sábado, 28 de dezembro de 2013

CALOIROS, NO SEIO DE CAGARÉUS E CEBOLEIROS


...De entre muitas coisas, Aveiro era também uma cidade universitária. Esse cariz académico acentuou-se no principio da década de oitenta. O desenvolvimento sociocultural que se sentia latente na cidade dos canais, exigia o surgimento de uma universidade com prestígio. O « campus universitarius» que começou por ser composto por dois blocos, distanciados cerca de cem metros um do outro, transformou-se na que è hoje uma pequena cidade dentro da própria cidade.
A Aveiro começaram então a afluir dezenas e dezenas de estudantes, que rapidamente passaram a ser centenas e depois milhares. Eram oriundos de todo o país. E esses estudantes, com a imaginação que lhe è peculiar, depressa criaram a sua própria tradição. No inicio de cada ano lectivo, começaram a viver intensamente a semana à recepção do caloiro. Desde então os aveirenses habituaram-se a ver, em todos os Outubros de cada ano, rapazes e raparigas com os rostos pintados de traços bizarros, de cores garridas, qual tela de Picasso. Eram os caloiros, que no seio dos Cagarèus e Ceboleiros davam os primeiros passos na sua vivência universitária. Também no fim de cada ano lectivo, no mês de Maio, festejando o aproximar do final das aulas, os estudantes agrupados num cortejo, que foi crescendo de ano para ano, criaram «O Enterro do Ano». Comparativamente «À Queima das Fitas» de Coimbra, este «Enterro do Ano» è muito pobre, pois falta-lhe a complexidade logística que envolve a «Queima» de Coimbra, e sobretudo, não se apoia na secular tradição de briosas e velhíssimas faculdades, como acontece na cidade do Mondego. Se em Coimbra a «Queima» è essencialmente composta pelos finalistas de cada curso, em Aveiro, no «Enterro», caloiros e finalistas se misturam, dando largas à sua alegria, uns por terem terminado o curso com êxito, outros por terem ultrapassado mais uma barreira que os separa desse tão almejado final de curso. Mas, com certeza que a «Queima das Fitas» dos primeiros anos (e já depois disso muitas gerações de doutores se formaram), não teria a riqueza e a exuberância dos dias de hoje.

Tal como há muitos anos acontece em Coimbra, em Aveiro começaram a proliferar quartos para alugar a estudantes universitários. Eles começaram a chegar em vagas sucessivas e disseminaram-se por toda a cidade. Com eles trouxeram a sua juventude, a sua alegria, a sua tristeza, os seus dramas. Muitos estavam a centenas de quilómetros de casa. Por isso, ao entrarem em Aveiro, cidade em que eram completamente desconhecidos, os longínquos estudantes eram bafejados pela inebriante sensação de total liberdade. Em Aveiro não existiam os pais, os vizinhos ou até os amigos, que de certa forma condicionavam a conduta de cada um. Para um certo número destes distantes estudantes, Aveiro representava a possibilidade de dar largas à sua necessidade de aventura, o meio há muito esperado para se cometer aquela secreta asneira que sempre se teve vontade de fazer, mas que por acção dos olhos críticos dos que os rodeavam, toda a vida enclausuraram essa mesma vontade. Na cidade da ria tinham tempo, espaço e ambiente para pecarem a seu belo prazer, sem correrem o risco de serem repreendidos...(em continuação, pág. 74, ex. XXIV)
in Filhos Pobres da Revolta
Março/2003

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

UM PEQUENO SORRISO PARA O NATAL

A todos vocês, que visitais este meu pedaço de mundo virtual, desejo um real natal muito feliz. Gostaria de ter a capacidade de vos deixar no sapatinho a resolução dos problemas de Portugal, mas como, infelizmente, a não tenho, deixo-vos a minha solidariedade.

domingo, 15 de dezembro de 2013

IV JANELA SOBRE O MEU PAÍS- QUENTES E BOAS



Quando as ruas deste meu país se impregnam do inverno que se instala, e o vento frio nos fere o rosto, ali temos o velhíssimo pregão de «quentes e boas», o nosso tradicional homem das castanhas, que envolto pelo cheiro delicioso e o fumo característico da pequena fornalha que ele controla, nos vende as saborosas, quentes e boas castanhas, acabadas de assar. O homem das castanhas é pronúncio de Natal, neste meu Portugal.

sábado, 30 de novembro de 2013

NA REMOTA PICADA DE UM IMPÉRIO DECADENTE

...Já o aquartelamento do Ninda se avistava ao longe, um pequeno rectângulo de construções simples e práticas, quase engolido pela imensidão verde que o rodeava, quando sobre a coluna se abateu mais uma intensa e tropical cortina de água. Álvaro ajeitou melhor o quico à cabeça, de modo a que a pala protegesse os olhos da impetuosidade da chuva. Vá lá, vá lá, que só a iam sofrer por algumas centenas de metros. Mas realmente, que raio de missão fora aquela?! Muito tinha que contar à sua loirinha. Quem efectivamente seriam aqueles três fulanos? De uma coisa ele estava certo, eles è que lhe denunciaram a emboscada. Eles è que o ajudaram a convencer o capitão Rebelo a aceitar aquela informação de proveniência tão duvidosa. Eles trabalharam para que as duas partes não sofressem mortos nem feridos. Inequivocamente eles queriam a paz e não a guerra. Mas eles...eles quem? Quem eram? Porque razão o escolheram a ele? Porque motivo haveria alguém de, num planeta manchado por imensos focos de guerra, usar tamanhos artifícios para instalar a paz naquela remota picada de um império decadente?
         A coluna avançava para o Ninda. Que viesse o rancho melhorado, pois ajudaria à alegria e festa existentes naqueles corações guerreiros, ansiosos pela paz. Assim se tivesse feito toda a história militar de Angola, e não teria havido razão na saudade permanente, vinculada à ondulação branca de um triste lenço no porto de Lisboa...(em continuação, pág 85, ex. XXV)

in VISITADOS

Novembro/1999

domingo, 3 de novembro de 2013

COMBATENTE DO ULTRAMAR AINDA HÁ QUEM TE RECORDE

Há poucos dias fiz uma viagem de combóio entre Lisboa e Aveiro. Estaria eu sentado no meu lugar havia pouco tempo, quando surgiram dois senhores, aparentando os seus sessenta e cinco a setenta anos, muito bem dispostos, um deles deslocando-se com o auxílio de canadianas. Sentaram-se nos lugares a seguir ao meu. E foram duas horas de acalorado diálogo, num passeio por vezes alegre, outras bem triste, pelo manancial riquíssimo da memória.
Moeda, no norte de Moçambique, foi o cenário. Soldados portugueses, unimogues, berliets, picadas, g3, granadas, rebentamentos, emboscadas, «os gajos», o maiombe africano, ferimentos, o sangue, a morte, lágrimas, desilusão, amargura, sofrimento de uma geração, foi o passeio de duas horas em que, inadvertidamente, fui incluído. Memórias tão presentes, tão cheias, tão nítidas, tão frescas, que, como eles recordaram, já levam 48 anos (1965).
Uma conversa que, daqui a mais duas ou três décadas, será impossível de ser ouvida em Portugal, quando tiverem desaparecido os últimos veteranos da guerra do ultramar. Um drama que vai sendo contado aos poucos, em livros que vão sendo publicados, escritos por quem o viveu, tal como estes meus dois companheiros de viagem, a quem tive vontade de dar um grande abraço, apenas não o tendo feito por vergonha.
A Guerra do Ultramar, um sacrífico de treze anos, de toda uma geração, tão esquecido, tão relegado para o desprezo pela nossa actual sociedade.

O 25 de Abril, além de nos trazer a democracia (coitada dela), devolveu-nos também a esperança na vida, uma questão que a juventude portuguesa actual simplesmente não entende.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

VILA DE LÓ, UMA EXPECTATIVA

...- O meu menino está no Bombarral? - perguntou Lucinda.
  - Ouçam - disse o padre José Soares - conversarmos sobre este assunto só pode ser feito dentro de casa. Agora tu Lucinda, não me saias outra vez pela porta fora como espavorida.
E os três entraram na humilde casa de Lucinda, onde esta tomou conhecimento da vivência real daquela  longínqua criança que se alimentara ao seu peito e que naquele momento, tão distante estava das suas verdadeiras origens. E Lucinda soube outra coisa - anjos da guarda podem-se revelar aos mortais de variadíssimas formas, sem sequer a sua presença ser conhecida por quem eles protegem. Mas que a sua acção se faz notar, disso não há dúvidas. Lucinda percebeu ainda que enquanto existirem verdadeiros seres humanos, solidários, de corações puros, a esperança será sempre um valor absoluto.
Riu-se Lucinda, riu-se António Avilar, quando concluíram que ambos traçaram a separação dos gémeos. Riram-se ambos quando perceberam que nas suas mãos e ajuda divina estava a união dos dois gémeos.
Vila de Ló era uma herdade em expectativa...(em continuação, pág. 112, ex. XL)
in Quando Um Anjo Peca

Março/1998


sábado, 5 de outubro de 2013

DUCADO DE AVEIRO

Vagueando pela cidade os meus passos levaram-me a um lugar cheio de história, mas quase escondido, e ignorado, do olhar da maioria dos aveirenses, muito embora esteja a céu aberto, junto ao qual centenas de pessoas passam diariamente, sem se darem conta da sua existência. Quantos aveirenses já ouviram falar da Fonte dos Amores? É uma fonte, desactivada, que está num plano um pouco inferior, relativamente ao passeio, existente mais ou menos em frente á rotunda da «cepsa», a escassos cem metros do quartel dos Bombeiros Velhos.
A fonte é uma construção que tem a aparência de um excerto de uma qualquer muralha, onde existe uma inscrição e um brasão de armas. Na inscrição pode ler-se: «louvado seja O Santíssimo Sacramento e A Virgem Nossa Senhora que foi concebida sem pecado original».
O brasão representa as armas dos duques de Aveiro, e encontra-se completamente picado, reflexo do fim trágico desta casa nobre.
D. Jorge de Lencastre (descendente da rainha D. Filipa de Lencastre, mãe da Inclita Geração), era filho bastardo de El-Rei D. João II e Duque de Coimbra. Pôde pois apresentar o seu filho, de 12 anos, D. João de Lencastre, neto de El-Rei D. João II, já então falecido, na corte. O jovem ficou ao serviço do Príncipe D. João (futuro rei D. João III), tendo El-Rei D. Manuel I lhe atribuído o título de Marquês de Torres novas.
Aconteceu que o então infante D. Fernando anunciou o seu casamento com a fidalga Guiomar Coutinho. Foi quando uma voz se levantou contra este casamento, precisamente a voz de D. João de Lencastre, alegando que Guiomar Coutinho era já sua esposa, muito embora de forma clandestina. O rei D. Manuel I não gostou desta intromissão e mandou prender o jovem, a quem fizera Marquês de Torres Novas, tendo o jovem D. João de Lencastre se mantido preso durante nove anos, até á morte do rei. Rei morto, rei posto, subiu ao trono D. João III, que devolveu a liberdade ao jovem que estivera ao seu serviço, D. João de Lencastre. Mas não satisfeito apenas com a devolução da liberdade, atribuiu a D. João de Lencastre o título de Duque de Aveiro, criando assim uma nova casa de nobreza em Portugal. D. João de Lencastre foi assim o 1º Duque de Aveiro, em Janeiro de 1547.
O 2º Duque de Aveiro, D. Jorge de Lencastre, sê-lo-ia por pouco tempo, pois que nascido em 1548, faleceria com apenas trinta anos, no dia 4 de Agosto de 1578, ao lado de El-Rei D. Sebastião, nas areias escaldantes do Norte de África, na Batalha de muito triste memória de Álcacer-Quibir.
O ducado de Aveiro prolongou-se por 212 anos, tendo tido oito duques, terminando abrupta e tragicamente, no dia 13 de Janeiro de 1759, com a execução pública do oitavo e último Duque de Aveiro, D. José de Mascarenhas e Lencastre, no que ficou conhecido como O Processo dos Távoras.

D. José I, que assinou a ordem de execução, mandou picar os brasões dos Aveiro. Por essa razão o Brasão da Fonte dos Amores se nos apresenta no estado em que se encontra, um sussurro de uma triste memória de Aveiro.

sábado, 21 de setembro de 2013

NA SOMBRA DO TI ZÉ DA ESTRADA VIVE UM HOMEM

... Acabem com essa discussão - atalhou o padre José Soares, pondo cobro àquela situação difícil.
- É melhor. Dias não faltarão- disse o mouro, que montando no cavalo abalou em direcção ao solar.
- António, tu queres pôr tudo a perder? - perguntou o padre.
- Não senhor padre, mas não posso permitir que lhe faltem ao respeito. Este velhaco anda ao cimo da terra sem prestar contas a ninguém. Ele tem de temer alguma coisa.
- Meu rapaz, concentra-te na elevada missão que tens de cumprir. Ao desviares-te por outros caminhos perdes discernimento e força espiritual, que tanta falta te fazem.
- Mas senhor padre, aquilo que tenho de fazer passa também por este mouro.
- Não obrigatoriamente António. Contas saldadas com o Barreto Raposo, este desgraçado e ainda o outro logo deixarão de ter voz activa.
- O senhor padre bem que gostaria que as coisas fossem fáceis.
- Fáceis não serão, eu tenho consciência disso, mas tentemos mexer na podridão sem nos deixarmos infectar por ela.
- O senhor padre José Soares sempre foi uma pessoa de muito bem - disse Lucinda, saindo finalmente de uma espécie de estado hipnótico para o qual fora empurrada pela atitude bruta e prepotente do mouro - nem enfrentando aquele malandro o senhor padre deixa de ser calmo.
- Ouve Lucinda, já alguma vez viste um homem nervoso resolver fosse o que fosse? Que ganho eu com os nervos? A serenidade de espirito é uma óptima conselheira. Mas temos coisas tão bonitas para conversar. Tu Lucinda, já conheces este homem?- perguntou o pároco referindo-se a António Avilar.
- Claro, é o “ Ti Zé da Estrada".
- Não Lucinda, ele chama-se António Avilar. Com a tua precipitação nem me deste tempo para eu te poder falar nele.
- Senhor padre, o senhor vai falar de mim à Lucinda?
- Mas afinal quem é este homem? - perguntou Lucinda com um semblante de curiosidade, à mistura com uma grande dose de felicidade, como havia muitos anos não sentia.
- Lucinda, este homem não é aquele desgraçado sem eira nem beira que todos julgam ser. Como há pouco eu te dizia, o Leandro está vivo e se está um rapagão, a este homem o deve.
         Lucinda não teve palavras espontâneas que lhe saíssem da boca para responder ao que lhe estava a ser anunciado. O seu cérebro tinha de se preparar, tinha de compreender antes de tudo que aquele pobre caminhante conhecia profundamente, de uma forma oculta, qual o destino de um dos grandes pilares da sua vida - o pequenino Leandro. Medindo com o olhar António Avilar, como que tentando avaliar capacidades escondidas, disse:
- Vocemecê sabe onde está o meu Leandro?
- Assim é - respondeu António Avilar - o seu Leandro, que me considera pai dele.
- Como?
- Lucinda, rapariga, que outra coisa esperavas? - interveio o padre José Soares - o Leandro saiu daqui com um ano de idade.
- E porque è que vocemecê nunca me disse nada?- perguntou Lucinda a António Avilar.
- Ouça Lucinda, eu ia lá imaginar que estivesse assim ligada ao rapaz?! Desconfiei, quando pela primeira vez vi o Helder. Achei que eram muito parecidos. Por isso fui ao Bombarral, de propósito, para confirmar as suspeitas. Afinal, eles são iguais.

         A estas palavras de António Avilar, Lucinda começou a chorar. Eram lágrimas de alegria...(em continuação, pág. 111, ex. XXXIX)
in Quando Um Anjo Peca

Março/1998

sábado, 14 de setembro de 2013

III JANELA SOBRE O MEU PAÍS- TRÁS-OS MONTES- CARDAL DO DOURO

O total silêncio preenche completamente os nossos sentidos, no Parque Natural do Douro Internacional. Debruçada num patamar da profunda falésia, observando o manso Douro, que lá no fundo resplandece, a casa de veraneio (outrora uma escola primária construída pelo Estado Novo, nos anos 50, para os filhos dos operários que construíam a barragem do Picote)  oferece um momento só possível no paraíso.

Este pedaço de céu é a Casa das Arribas, no Cardal do Douro, bem perto de Miranda do Douro. Um postal de Trás-Os-Montes!

sábado, 7 de setembro de 2013

ESPÍRITO LIBERAL Á MESA DO ABSOLUTISMO

...O jantar foi servido ás sete horas, numa luxuosa sala, como luxuosa era aquela casa.
         Quando entrei na sala de jantar, já lá se encontravam os filhos do conde: a senhora D. Maria Clara Corga e o senhor Pedro Corga. Os dois irmãos teriam idades muito próximas, ambos um pouco mais velhos do que eu.
         Pedro Corga tinha retratado no rosto a soberba, o ar pedante e triunfante de um certo sector da classe nobre, muito radical, enraizada nas convicções absolutistas, que bem de cima apenas olham mas não vêem os restantes homens, infelizes seres, que desprovidos do sopro divino, que aos nobres é concedido à nascença, deambulam pelo mundo, poluindo-o com o seu abjecto odor. No olhar daquele condezinho eu vi reflectida a minha imagem de um ser menor. De imediato nutri por ele profunda antipatia… e ele ainda nem sequer tinha aberto a boca.
         Maria Clara Corga era uma mulher bela, interessantíssima, mas enigmática. Ao ver-me, deu-me um sorriso, mas só os lábios sorriram, porque os olhos, de um preto profundo, mantinham-se tristes, muito tristes. Conhecia aquela mulher havia apenas breves momentos e só porque  estava na presença do irmão eu sentia que ela, da vida, não obtivera ainda qualquer alegria. Não sei se o facto de eu ter, já naquela altura, muita experiência com o sofrimento humano, tenha sintonizado os meus sentidos para a detecção desse mesmo sofrimento, mesmo quando ele se me apresentava mesclado com laivos de felicidade, o que é certo é que não me enganei.
         Foram feitas as cortesias que se impunham… e sentámo-nos à mesa. De imediato surgiram dois criados, que sob a orientação da governanta Maria do Carmo, que se encontrava à entrada da sala, começaram a servir-nos uma deliciosa canja.
- Caso não seja indiscreta a minha pergunta, o doutor é de onde? – questionou-me o filho do Conde de Cértima, dando ênfase ao termo «doutor», denotando uma mistura de relativo interesse pela minha proveniência, com um desdém mal disfarçado.
- Nasci nos arrabaldes da Mealhada, mais propriamente numa quinta que dá pelo nome de Malhal de Sula.
- Já ouvi falar nesse nome – disse o conde – forte em vinhedos.
- De facto! – retorqui com orgulho – o meu pai trabalhou arduamente, mas valeu a pena.
- Então o seu pai é… - dizia o emproado filho do conde.
- É um abastado lavrador – conclui eu.
- Um lavrador que fez do filho um médico – retorquiu Pedro Corga, com sarcasmo.
- Um lavrador pode fazer dos filhos o que quiser, senhor Pedro. É preciso é que tenha dinheiro. Saí médico como poderia ter sido oficial do exército.
- Disso não estou tão certo – disse o filho do conde.
- E porque não? Acho que bem mais difícil será a feitura de um médico que a de oficial.
- E pode-me explicar porquê, doutor?
- Porque bem mais complicada é a compreensão do funcionamento do corpo humano, do que a compreensão das tácticas da guerra.
- Acho que está a ver mal a questão, doutor. Para se ser oficial é necessário ter-se tido uma educação esmerada, pela qual se tenha aprendido a arte da liderança. Desculpe-me a observação, mas um médico não sabe ser chefe.
- E quem disse que não? Eu comando os meus remédios, que colocam em debandada toda a horda de micróbios que ataca o nosso corpo. Vossa excelência coloque um oficial à frente do seu exército, achacado por micróbios, e se ele não tiver um médico à mão veja se ele consegue pôr em prática as tácticas de guerra que aprendeu.
- Bom, bom, resposta inteligente essa – disse o conde - sabe doutor Joaquim Lopes – continuou – o meu filho é precisamente oficial do exército. Presta serviço no Batalhão de Voluntários Reais do Porto.
- Á, o filho de vossa excelência é oficial… - disse eu com ar de surpresa – peço mil desculpas pelas afirmações que fiz. É claro que um oficial tem de ser, forçosamente, um homem culto, corajoso e tremendamente forte na palavra. A vida de médico representa a arte da anatomia; a vida de oficial traduz a arte da mente – disse eu, tentando sair airosamente da situação desconfortável em que eu próprio me colocara. Ia lá adivinhar que o filho do conde fosse oficial.
- Boa observação – disse Pedro Corga, muito mais confiante na sua posição de mandante de homens.

         Eu regalei-me com aquela estupidez.(em continuação, pág. 32, ex. XIV)

in Alma de Liberal
Junho/2009

domingo, 1 de setembro de 2013

DE LISBOA ÁS CALDAS DA RAINHA- UMA VIAGEM AO ESTRANGEIRO



Gosto muito da cidade das Caldas da Rainha, muito embora nos últimos dias tenha ouvido falar muito mal dela. E gosto desta cidade porque durante um período da minha vida, que decorreu entre 1974 e 1977, nela passei o meu quotidiano, que me deixou um legado de recordações muito saboroso. Os mesmos a quem ouvi considerações menos simpáticas acerca da cidade, me disseram que estas minhas recordações não passam de romantismos, pois que a cidade, entretanto, morreu, muito pela acção do seu principal autarca, que há quase trinta anos está á frente dos destinos da cidade. Isso é uma questão que ultrapassa o meu conhecimento, pois que não vivendo lá, não me encontro á altura de analisar o trabalho da pessoa. Mas que continuo a achar as Caldas da Rainha uma cidade deliciosa, disso não tenho qualquer dúvida.
         Isto para dizer que este fim de semana jantei em casa de um casal simpático, a convite da minha irmã e cunhado, amigos desse casal. No entanto houve um senão. Ele é de Lisboa (não é este o senão), e por o ser, em conversa que entretanto veio á baila, em jeito de brincadeira, lá foi dizendo que Portugal é Lisboa, que Caldas da Rainha nada tem de português. Nesse momento pedi a Deus que ele não se pronunciasse acerca de Coimbra, pois que eu, muito embora estivesse em sua casa, não sei se me calaria. Mas a coisa restringiu-se apenas ás Caldas.
Era a brincar, mas aquele tom de brincadeira, teve um fundamento mesmo muito sério.
Já há muitos anos, um outro amigo meu, natural da Benedita- Alcobaça, a trabalhar em Lisboa, dizia quando vinha á terra, que «entrava no mato», como crítica ao sentimento generalizado que Lisboa tinha, então, sobre a «província».
Tão fora da realidade estão, como se isso de província ainda seja uma coisa presente, como se, em contraste ao carros de Lisboa (por exemplo), os «provincianos» ainda se desloquem de burro e carroça, e usem barrete na cabeça.
         Este sentimento de proclamação de que a portugalidade apenas se manifesta em Lisboa, é realmente ofensiva para todo o bom português, e completamente patética, pois que muitos dos momentos históricos e decisivos para o nosso destino como nação, tiveram lugar fora de Lisboa: não é em Lisboa que está a universidade mais antiga de Portugal, e uma das mais antigas da Europa; não foi Lisboa a primeira capital do país; Não foi em Lisboa que Portugal nasceu; não foi em Lisboa que se deu a importantíssima Batalha de Aljubarrota; não foi em Lisboa que tiveram lugar quaisquer das acções que fizeram por expulsar os franceses de Portugal; não foi em Lisboa que decorreu o grande cerco, que tão profundamente marcou a guerra civil entre liberais e absolutistas, nem foi em Lisboa que aconteceu a batalha decisiva que pôs termo a esta guerra sangrenta. Mas como bom português que sou, sei muito bem que foi de Lisboa que partiram as nossas naus que, em nome de Portugal, deram mundo ao mundo, e que foi em Lisboa que aconteceu o 1º de Dezembro de 1640, que restabeleceu a nossa independência.
Coisas que seriam perfeitamente desnecessárias de serem ditas, caso a falta de esclarecimento cívico e patriótico não fosse notória.

O tal senhor, meu anfitrião em Lisboa, hoje foi para as Caldas da Rainha. Tive muita vontade de lhe desejar uma boa viagem ao estrangeiro.

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

ESPECADO PERANTE O PRIMEIRO DOENTE NOBRE

...E em frente daquele meu primeiro doente nobre eu fiquei especado, segurando a minha maleta de cabedal, onde me munia de muitos apetrechos e substâncias, que à minha profissão diziam respeito.
- Doutor Joaquim Lopes – disse D. Rodrigo Corga, sem que tivesse esboçado sequer uma leve simpatia no semblante.
- Senhor Conde de Cértima, excelência –disse eu, fazendo uma ligeira vénia com a cabeça.
- Pensava-o mais velho, levando em conta a fama que o seu nome tem, badalado por tanta boca.
- Excelência, há que considerar que sou o único médico nesta região. Se as pessoas não têm mais nenhum médico por quem falar, terão obrigatoriamente de falar de mim.
- Modéstia sua, doutor. Que idade tem?
- Tenho vinte e quatro anos, excelência.
- É quase uma criança – disse o conde, com uma certa surpresa no olhar.
- Sou bastante novo, mas assimilei conhecimentos que me foram ensinados por verdadeiros anciães, proeminentes sábios nas curas das maleitas que afligem o corpo humano.
- Estou certo, doutor, que não será o facto de ainda ser bastante novo, que o impedirá de ser já um bom médico. E a prová-lo está a sua fama.
- Obrigado excelência – disse eu, que me mantinha na mesma posição desde que entrara naquele ilustre quarto.
- Pois eu tenho andado ás voltas com uma danada de uma dor, que me apanha todo o braço direito e o ombro do mesmo lado.
- Dá-me vossa excelência permissão para que eu examine esse braço e o mais que eu considerar necessário?
- Mas é claro, doutor. Esteja à sua vontade. Examine, faça o que lhe aprouver, mas cure-me desta dor que tanto me incomoda.
         E finalmente me aproximei do meu doente. Puxei de uma cadeira e fiz-lhe um exame rigoroso. Lembrei-me das palavras do meu pai. Efectivamente, na presença daquele homem, sentia-se fluir dele poder terreno. Percebia agora o quanto o meu pai estava certo. Um bom diagnóstico feito a este doente poderia trazer óptimas repercussões para a minha carreira.
         O conde sofria de reumatismo. Receitei-lhe a aplicação de uns unguentos, aplicação essa que desde logo me prontifiquei fazer, o que determinou a minha deslocação àquela casa por várias vezes.
         Até chegar ao diagnóstico levei algum tempo. Muito embora eu tivesse concluído muito cedo qual a origem das dores, só após um exaustivo exame ao paciente, demonstrando-lhe assim todo o meu empenho, como o ter auscultado, examinado a língua, os olhos e demais zonas do corpo, é que lhe revelei as minhas conclusões. Logo ali lhe fiz a primeira aplicação dos unguentos, pelo que o conde se mostrava já muito mais afável para comigo. E com tudo isto eram seis e meia da tarde quando dei por terminada a minha consulta. Foi então que o Conde de Cértima me surpreendeu ao convidar-me para jantar. Achei que  deveria recusar tal, mas vendo que o convite se transformava quase em exigência, resolvi aceitar.
- Pois muito bem, caro doutor. Mal me ficaria deixá-lo ir-se embora, tendo pela frente ainda uma longa viagem, de barriga vazia.
- Não chegam a ser duas léguas, excelência – dizia eu, pretendendo demonstrar que o prazer em consultar tal doente tornava curta a jornada.

         E assim fui conduzido, de novo, pela governanta, para a sala de espera. Ainda bem que tinha primado na minha apresentação, senão ir-me-ia  sentir muito mal. Se tal não tivesse acontecido, talvez nem o conde me houvesse feito o convite para o jantar. A vida é realmente uma grande escola. Somente agora é que eu percebia que o meu pai não tinha nada de parvo...(em continuação, pág. 30, ex. XIII)

in ALMA DE LIBERAL

Junho/2009

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

II JANELA SOBRE O MEU PAÍS- NA ANTIGA LOTA DE AVEIRO

Na antiga lota de Aveiro, onde antes a manhã despertava com o reboliço das traineiras carregadas com o produto da faina, o piar persistente de bandos de gaivotas que ao peixe prateado acorriam num frenesim feito de mar e de ria, e o murmúrio gritado, de uma multidão de homens e mulheres, que faziam por vender e comprar pelo melhor preço o peixe da Costa Nova e da Barra, agora reina o silêncio das férias e o som tranquilizante da fraca ondulação a embater no cais.

Dir-se-ia que a ociosidade conquistou terreno ao trabalho!

sábado, 10 de agosto de 2013

ATRAVÉS DE UM SIFTO, O OXIGÉNIO DA VIDA

...Percorrida alguma distância, ambos chegaram à beira do tanque, onde Masahemba se purificava antes de se apresentar perante o tabernáculo.
- Neste tanque, a água dá-me pelo peito- explicava Masahemba- um pequeno riacho é canalizado do Nilo até aqui. A água entra no tanque através de uma abertura submersa e sai pelo lado oposto, por uma outra abertura também submersa, regressando a água ao caudal do Nilo. Por isso, neste tanque, a água está sempre em movimento. Inúmeras vezes me purifiquei nestas águas sagradas do Nilo; só há um problema.
- Qual é?- perguntou o sifto.
- No canal por onde se escoam as águas do tanque, cabe o meu corpo à justa. Isso quer dizer que até eu chegar à parte do canal, onde me posso esconder, levará algum tempo. Como irei eu aguentar sem respirar?
- Isso não é problema, meu caro Masahemba. Eu forneço-te o oxigénio de que vais precisar.
- E como, meu simpático jovem?
- Já vais ver. Vamos então?
- E a minha indumentária? Se eu sair daqui, não posso levar as vestes de Sumo Sacerdote. Seria logo reconhecido. Era conveniente um saiote de felas.
- Não te preocupes com isso, que eu também resolvo esse problema. Mas antes de irmos embora, diz-me porque razão insistes em tratar-me por rapazinho, quando na verdade sabes que o não sou.
- Por alguma razão, quando te encontras fora de água, escolheram para ti essa forma humana. Assim sendo, onde está o inconveniente em seres um rapazinho?
- Na verdade tens razão. Um sifto divide a sua existência entre a forma de peixe e a de criança.
- Eu conheci-te com a forma de rapazinho. Portanto, para mim serás sempre lembrado como tal.
         De repente, do lado do enorme pórtico, chegou o som cavo de uma forma dura a embater noutra.
- O faraó está a chegar. Não percamos tempo- disse o sifto.
          Masahemba e o seu amigo rapazinho desceram os degraus que conduziam à água.

Ao entrarem nela de imediato submergiram. Masahemba mantinha os olhos abertos, muito embora isso de nada lhe valesse, pois a escuridão era total. No entanto, a auréola que envolvia o sifto, manteve-se, mesmo debaixo de água, e Masahemba viu, extasiado, a metamorfose que se operou diante dos seus olhos. Num curto espaço de tempo, as pernas e pés do rapazinho uniram-se numa só silhueta, e tomaram a forma do dorso de um peixe e da barbatana anterior. Depois todo o tronco do rapazinho, os braços, mãos e cabeça foram aglutinados e transformados na cabeça de um peixe; e surgiu então uma tiláquia, peixe abundante nos rios africanos. Masahemba e o sifto praticamente não nadavam. Deixavam-se ir na suave corrente que os conduzia a outra extremidade do tanque, à abertura submersa, por onde a água se escoava. Então, o sifto, colocou-se de frente para Masahemba, usando as suas barbatanas peitorais e dorsais para se manter ao nível do rosto do Sumo Sacerdote e encostou a sua boca à boca dele. Depois abriu a boca, sendo imitado por Masahemba, e na boca do Sumo Sacerdote introduziu as suas próprias guelras, as quais expiravam para os pulmões de Masahemba o oxigénio que iam retirando da água. E assim conseguiram entrar na abertura por onde  seguia a água do Nilo. O Sumo Sacerdote apenas conseguia mexer os pés, pois os braços tinha-os estendidos ao longo do seu corpo, avançando lentamente por um túnel que pouco mais largo era do que o seu próprio corpo, tendo colado à sua boca o sifto, que o ia abastecendo do oxigénio necessário. O túnel fez então uma pronunciada curva. Masahemba continuou a avançar, completamente submerso. Percorrida uma distância considerável, o túnel terminou numa tumescência de rocha, dando lugar a um pequeno ribeiro, coberto por densa vegetação ribeirinha. Masahemba, encontrou-se subitamente sob o céu estrelado, tendo o corpo assente no chão todo coberto por água, apenas a cabeça estando acima do nível da água, podendo finalmente respirar o ar que a terra mãe lhe dava...(em continuação, pág. 50, ex XVII)
in A Causa de MassiftonRá
Novembro/2005

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

CAMINHANDO PELA ESTRADA DO REI

De vez em quando a criança que vive em nós (para os que a conseguiram preservar), pede alimento.
E essa alimentação manifesta-se tanto no domínio da criatividade como no assimilar a criatividade de outros. Perante um mundo fantástico a criança que ainda somos rejubila.
Supus que nada tivesse a capacidade de superar Tolkien e «O Senhor dos Anéis». Enganei-me redondamente.
Eis que me veio ás mãos o mundo fantástico de George Martin, nas suas Crónicas de Gelo e de Fogo.
De forma magistral e super empolgante, sentindo-se ao fundo a influência do feudalismo da Idade Média, o autor criou, de raiz, toda uma sociedade, em que os interesses das várias casas senhoriais tentam igualar o poder central, na figura do rei e do primeiro ministro, a quem o autor deu o curioso nome de «mão do rei». Amor e ódio, carinho e crueldade, honra e traição, justiça e injustiça, são estes alguns dos muitos condimentos que me têm deliciado nos dois primeiros livros que já li, de um total de dez que tem a saga.
E claro, imenso mistério e magia que nos vem lá bem do Norte dos Sete Reinos, na Muralha, onde se encontram as benfazejas sentinelas da «Patrulha da Noite».
 A capital do Norte, Winterfell, domina tanto o mistério e o frio do norte, como a intriga e o calor do sul.
E longe dos sete Reinos espreitam os Dothraki e a sua Kaleesi.
Estou completamente rendido! Muito satisfeito, muito mesmo, se encontra este miúdo!

sexta-feira, 26 de julho de 2013

UM RAPAZINHO DAS PROFUNDEZAS DO NILO

...Vamo-nos deixar de evasivas. Tu, na qualidade de Sumo Sacerdote de Amon-Rá, tens a obrigação de rapidamente assimilares esta informação, de a compreenderes e de a guardares em profundo sigilo.
- Sim… compreendo… MassiftonRá… o local onde vivem os deuses- dizia Masahemba, enquanto endireitava o tronco, na tentativa de melhor compreender, de uma assentada, o que naquele momento lhe fora transmitido e de que ele nunca ouvira falar.
-É assim tão difícil para ti aceitares a ideia de que os deuses também têm direito a viver em algum lugar?
- Não, claro que não; só que nunca pensei que os deuses tivessem necessidade de algo tão primário como isso.
- Os homens foram feitos à semelhança dos deuses. Isso determina que exista uma certa reciprocidade entre os homens e os deuses. Um homem é um deus numa escala muito, muito reduzida. Mas nos deuses alguns traços têm semelhanças com os homens; e a necessidade de se ter a sua casa é um deles. Mas já perdi imenso tempo.
- Como é que te chamas?- perguntou Masahemba, com a incredulidade estampada no rosto.
- Eu não tenho nome. Eu não me chamo, eu sou um sifto. Fora da água tomo esta forma, pois as missões de que sou incumbido baseiam-se sempre no bem, tal como no bem vivem as crianças. Mas estou aqui numa missão muito especial.
- Sim, está bem, mas eu gostaria de saber…
- Ouve Masahemba- disse o sifto, interrompendo o Sumo Sacerdote- já reparei que estás extremamente curioso em relação à estrutura social dos deuses, estrutura essa que tu desconhecias existir. Mas a tua curiosidade não te leva a questionares-te porque razão aqui me encontro?
- Sabes rapazinho, tu és de tal forma misterioso, que na verdade eu apenas me sinto maravilhado perante a tua presença. Mas já que fizeste essa observação, penso que a tua presença terá algum significado para mim. És uma dádiva dos deuses?
- Não, não sou uma dádiva. Sou um aviso, um alerta!
- Um aviso?- perguntou Masahemba intrigado.
- Um aviso vindo directamente de Amon-Rá.
- Amon-Rá, o meu divino mestre?
- Exactamente. Amon-Rá avisa-te de que corres um grande perigo. Neste preciso momento decorre uma reunião no palácio do faraó, em que está a ser decidido que tu vais passar à condição de prisioneiro, como tal, escravo.
- Mas porquê? Que fiz eu de errado? Já percebi que o faraó não simpatiza comigo, mas daí a transformar-me em escravo?!
- O que fizeste de errado foi seres o Sumo Sacerdote de Amon-Rá.
-Como?
- É isso mesmo que ouviste. Por um lado o faraó não aceita que tu, um estrangeiro, ocupes um cargo tão elevado como o de Sumo Sacerdote do deus supremo. Por outro lado, o faraó abandonou o culto a Amon-Rá, por ter sabido que o deus supremo não aceita que Nefertiti, a sua sacerdotisa, venha a ser rainha do Egipto. Por essas razões o faraó decidiu encerrar este templo e enviar-te para o nível mais baixo da estrutura social dos homens- a escravatura. Mas Amon-Rá não aceita que isso te aconteça. És demasiado querido para o deus supremo, para que te veja transformado num escravo. Por isso tens de abandonar este templo ainda esta madrugada.
- E vou para onde?
- Recorre a toda a tua capacidade de sobrevivência e astúcia, para escapares ao rancor que o faraó nutre por ti.
- Terei a protecção de Amon-Rá?
- Na medida do possível.
- Na medida do possível? A vontade do faraó é mais forte do que o poder do deus supremo?
- Amon-Rá é senhor na espiritualidade. No que diz respeito ao ambiente dos homens- o factor material, o deus supremo pouco pode fazer. Dar-te-á o apoio que lhe for possível oferecer-te.
- Então se eu for apanhado, espera-me a miserável condição de escravo, e Amon-Rá não terá meios de me resgatar, é isso?
- Não te posso responder peremptoriamente a essa questão, Masahemba. Acho que algo o deus supremo poderia fazer, mas decerto que, essencialmente, terias de contar quase exclusivamente contigo mesmo. Mas para evitar essa situação é que eu fui enviado. Tens ainda algum tempo. Para onde fores, eu acompanhar-te-ei. Amon-Rá precisa de saber exactamente onde te vais esconder.
- E eu sei lá!!
- Procura em ti esse conhecimento. Amon-Rá tem a total certeza de que a indomável força dos reinos do sul, adormecida em ti, vai despertar e dar-te a resposta.
- Bem, sendo assim- dizia Masahemba, reflectindo, enquanto olhava em todas as direcções- quando o faraó entrar no templo e me não encontrar, logicamente me irá procurar no exterior. Se eu estiver escondido no interior do templo, ele não me encontra, certo?
- Certo. E esse esconderijo existe no templo?- perguntou o sifto.
- Espero que sim, acho que vai ter a capacidade de iludir o olhar observador do faraó.
- E onde é?

- Vamos para lá- disse Masahemba, começando a dirigir-se para o tanque sagrado...(em continuação, pág. 48, ex. XVI)

in A Causa de MassiftonRá
Novembro/2005

domingo, 21 de julho de 2013

I JANELA DO MEU PAÍS- AVEIRO

Em Aveiro, a um canto da Europa, numa pequena feira de artesanato, sob a sombra de velhos eucaliptos, África reflecte.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

A PERSPECTIVA DE UM FOSSO DESCOMUNAL

...-         È isso mesmo rapaz- retorquiu o pai de Serôdio- um homem enrascado è pior do que sei lá o quê!
-         Tu falas muito bem, mas o Serôdio está aqui está a acabar a tropa. E depois?
-         Depois- disse D. Silvina-  depois alguma coisa se há-de arranjar. Os amigos servem para as ocasiões e eu tenho a certeza de que ainda existirão amigos do meu marido, que a meu pedido poderão arranjar um emprego interessante para o Serôdio.
-         Eu agradeço a sua disponibilidade D. Silvina, mas com um pouco de sorte vou resolver o meu próprio problema- disse Serôdio convictamente, dando assim a entender que tinha encontrado uma solução. Por isso o pai perguntou-lhe:
-         Mas então tens alguma coisa em mente?
-         Sim pai, tenho. Vou concorrer à PSP!
-         Vais o quê?- perguntou a mãe de Serôdio, com uma expressão facial que demonstrava estar-se a sentir escandalizada.
-         Vou tentar entrar na Policia de Segurança Pública.
-         Ai meu Deus... Serôdio, não faças uma coisa dessas- dizia D. Amélia- tu mereces coisa bem melhor do que isso...
-         Mãe, è um emprego do Estado. Eu não estou em condições de ser esquisito.
-         Manuel, vê se tiras esta ideia da cabeça do teu filho- suplicava D. Amélia ao marido.
-         Sabes qual è o tipo de serviço na PSP e quais as pessoas que lá estão nos quadros, não sabes?- perguntou o senhor Manuel ao filho.
-         Sei pai!
-         Tu já és um homem, Serôdio. Pondera bem antes de te decidires, porque depois será tarde para te arrependeres- continuou o pai de Serôdio.
-         Qual è a tua opinião sobre a minha ida para a policia?
-         Não fico a saltar de alegria, tal como a tua mãe. O serviço que a policia desempenha não è nada simpático, e depois ver-te misturado com homens sem nenhuma formação, vai-me custar muito.
-         Mas pai, se a nossa sociedade está a evoluir, obrigatoriamente que a evolução há-de chegar à Policia de Segurança Pública.
-         Evolução? Com aqueles basbaques? Eu bem sei o que senti quando tive de ir à esquadra por causa do que te aconteceu- dizia D. Amélia- parecia que tinha entrado num antro de estupidez. Só via homens de aspecto rude, grosseiros, a olharem para nós. Aqueles serão incapazes de evoluir.
-         Esses talvez não evoluam, mas outros que virão a entrar, tal como o Serôdio...- disse por sua vez D. Silvina- eu apoio o Serôdio nesta sua decisão. A falta de emprego, hoje em dia, è muito grande. Isso fará com que os quadros da policia sejam preenchidos com pessoas mais capazes.
-         Para a admissão ao curso não tenho que ter grandes preocupações, pois apenas preciso de prestar provas físicas, já que estou isento das provas escritas.
-         E porquê- perguntou D. Amélia.
-         Porque tenho habilitações demasiado altas para o nível mínimo exigido, que è a quarta classe, como sabem.
-         És quase considerado um doutor- disse D. Silvina sorrindo.
-         Se realmente vier a fazer parte dos quadros da PSP, empenhar-me-ei para melhorar a imagem da corporação. Já que me vão pagar um ordenado, è o mínimo que posso fazer em retribuição.
-         Talvez tenhas razão. È possível que a policia evolua- disse o senhor Manuel.
-         Pai, alguém tem de fazer aquele trabalho. A segurança è indispensável à estabilidade de qualquer país. Um dia, o nosso governo terá de apostar no serviço e nos homens da Policia de Segurança Pública.
-         Amélia, teremos de nos conformar. Um filho policia não será assim tão mau.
-         Está calado homem, não me digas nada. Sonhava vê-lo médico. O destino desfez esse sonho e agora quer vestir ao meu menino uma farda cinzenta. De médico a policia vai um fosso enorme.
-         Mas nas suas fileiras, a policia terá homens cujo valor os poderia um dia ter levado a tirarem um curso de medicina, e que têm opinião formada sobre a vida. Deixarão assim de existir na policia apenas homens desprovidos de qualidades, tais como a moral, a solidariedade, o respeito pelo seu semelhante, qualidades essas que enobrecem o espirito humano e que realmente fazem falta à nossa policia. Vai Serôdio, enverga aquela farda e sê dos primeiros a dar um sopro de mudança à Policia de Segurança Pública. Vai descansado, que os teus pais terão orgulho em ti.
De médico a policia vai na realidade um fosso descomunal. Serôdio teria oportunidade de sentir a dimensão desse fosso, fosso esse que se viria a revelar num imenso vale, onde numa das encostas, banhada por um auspicioso dia de sol, lugar de sonhos, êxitos e direitos cívicos, estava a figura fictícia de um Serôdio doutor, brilhante, inchado pela importância que lhe era atribuída pelo sistema social. E como um vale tem obrigatoriamente duas encostas, na outra, sombria, votada a um permanente céu cinzento, carregado de nuvens de má fé social, se encontrava a figura real de um Serôdio policia, baço, desprezível e desprezado, humilhado por um sistema social, que irresponsavelmente o considerava um mal necessário.
Pobre Serôdio, tivesse eu te conhecido a tempo...(em continuação, pág. 72, ex. XXIII)

in FILHOS POBRES DA REVOLTA
Março/2003




sexta-feira, 12 de julho de 2013

POVO PORTUGUÊS...UM PERIGOSO CARRASCO

Ontem, dia 11 de Julho de 2013, as minhas fibras democráticas foram violentadas…as fibras democráticas que ainda resistem a este ambiente virulento que mina o nosso estado democrático.
Via na televisão um resumo de uma sessão da Assembleia da República, que discutia a restruturação da função pública, quando das galerias subiu um grito de desespero que pedia «demissão». Uma palavra de ordem gritada do fundo da alma de quantos ali marcavam presença, os verdadeiros representantes do povo naquela assembleia. Lançaram papéis para cima dos deputados. A presidente da Assembleia da República, Assunção Esteves, a segunda figura na hierarquia do Estado, logo a seguir ao Presidente da República, mandou evacuar as galerias. Até aí nada a opor. O que veio a seguir é que foi moralmente deplorável. Assunção Esteves, com a voz embargada, vestindo a roupagem de vítima, qual injustiçada a subir ao cadafalso, tomou a palavra, dirigiu-se aos deputados e disse-lhes que não temessem…não tinham sido eleitos para serem desrespeitados, nem ofendidos, e que não podiam deixar que os seus carrascos lhes dessem maus costumes.
A presidente de uma assembleia que representa o povo, considerou o povo seu carrasco.
O povo deveria ter o poder de ser o carrasco político de tantos e tão maus políticos, porque, possivelmente, se assim fosse, talvez muitos dos nossos problemas se resolvessem.
No cimo da sua altivez e de toda a sua competência que a levou áquele cargo, no cimo da sua muito difícil vida, não teve a presidente da assembleia da república a sensibilidade para perceber os dramas que obrigaram aquele povo a manifestar-se da forma como se manifestou.
Para chegarmos ao estado da nação a que chegámos, em que andamos, pelo conjunto de razões políticas e de competência postas em prática, a mendigar, e a dar satisfações á troika invasora, somos forçados a concluir que a Assembleia da Republica, caso tivesse estado de portas fechadas, não se sentiria a diferença.

Em Portugal, um povo de sangue na venta precisa-se.