consumir, torna-se aliado da saudade. Esta por sua vez pressiona-me o coração, o que faz com que as lágrimas corram ligeiras pelo meu rosto, agora que só Deus me vê e Dele eu não tenho vergonha. São essas lágrimas que acalmam aquele fogo. Com certeza que estes momentos de amargura são comuns a todos os que comigo coabitam no Ninda.
A guerra è má, cruel, mas tem uma faceta boa: une os homens num abraço tão apertado, tão profundo, que os amigos da tropa têm para nós um sentido diferente, uma outra versão de amigo. E penso que ficarão para toda a vida. Pelo que tenho ouvido de veteranos, è bem possível que um dia mais tarde eu venha a ter saudades deste lugar de inebriante beleza, mas também de permanente perigo. Acontece que essa inexplicável saudade tem muito nexo. Ter saudades dos maus momentos da tropa è ter saudades de uma juventude que já foi nossa. E è sem dúvida nenhuma uma homenagem à solidariedade, ao sentimento de entre ajuda, à manifestação de uma verdadeira, sã e desinteressada amizade.
Não sofras com esta carta. Já me sinto muito melhor. Tive a sensação de que algo de muito belo se aproximou de mim, me tocou e levantou o meu astral. Envio-te esta carta apenas para que, através dela, possas sentir a ambiência de uma verdadeira noite africana, porque este bate estradas vai impregnado de silêncio, de escuridão e de aroma de África.
Como eu te amo Loirinha».
E memorizando as notícias de Álvaro, envolvida por um amor tão distante, mas tão capaz de fazer o seu coração bater de emoção, Catarina chegou ao café Nicola, surpreendida por já ali se encontrar...(pág. 62- ex. XIII- em continuação)
in VISITADOS
Novembro/1999
...Por vezes Álvaro deixava transparecer, involuntariamente, a tristeza e a amargura que lhe ia na alma.
« È de noite. Estou à porta desta cabana que ostenta o nome pomposo de messe de oficiais. Estou agitado, sofro de insónia. Saí da camarata e vim para aqui. Fui buscar uma mesa e um banco e aqui estou na rua, à luz frouxa duma lâmpada carcomida pelos dejectos dos imensos insectos, colocada sobre a porta de entrada por onde passam os nossos galões. E bem venturosa è esta fraca luz. Brevemente não terei mais nenhuma, pois à meia-noite o gerador è desligado. Aqui sentado deixo que a noite me envolva e me acaricie.
Neste momento, nos seis abrigos de vigia que envolvem o Ninda, encontram-se de sentinela homens do pelotão que eu comando. Nunca a noite se me apresentou tão negra como neste minúsculo ponto de África. A escuridão è tão densa que consigo ver daqui a ponta incandescente de um cigarro que uma sentinela está a fumar. Hoje não há luar. O profundo silêncio è algo que aí na Metrópole nós não conhecemos. Nestas alturas estou convicto de que os corações dos que estão acordados latejam de saudade, pois a verdadeira natureza, entrando-nos pelos ouvidos e nariz, purifica a nossa alma, trazendo ao de cima o que de melhor há em nós. E decerto que o que de melhor há em mim è o amor, a paixão que sinto por ti. Como te beijaria, como te envolveria, como te amaria se neste momento estivesses a meu lado. O fogo desta paixão, que não tem como se consumir, torna-se aliado da saudade. Esta por sua vez pressiona-me o coração, o que faz com que as lágrimas corram ligeiras pelo meu rosto, agora que só Deus me vê e Dele eu não tenho vergonha. São essas lágrimas que acalmam aquele fogo. Com certeza que estes momentos de amargura são comuns a todos os que comigo coabitam no Ninda.
A guerra è má, cruel, mas tem uma faceta boa: une os homens num abraço tão apertado, tão profundo, que os amigos da tropa têm para nós um sentido diferente, uma outra versão de amigo. E penso que ficarão para toda a vida. Pelo que tenho ouvido de veteranos, è bem possível que um dia mais tarde eu venha a ter saudades deste lugar de inebriante beleza, mas também de permanente perigo. Acontece que essa inexplicável saudade tem muito nexo. Ter saudades dos maus momentos da tropa è ter saudades de uma juventude que já foi nossa. E è sem dúvida nenhuma uma homenagem à solidariedade, ao sentimento de entre ajuda, à manifestação de uma verdadeira, sã e desinteressada amizade.
Não sofras com esta carta. Já me sinto muito melhor. Tive a sensação de que algo de muito belo se aproximou de mim, me tocou e levantou o meu astral. Envio-te esta carta apenas para que, através dela, possas sentir a ambiência de uma verdadeira noite africana, porque este bate estradas vai impregnado de silêncio, de escuridão e de aroma de África.
Como eu te amo Loirinha».
E memorizando as notícias de Álvaro, envolvida por um amor tão distante, mas tão capaz de fazer o seu coração bater de emoção, Catarina chegou ao café Nicola, surpreendida por já ali se encontrar...(pág. 62- ex. XIII- em continuação)
in VISITADOS
Novembro/1999
quarta-feira, 28 de julho de 2010
PALAVRAS DE MOXICO
...Naquele dia de Novembro frio, de 1973, Catarina saíra de sua casa, no Alto da Conchada, após o almoço, e encaminhava-se para o café Nicola. Teria de caminhar pela rua íngreme que descia da Conchada, atravessaria o Beco de Montarroio, passaria junto ao Pátio da Inquisição, mais uma vez admiraria a imponência antiga de um Portugal velho, traduzida na magnífica fachada da Igreja de Santa Cruz, subiria a Rua Visconde da Luz, e já na Ferreira Borges o Nicola a esperava como acontecia quase todos os dias.
O Nicola era por excelência o café que muitos estudantes, tal como Catarina, elegiam para seu refúgio de estudo e lazer. Ali se edificavam grandes exames, ali nasciam grandes amores platónicos, ali se choravam lágrimas vertidas por corações rasgados, penando uma desilusão amorosa.
Catarina ia bela. Vestia calças vermelhas, justas às pernas, e muito largas junto aos pés. No «sino» das calças, a letras cinzentas, estava inscrita a frase «make flowers not war». Vestia ainda uma grossa camisola de lã preta, de gola alta, bem cingida ao corpo, e um pesado casaco preto, bordado à frente com caracteres vermelhos e cinzentos, que começavam junto aos ombros e desciam até ao peito, salientando o volume dos seios. O preto do casaco e o vermelho das calças contrastavam com o brilhante cabelo loiro, que lhe descia até meio das costas. Decerto não passava despercebida . Mas ela não dava atenção aos olhares provocadores que lhe eram dirigidos. Assim estava bem com a vida, e o sol frio mas radioso que beijava Coimbra naquele dia de Novembro, despertara nela o orgulho em ser bonita.
De manhã recebera mais uma carta de Álvaro. Ela vivia das cartas e para as cartas. Desde que Álvaro partira para Angola, já havia nove meses, escrevera aerogramas sem conta e os recebera, os « bate estradas » como Álvaro chamava àquelas deliciosas cartas. Ele cumpria com o que prometera. Conseguira transmitir-lhe toda a envoltura de Angola.
« Minha loirinha, após te ter escrito a última carta, percorri quatrocentos quilómetros. A minha companhia foi transferida para um aquartelamento no Distrito do Moxico. È uma zona densamente arborizada. Para meu espanto, vim encontrar este quartel bem no coração da floresta. Ao quartel chamam-lhe Ninda. A cerca de quinhentos metros passa o rio Cuango. Quando nos vamos abastecer de água, temos de montar uma forte vigilância, pois caso contrário podemo-nos tornar vulneráveis. Nunca sabemos quando o turra nos espreita.
Perto do aquartelamento existe uma pista para aterragem de avionetas, que nos trazem o fornecimento de alimentos, tabaco e medicamentos, bem como os nossos adoráveis bate estradas, pelos quais as nossas ninfas da Metrópole nos aquecem os corações.
Na selva existem árvores colossais, tanto em altura como em diâmetro. De manhã, sob o sol abrasador de África, somos envolvidos pelo som indescritível de milhares de aves a cantarem, e gritos de outros tantos macacos. Não fosse a guerra, diria que o local onde me encontro è decerto o paraíso. A cerca de um quilómetro do Ninda existe uma sanzala. Lá vivem nativos, pertencentes ao povo Nhemba. Não têm sido hostis. Um ou outro nativo fala um português rudimentar, que dá perfeitamente para nos entendermos. Há dias fomos à caça e apanhámos cinco facuqueros, javalis africanos. Levámo-lhes um. Eles ficaram muito agradecidos. È conveniente termos boas relações com esta gente. Entre tantos inimigos, se tivermos alguns amigos, teremos arranjado uma fonte de apoio que nos pode vir a ser de grande utilidade...» (pág. 60- ex. XII- em continuação)
in Visitados
Novembro/1999
O Nicola era por excelência o café que muitos estudantes, tal como Catarina, elegiam para seu refúgio de estudo e lazer. Ali se edificavam grandes exames, ali nasciam grandes amores platónicos, ali se choravam lágrimas vertidas por corações rasgados, penando uma desilusão amorosa.
Catarina ia bela. Vestia calças vermelhas, justas às pernas, e muito largas junto aos pés. No «sino» das calças, a letras cinzentas, estava inscrita a frase «make flowers not war». Vestia ainda uma grossa camisola de lã preta, de gola alta, bem cingida ao corpo, e um pesado casaco preto, bordado à frente com caracteres vermelhos e cinzentos, que começavam junto aos ombros e desciam até ao peito, salientando o volume dos seios. O preto do casaco e o vermelho das calças contrastavam com o brilhante cabelo loiro, que lhe descia até meio das costas. Decerto não passava despercebida . Mas ela não dava atenção aos olhares provocadores que lhe eram dirigidos. Assim estava bem com a vida, e o sol frio mas radioso que beijava Coimbra naquele dia de Novembro, despertara nela o orgulho em ser bonita.
De manhã recebera mais uma carta de Álvaro. Ela vivia das cartas e para as cartas. Desde que Álvaro partira para Angola, já havia nove meses, escrevera aerogramas sem conta e os recebera, os « bate estradas » como Álvaro chamava àquelas deliciosas cartas. Ele cumpria com o que prometera. Conseguira transmitir-lhe toda a envoltura de Angola.
« Minha loirinha, após te ter escrito a última carta, percorri quatrocentos quilómetros. A minha companhia foi transferida para um aquartelamento no Distrito do Moxico. È uma zona densamente arborizada. Para meu espanto, vim encontrar este quartel bem no coração da floresta. Ao quartel chamam-lhe Ninda. A cerca de quinhentos metros passa o rio Cuango. Quando nos vamos abastecer de água, temos de montar uma forte vigilância, pois caso contrário podemo-nos tornar vulneráveis. Nunca sabemos quando o turra nos espreita.
Perto do aquartelamento existe uma pista para aterragem de avionetas, que nos trazem o fornecimento de alimentos, tabaco e medicamentos, bem como os nossos adoráveis bate estradas, pelos quais as nossas ninfas da Metrópole nos aquecem os corações.
Na selva existem árvores colossais, tanto em altura como em diâmetro. De manhã, sob o sol abrasador de África, somos envolvidos pelo som indescritível de milhares de aves a cantarem, e gritos de outros tantos macacos. Não fosse a guerra, diria que o local onde me encontro è decerto o paraíso. A cerca de um quilómetro do Ninda existe uma sanzala. Lá vivem nativos, pertencentes ao povo Nhemba. Não têm sido hostis. Um ou outro nativo fala um português rudimentar, que dá perfeitamente para nos entendermos. Há dias fomos à caça e apanhámos cinco facuqueros, javalis africanos. Levámo-lhes um. Eles ficaram muito agradecidos. È conveniente termos boas relações com esta gente. Entre tantos inimigos, se tivermos alguns amigos, teremos arranjado uma fonte de apoio que nos pode vir a ser de grande utilidade...» (pág. 60- ex. XII- em continuação)
in Visitados
Novembro/1999
domingo, 25 de julho de 2010
AO ENCONTRO DOS ÚLTIMOS CAVALEIROS TEMPLÁRIOS
Estou de regresso de uma viagem fascinante, tendo tido por guia a jovem autora Robyn Young. Com mestria surpreendente, dada a sua idade, fui levado a conhecer os bastidores da maior, mais famosa e mais poderosa ordem militar que jamais existiu: a Ordem dos Templários.
Nas 1465 páginas, distribuídas por três volumes (A Irmandade, A Cruzada e Requiem), o enredo desenrola-se em Inglaterra, França, Escócia e Palestina, aqui com maior incidência na cidade de Acre, último bastião Franco na Terra Santa- Outremer (havendo lugar a uma breve alusão à cidade de Tomar, cidade portuguesa templária por excelência).
A partir de 1260, acompanhando o jovem sargento do Templo, William Campbell, fui de encontro ás cerimonias iniciáticas, pelas quais os sargentos do Templo eram iniciados como cavaleiros templários. Seguindo de perto a vida do jovem cavaleiro, fui conhecendo as tramas da alta política de então, onde se envolveram templários, reis, ministros e o papa, e em que Campbell se enredou, vindo a tornar-se num importante comandante. Não esqueceu a autora de me transportar ao seio da sociedade muçulmana da época, onde tive a oportunidade de contactar a outra perspectiva das cruzadas.
Uma narrativa apaixonante, verdadeiramente arrebatadora, sobre os últimos quarenta e sete anos da existência de dois séculos, da Ordem dos Templários, extinta no dia 13 de Outubro de 1307, quando tinha por Grão-Mestre, o último grão-mestre, Jacques de Molay.
Uma magnífica simbiose entre ficção e realidade, onde se sente ter havido um exaustivo trabalho de pesquisa, numa escrita de fluidez rica, simples, mas tremendamente eficaz. Uma obra que recomendo a todos os que sintam algum fascínio pela Ordem dos Templários.
sexta-feira, 23 de julho de 2010
NUM DOMINGO DE OUTUBRO...
...Os grilos cantavam a sua melodia estival. Eram acompanhados pelo coaxar macio e sereno das rãs. Num quadro de maravilha, as silhuetas de seis carvalhos recortavam-se contra a imagem luminosa e bela de uma lua, que sorrindo a uma noite de verão, subia para ocupar o seu lugar no céu. A doçura da natureza não combinava com a amargura do íntimo do Caminhante. Fora um dia duro. O luar iluminava-lhe o rosto, brilhante de lágrimas. O tempo de inactividade estava a chegar ao fim. Sem saberem, todos lhe pediam que agisse. Brevemente iria fazê-lo.
Num Domingo de Outubro de 1922 realizou-se o casamento de Américo Afonso e de Luísa. A Casa das Leis foi o palco da cerimónia simples de união entre dois amantes. Casaram-se pelo civil. D. Vitoriana ficou muito triste por não poder ver o seu filho perante o altar católico, numa cerimónia religiosa que com certeza a encheria de alegria. Mas dado o estado civil de Luísa, essa cerimónia era de todo impossível. Foi este o único aspecto do casamento do filho que verdadeiramente a entristeceu. O povo falava. O povo escandalizava-se. Mas se o fazia, era mais por inveja do que por outra razão. Até aí, Luísa sempre fora estimada por todos. D. Vitoriana sentia que o filho lhe arranjara uma nora em condições. Na verdade, o dinheiro não era tudo na vida. Se as qualidades humanas já não tinham valor, para onde iria o mundo?
Pela segunda vez Luísa abandonava a casa de seus pais. Comparando a simplicidade da casa da Quinta do Louro com a sumptuosidade da Casa das Leis, Luísa melhorara em muito a sua vida com aquele segundo casamento. Da riqueza assim oferecida beneficiavam também a pequena Rosa e o jovem Carlos Avilar. Os dois pequenos, partindo de uma vivência inadaptada ao novo ambiente, começaram progressivamente a ambientar-se ao luxo daquelas paredes e a conquistarem a verdadeira estima do padrasto e dos avós adoptivos.
Passada que fora uma lua de mel cheia de encanto e romance, vivida no paradisíaco Hotel do Buçaco, onde desfrutaram da envolvência outonal de uma floresta matizada de ouro, regressaram ao Bombarral. Em finais desse mês de Outubro, no aconchego da intimidade do quarto, Luísa disse a Américo:
- Chegou a altura de te revelar um segredo.
- Um segredo? - perguntou Américo com perplexidade.
- Sim, um grande segredo. Espero que me compreendas.
- Diz Luísa, fala - dizia Américo deveras curioso, sem no entanto deixar de sentir um pouco de preocupação.
- Com quem è que tu achas que o Carlos se parece?
- O teu filho? Não sei, não tenho jeito para tirar parecenças, mas acho que contigo não é. Só se for com o António, mas eu nunca o conheci.
- O Carlos não se parece nem comigo nem com o António, porque ele não é nosso filho.
- O quê? O Carlos não é teu filho?
- Não.
- Mas eu sempre o conheci agarrado às tuas saias.
- O António trouxe-o deveria ele ter um ano de idade.
- Foi uma adopção?
- Não, foi talvez um salvamento.
- Mas então, quem são os pais do miúdo? Nasceu onde?... (pág. 93, ex. XXXI-em continuação)
in QUANDO UM ANJO PECA
Março/1998
Num Domingo de Outubro de 1922 realizou-se o casamento de Américo Afonso e de Luísa. A Casa das Leis foi o palco da cerimónia simples de união entre dois amantes. Casaram-se pelo civil. D. Vitoriana ficou muito triste por não poder ver o seu filho perante o altar católico, numa cerimónia religiosa que com certeza a encheria de alegria. Mas dado o estado civil de Luísa, essa cerimónia era de todo impossível. Foi este o único aspecto do casamento do filho que verdadeiramente a entristeceu. O povo falava. O povo escandalizava-se. Mas se o fazia, era mais por inveja do que por outra razão. Até aí, Luísa sempre fora estimada por todos. D. Vitoriana sentia que o filho lhe arranjara uma nora em condições. Na verdade, o dinheiro não era tudo na vida. Se as qualidades humanas já não tinham valor, para onde iria o mundo?
Pela segunda vez Luísa abandonava a casa de seus pais. Comparando a simplicidade da casa da Quinta do Louro com a sumptuosidade da Casa das Leis, Luísa melhorara em muito a sua vida com aquele segundo casamento. Da riqueza assim oferecida beneficiavam também a pequena Rosa e o jovem Carlos Avilar. Os dois pequenos, partindo de uma vivência inadaptada ao novo ambiente, começaram progressivamente a ambientar-se ao luxo daquelas paredes e a conquistarem a verdadeira estima do padrasto e dos avós adoptivos.
Passada que fora uma lua de mel cheia de encanto e romance, vivida no paradisíaco Hotel do Buçaco, onde desfrutaram da envolvência outonal de uma floresta matizada de ouro, regressaram ao Bombarral. Em finais desse mês de Outubro, no aconchego da intimidade do quarto, Luísa disse a Américo:
- Chegou a altura de te revelar um segredo.
- Um segredo? - perguntou Américo com perplexidade.
- Sim, um grande segredo. Espero que me compreendas.
- Diz Luísa, fala - dizia Américo deveras curioso, sem no entanto deixar de sentir um pouco de preocupação.
- Com quem è que tu achas que o Carlos se parece?
- O teu filho? Não sei, não tenho jeito para tirar parecenças, mas acho que contigo não é. Só se for com o António, mas eu nunca o conheci.
- O Carlos não se parece nem comigo nem com o António, porque ele não é nosso filho.
- O quê? O Carlos não é teu filho?
- Não.
- Mas eu sempre o conheci agarrado às tuas saias.
- O António trouxe-o deveria ele ter um ano de idade.
- Foi uma adopção?
- Não, foi talvez um salvamento.
- Mas então, quem são os pais do miúdo? Nasceu onde?... (pág. 93, ex. XXXI-em continuação)
in QUANDO UM ANJO PECA
Março/1998
terça-feira, 20 de julho de 2010
DA ESTRADA DA DANADA DA VIDA VEM O TI ZÉ
...A taberna do Ti Chico Bento ainda estava aberta. Mas o Caminhante passou ao lado. A conversa que tivera com o pároco concentrara-o apenas no grande propósito que o obrigava a manter-se em Alfeizerão. O diálogo com o padre reavivara as memórias do passado, levara lume às feridas espirituais que se recusavam a cicatrizar. O Caminhante vivia o presente de uma forma superficial. A sua força, o seu verdadeiro ser encontrava-se no passado, o mesmo que fazia naquele momento acelerar as batidas do coração. Que memórias tão profundas seriam aquelas?
Entrou na herdade. Ao encaminhar-se para o minúsculo casebre que lhe servia de habitação, situado no meio do casario trabalhador, o Caminhante passou pela casa de Lucinda Matias. Aquela mulher era um mistério. A cor vermelha e alegre do seu farto cabelo, contrastava com a permanente tristeza do preto da roupa que usava. Que ele soubesse, àquela mulher não lhe morrera nenhum familiar. Porquê então o luto permanente?
A noite já dava luz às estrelas e à lua. A porta de entrada da casa de Lucinda encontrava-se entreaberta. Cá fora, na soleira da porta, estava sentado um rapazinho. Era o Hélder. Com um pequeno pauzito desenhava rabiscos no chão arenoso. Estava triste e perdido, viajando sentado nos pensamentos velozes que o transportavam ao limite dos seus conhecimentos, sabedorias débeis, próprias de um tenro jovem.
- Boa noite Hélder- disse o Caminhante.
- Boa noite Ti Zé da Estrada - respondeu Hélder.
- É do meu olho são ou estás mesmo triste? - perguntou o Caminhante.
- Pois estou sim senhor. E não é para estar? Sempre que eu faço anos, a minha mãe farta-se de chorar.
- Não chorará ela de alegria? É sempre mais um ano que vingaste.
- Não é nada disso não senhor. É mesmo um chorar de tristeza. Hoje faço treze anos e foram lágrimas até não mais acabar.
- Ouve rapaz, a vida é uma coisa muito séria. A danada da vida, para alguns é muito boa, mas para outros pode ser muito difícil. Se a tua mãe chora sempre que fazes anos, é porque lá terá as suas razões, razões essas que talvez seja cedo para tu perceberes. Mas de uma coisa fica tu ciente, o amor que ela tem por ti é muito grande. Vai, vai ter com ela e abraça-a, acompanha-a. Ela está a precisar do teu apoio.
- Ó Ti Zé da Estrada, quem o ouve falar até pensa que vossemecê está dentro da cabeça da minha mãe. Parece saber tudo.
- Não meu rapaz, eu não sei nada. Se soubesse tudo não era agricultor. Mas há uma coisa de que eu sei muito, é de vida. Antes de tu nasceres já havia mundo e eu já por cá andava. É natural que conheça algumas coisas que tu ainda terás de aprender. Tem confiança em mim. Vai pelo que eu te digo. A tua mãe não tem prazer nenhum em chorar. Se o faz é porque o seu coração está magoado.
- Comigo? - perguntou Hélder.
- Não, não é contigo. É com a vida.
- E porque razão é que isso acontece sempre que eu faço anos? A minha mãe não chora quando o meu irmão Pedro faz anos.
- Não te martirizes com isso. Contenta-te com a certeza de que aquelas lágrimas nada têm a ver contigo. Fazem parte da vida, uma vida que tu um dia irás entender. Agora vai, vai dar um forte abraço à tua mãe. Ela merece. Boa noite Hélder.
- Boa noite Ti Zé da Estrada.
O Caminhante seguiu o seu caminho, na ânsia de repousar o corpo cansado na enxerga humilde... (pág. 90- ex. XXX- em continuação)
in QUANDO UM ANJO PECA
Março/1998
Entrou na herdade. Ao encaminhar-se para o minúsculo casebre que lhe servia de habitação, situado no meio do casario trabalhador, o Caminhante passou pela casa de Lucinda Matias. Aquela mulher era um mistério. A cor vermelha e alegre do seu farto cabelo, contrastava com a permanente tristeza do preto da roupa que usava. Que ele soubesse, àquela mulher não lhe morrera nenhum familiar. Porquê então o luto permanente?
A noite já dava luz às estrelas e à lua. A porta de entrada da casa de Lucinda encontrava-se entreaberta. Cá fora, na soleira da porta, estava sentado um rapazinho. Era o Hélder. Com um pequeno pauzito desenhava rabiscos no chão arenoso. Estava triste e perdido, viajando sentado nos pensamentos velozes que o transportavam ao limite dos seus conhecimentos, sabedorias débeis, próprias de um tenro jovem.
- Boa noite Hélder- disse o Caminhante.
- Boa noite Ti Zé da Estrada - respondeu Hélder.
- É do meu olho são ou estás mesmo triste? - perguntou o Caminhante.
- Pois estou sim senhor. E não é para estar? Sempre que eu faço anos, a minha mãe farta-se de chorar.
- Não chorará ela de alegria? É sempre mais um ano que vingaste.
- Não é nada disso não senhor. É mesmo um chorar de tristeza. Hoje faço treze anos e foram lágrimas até não mais acabar.
- Ouve rapaz, a vida é uma coisa muito séria. A danada da vida, para alguns é muito boa, mas para outros pode ser muito difícil. Se a tua mãe chora sempre que fazes anos, é porque lá terá as suas razões, razões essas que talvez seja cedo para tu perceberes. Mas de uma coisa fica tu ciente, o amor que ela tem por ti é muito grande. Vai, vai ter com ela e abraça-a, acompanha-a. Ela está a precisar do teu apoio.
- Ó Ti Zé da Estrada, quem o ouve falar até pensa que vossemecê está dentro da cabeça da minha mãe. Parece saber tudo.
- Não meu rapaz, eu não sei nada. Se soubesse tudo não era agricultor. Mas há uma coisa de que eu sei muito, é de vida. Antes de tu nasceres já havia mundo e eu já por cá andava. É natural que conheça algumas coisas que tu ainda terás de aprender. Tem confiança em mim. Vai pelo que eu te digo. A tua mãe não tem prazer nenhum em chorar. Se o faz é porque o seu coração está magoado.
- Comigo? - perguntou Hélder.
- Não, não é contigo. É com a vida.
- E porque razão é que isso acontece sempre que eu faço anos? A minha mãe não chora quando o meu irmão Pedro faz anos.
- Não te martirizes com isso. Contenta-te com a certeza de que aquelas lágrimas nada têm a ver contigo. Fazem parte da vida, uma vida que tu um dia irás entender. Agora vai, vai dar um forte abraço à tua mãe. Ela merece. Boa noite Hélder.
- Boa noite Ti Zé da Estrada.
O Caminhante seguiu o seu caminho, na ânsia de repousar o corpo cansado na enxerga humilde... (pág. 90- ex. XXX- em continuação)
in QUANDO UM ANJO PECA
Março/1998
domingo, 18 de julho de 2010
DUO OURO NEGRO- UM COMETA DE VIBRAÇÃO MUSICAL QUE NÃO MAIS REGRESSARÁ
Há dias, a desfolhar uma revista especializada em música,onde são apresentados todos os festivais rock que se vão fazendo por esse país, em que ao leitor são apresentadas as histórias desconhecidas das suas bandas favoritas, toda essa informação acompanhada por fotografias superproduzidas, surgiu-me, subitamente, uma fotografia antiga. No meio de toda a panóplia de músicos e músicas das mais variadas correntes, eis que ali, naquela página, o Milo Macmahon e o Raúl Indipwo, no sossego da sua arte, acompanhados pelas suas violas acústicas, cantavam uma das suas belíssimas canções. Naquela revista havia espaço para o DUO OURO NEGRO.
Fui habituado a ouvir o Duo Ouro Negro. A nenhum português da minha geração esse nome passará despercebido.
No artigo, que acompanhava a fotografia, tive oportunidade de conhecer um pouco melhor a história deste grupo emblemático da música popular portuguesa, de total influência africana, mais propriamente angolana, pois tanto o Raúl, como o Milo, eram naturais de Angola. E eles cantaram em todos os continentes, tendo actuado no Olympia de Paris em 1967.
O Duo Ouro Negro, pode-se dizer terminou em 1985, aquando da morte de um dos seus membros- O Milo, muito embora o Raúl tenha perpetuado a sua memória e as músicas do Duo pelos anos fora, apresentando-se sempre vestido de branco, até a 2006, ano em que também ele faleceu. E foi para lembrar a sua morte que a revista que eu desfolhava publicou o artigo.
Sensibilizou-me! Neste país ainda vai havendo quem tenha sensibilidade suficiente para conseguir olhar para trás, e reconhecer o mérito de quem, com simplicidade, muito justamente o ganhou.
Termina o autor dizendo que «..nos últimos anos tornaram-se alvo da ignorância e do esquecimento. Mas, como todos os cometas, deixaram um rasto que é preciso seguir».
A música que escolhi para acompanhar este texto- vou levar-te comigo- de 1984, foi a última música criada pelo Duo Ouro Negro.
Ao autor do artigo- Jorge Pires, lhe faço companhia numa homenagem sincera aos dois elementos que constituíram o Duo Ouro Negro: Milo Macmahon e Raúl Indipwo.
sexta-feira, 16 de julho de 2010
A VILAFRANCADA
...Entretanto, em 1822, no dia 23 de Setembro, é promulgada a Constituição Portuguesa que dá a liberdade de expressão aos cidadãos. Portugal afastava-se assim do regime absoluto. A Constituição foi a génese de todos os conflitos que estavam para chegar, muito embora, fosse, concomitantemente, um bálsamo para a repressão que até ali fora exercida sobre o povo.
Pois é, a política é sempre um pau de dois bicos.
E os problemas não se fizeram esperar. Enquanto que o rei D. João VI jurava a constituição, a rainha D. Carlota Joaquina recusou fazê-lo, colocando-se, ela própria, à frente de uma conspiração que devolvesse ao reino o regime absolutista.
Nesse ano de 1822 eu estava a terminar o meu curso de medicina, em Coimbra. Em toda a universidade foi uma enorme alegria o juramento da Constituição por parte de Sua Majestade. E, se porventura, se aguardava a reacção da aristocracia mais conservadora, nunca se imaginou que essa reacção à implementação do liberalismo em Portugal, viesse de onde veio – da própria rainha D. Carlota Joaquina, e do seu filho D. Miguel. Eu, quando soube que, nesse mesmo ano, a rainha conspirava para depor o seu marido do trono e lá fazer sentar o infante D. Miguel, fiquei convicto de que tendo o liberalismo adversários deste calibre, Portugal iria ser invadido de novo, agora não por franceses, mas por portugueses.
Aquela notícia caiu-me bem cá no fundo do meu ser. Portugal de uma guerra civil não se livrava. Mas eu iria ter a minha pacata actividade de médico. A minha guerra seria contra as infecções e os micróbios.
Do lugar em que me encontro e onde escrevo estas linhas, olhando para esse já distante passado, e sendo agora o que sou, sei do poder da força da natureza humana, e o quanto pode alterar o rumo das vidas dos homens.
Os primeiros sinais da guerra civil que o destino colocava em marcha para Portugal, logo se fizeram sentir. Reagindo à conspiração que contra o rei se organizava, nesse ano de 1822, os conspiradores absolutistas foram presos; mas volvidos quatro meses, a 23 de Fevereiro de 1823, uma nova acção antiliberal foi mais uma vez abafada pelo governo do reino, revolta essa liderada pelo general Manuel da Silveira. Era constante a movimentação de tropas de um e de outro lado. O general Manuel da Silveira, Conde de Amarante, fugiu para Espanha, enquanto a coroa confiscava todos os seus bens.
Três meses depois, em 27 de Maio de 1823, teve lugar uma nova investida das forças absolutistas, esta, no entanto, muito mais perigosa do que a anterior, pois voltava a ter como cérebros da conspiração a própria rainha D. Carlota Joaquina e o seu filho, o infante D. Miguel. Dado o rei ter cedido a este contra-ataque, por parte da sua esposa e do seu filho mais novo, e porque foi perpetrado em Vila Franca de Xira, ficou conhecido para a história como a Vilafrancada...(pág. 12- ex. V- em continuação)
in ALMA DE LIBERAL
Junho/2009
Pois é, a política é sempre um pau de dois bicos.
E os problemas não se fizeram esperar. Enquanto que o rei D. João VI jurava a constituição, a rainha D. Carlota Joaquina recusou fazê-lo, colocando-se, ela própria, à frente de uma conspiração que devolvesse ao reino o regime absolutista.
Nesse ano de 1822 eu estava a terminar o meu curso de medicina, em Coimbra. Em toda a universidade foi uma enorme alegria o juramento da Constituição por parte de Sua Majestade. E, se porventura, se aguardava a reacção da aristocracia mais conservadora, nunca se imaginou que essa reacção à implementação do liberalismo em Portugal, viesse de onde veio – da própria rainha D. Carlota Joaquina, e do seu filho D. Miguel. Eu, quando soube que, nesse mesmo ano, a rainha conspirava para depor o seu marido do trono e lá fazer sentar o infante D. Miguel, fiquei convicto de que tendo o liberalismo adversários deste calibre, Portugal iria ser invadido de novo, agora não por franceses, mas por portugueses.
Aquela notícia caiu-me bem cá no fundo do meu ser. Portugal de uma guerra civil não se livrava. Mas eu iria ter a minha pacata actividade de médico. A minha guerra seria contra as infecções e os micróbios.
Do lugar em que me encontro e onde escrevo estas linhas, olhando para esse já distante passado, e sendo agora o que sou, sei do poder da força da natureza humana, e o quanto pode alterar o rumo das vidas dos homens.
Os primeiros sinais da guerra civil que o destino colocava em marcha para Portugal, logo se fizeram sentir. Reagindo à conspiração que contra o rei se organizava, nesse ano de 1822, os conspiradores absolutistas foram presos; mas volvidos quatro meses, a 23 de Fevereiro de 1823, uma nova acção antiliberal foi mais uma vez abafada pelo governo do reino, revolta essa liderada pelo general Manuel da Silveira. Era constante a movimentação de tropas de um e de outro lado. O general Manuel da Silveira, Conde de Amarante, fugiu para Espanha, enquanto a coroa confiscava todos os seus bens.
Três meses depois, em 27 de Maio de 1823, teve lugar uma nova investida das forças absolutistas, esta, no entanto, muito mais perigosa do que a anterior, pois voltava a ter como cérebros da conspiração a própria rainha D. Carlota Joaquina e o seu filho, o infante D. Miguel. Dado o rei ter cedido a este contra-ataque, por parte da sua esposa e do seu filho mais novo, e porque foi perpetrado em Vila Franca de Xira, ficou conhecido para a história como a Vilafrancada...(pág. 12- ex. V- em continuação)
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Junho/2009
quarta-feira, 5 de maio de 2010
O GRITO DO IPIRANGA
...Na universidade de Coimbra foi uma imensa alegria quando se soube que, nesse ano de 1820, o general Beresford, ao regressar do Brasil, fora impedido de desembarcar por militares revoltosos, que oriundos do Porto, marcharam sobre Lisboa, desafiando assim o regime absoluto inglês. O general Beresford não voltou a pisar solo português. O liberalismo ganhava consistência, até porque já tinha ganhado um mártir. Três anos antes, em 1817, fora descoberta uma conspiração, que pretendia o afastamento dos ingleses do controle militar do nosso exército. O cabecilha dessa conspiração, o general Gomes Freire de Andrade, foi executado nesse mesmo ano por enforcamento. Era imperioso que a coroa regressasse a Portugal, pois o reino queria andar para a frente, na senda de maior justiça social, o que se tornava difícil com o rei ausente. Assim, sob pressão do governo metropolitano de Lisboa, D. João VI, que abalara príncipe e regressava rei, retornou a Portugal em 1821, onde jurou as bases da Constituição, iniciando-se de imediato o exercício da monarquia constitucional.
O rei regressara a Portugal, trazendo consigo o seu filho mais novo, o infante D. Miguel, enquanto o filho mais velho, o príncipe D. Pedro, ficou no governo da colónia brasileira.
A política é também feita de oportunidades, e não se digna a respeitar os mais elementares preceitos de fidelidade que os filhos deverão ter para com os pais; e D. João VI foi um pai e um marido completamente desrespeitado pelos seus filhos e pela sua esposa, a rainha D. Carlota Joaquina. E tudo isso apenas em nome da política! D. Pedro, havia o seu pai abandonado o Brasil há dois meses, tornou aquela colónia país independente, no que ficou célebre « O Grito do Ipiranga», tornando-se ele próprio o seu primeiro imperador, com o título de D. Pedro I do Brasil. Aguardar-se-ia outra coisa? Fazia sentido que um país tão frágil economicamente, como o era Portugal, tivesse poder para dominar um Brasil, que em território era imensamente maior?
Nas primeiras duas décadas do século XIX Portugal perdera a cidade de Olivença para os espanhóis, sofrera três humilhantes e devastadoras invasões por parte da França, defendera-se delas com valentia e orgulho nacional, mas empobrecera ainda mais. Comprometera-se com os ingleses, que após o auxílio prestado, exigiam agora contrapartidas, e desgraçadamente acabava de perder a colónia do Brasil, com que contava para combater a paupérrima economia...(em continuação, pág. 11- ex. IV)
in ALMA DE LIBERAL
Junho/2009
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