sábado, 21 de setembro de 2013

NA SOMBRA DO TI ZÉ DA ESTRADA VIVE UM HOMEM

... Acabem com essa discussão - atalhou o padre José Soares, pondo cobro àquela situação difícil.
- É melhor. Dias não faltarão- disse o mouro, que montando no cavalo abalou em direcção ao solar.
- António, tu queres pôr tudo a perder? - perguntou o padre.
- Não senhor padre, mas não posso permitir que lhe faltem ao respeito. Este velhaco anda ao cimo da terra sem prestar contas a ninguém. Ele tem de temer alguma coisa.
- Meu rapaz, concentra-te na elevada missão que tens de cumprir. Ao desviares-te por outros caminhos perdes discernimento e força espiritual, que tanta falta te fazem.
- Mas senhor padre, aquilo que tenho de fazer passa também por este mouro.
- Não obrigatoriamente António. Contas saldadas com o Barreto Raposo, este desgraçado e ainda o outro logo deixarão de ter voz activa.
- O senhor padre bem que gostaria que as coisas fossem fáceis.
- Fáceis não serão, eu tenho consciência disso, mas tentemos mexer na podridão sem nos deixarmos infectar por ela.
- O senhor padre José Soares sempre foi uma pessoa de muito bem - disse Lucinda, saindo finalmente de uma espécie de estado hipnótico para o qual fora empurrada pela atitude bruta e prepotente do mouro - nem enfrentando aquele malandro o senhor padre deixa de ser calmo.
- Ouve Lucinda, já alguma vez viste um homem nervoso resolver fosse o que fosse? Que ganho eu com os nervos? A serenidade de espirito é uma óptima conselheira. Mas temos coisas tão bonitas para conversar. Tu Lucinda, já conheces este homem?- perguntou o pároco referindo-se a António Avilar.
- Claro, é o “ Ti Zé da Estrada".
- Não Lucinda, ele chama-se António Avilar. Com a tua precipitação nem me deste tempo para eu te poder falar nele.
- Senhor padre, o senhor vai falar de mim à Lucinda?
- Mas afinal quem é este homem? - perguntou Lucinda com um semblante de curiosidade, à mistura com uma grande dose de felicidade, como havia muitos anos não sentia.
- Lucinda, este homem não é aquele desgraçado sem eira nem beira que todos julgam ser. Como há pouco eu te dizia, o Leandro está vivo e se está um rapagão, a este homem o deve.
         Lucinda não teve palavras espontâneas que lhe saíssem da boca para responder ao que lhe estava a ser anunciado. O seu cérebro tinha de se preparar, tinha de compreender antes de tudo que aquele pobre caminhante conhecia profundamente, de uma forma oculta, qual o destino de um dos grandes pilares da sua vida - o pequenino Leandro. Medindo com o olhar António Avilar, como que tentando avaliar capacidades escondidas, disse:
- Vocemecê sabe onde está o meu Leandro?
- Assim é - respondeu António Avilar - o seu Leandro, que me considera pai dele.
- Como?
- Lucinda, rapariga, que outra coisa esperavas? - interveio o padre José Soares - o Leandro saiu daqui com um ano de idade.
- E porque è que vocemecê nunca me disse nada?- perguntou Lucinda a António Avilar.
- Ouça Lucinda, eu ia lá imaginar que estivesse assim ligada ao rapaz?! Desconfiei, quando pela primeira vez vi o Helder. Achei que eram muito parecidos. Por isso fui ao Bombarral, de propósito, para confirmar as suspeitas. Afinal, eles são iguais.

         A estas palavras de António Avilar, Lucinda começou a chorar. Eram lágrimas de alegria...(em continuação, pág. 111, ex. XXXIX)
in Quando Um Anjo Peca

Março/1998

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