segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

DUAS OU TRÊS PALAVRAS DESTE FUTRICA DO MONDEGO PARA 2020


Nesta caminhada imparável do tempo, que inexoravelmente consome os séculos e nos consome a nós, aqui estamos outra vez no final de mais um ano.

Neste 19º ano do 3º Milénio (o que será que virão a pensar de nós os portugueses do 1000º ano deste mesmo milénio?) e do século XXI, faço votos para que a vida de todos nós, em 2020, nos traga maior estabilidade (muito embora tenhamos já tido anos piores), nos ofereça muita saúde, pois sem ela bem pode o país ser rico, que nada melhora na vida de quem padece, fomente a felicidade bem fundo nos nossos corações e torne realizáveis os nossos projectos mais ambicionados.

Se for possível fazer a minha voz chegar ao Olimpo, onde se decide a vida dos países e dos homens, gostaria de pedir a quem lá manda que, para o próximo ano de 2020, que está quase a chegar, faça com que esta vergonha nacional, que é a corrupção, que alastra por todos os sectores, mesmo pelos corredores anteriormente puros da justiça, tenha um fim, um fim de forma exemplar, uma vacina que quem manda no Olimpo, invente e injecte, nas artérias mais profundas deste nosso Portugal.

Uma palavra muito emotiva à memória de dois amigos nestas andanças da internet, que já nos deixaram: a Mari Amorim no Brasil, e o Manuel Cardoso no Minho. Nunca vos conheci em carne e osso, nunca ouvi o som da vossa voz e nunca senti o aperto do vosso abraço. Mas convosco tornei-me culturalmente mais rico. Não mais vos esquecerei!

Para todos vós, que continuais a ler duas ou três palavras deste Futrica do Mondego, deste Poeta do Penedo, obrigado pela vossa companhia. Que as musas da felicidade vos encontrem em 2020.

Aquele abraço!


sábado, 14 de dezembro de 2019

NO AR GELADO, LÁ FORA À SOLTA ANDA A MAGIA II



(continuação)

...Tudo estava em completo silêncio. Agachado, para diminuir a sua silhueta, tal como aprendera na já tropa distante, foi-se dirigindo para o local de onde provinha luz: a árvore de natal, o centro de toda a sua atenção. Entrando numa enorme sala, passando silenciosamente entre uma mesa enorme, sofás e maples, aproximava-se da árvore de natal, quando lhe pareceu ouvir um qualquer barulho, como se alguém tivesse tossido. Imediatamente se imobilizou, e assim agachado, começou lentamente a olhar para todos os cantos, tentando fazer com que a vista se habituasse à escuridão. Foi então que uma voz se elevou, quase o matando de susto:

- Zé Inácio, que estás a fazer aqui?

         Perante aquela pergunta Zé Inácio procurou avidamente a fonte da voz, e na escuridão começou a delinear-se uma penumbra, que se foi transformando numa figura, uma figura de homem bem corpulento, cuja voz fazia jus ao físico. A figura movimentou-se ligeiramente, o que foi o bastante para ser iluminada pelas luzes da árvore de natal. O Zé Inácio ficou de boca aberta. Perante si encontrava-se de pé, bem perto da lareira que agora estava apenas em ténues brasas, um homem vestido com umas calças vermelhas de feltro, casaco também de feltro e também encarnado, debruado a branco e um grande barrete, também de feltro vermelho e branco. O homem usava umas farfalhudas barbas brancas.

- E tu, disfarçado de Pai Natal?- perguntou o Zé Inácio em tom de surpresa.

- Disfarçado? Eu sou o Pai Natal- respondeu o homem com convicção.

- Sim, sim, e eu sou o Cristiano Ronaldo.

- Deixa-te de tolices Zé Inácio.

- A propósito, como é que sabes o meu nome?

- Porque sou o Pai Natal e sei tudo sobre os homens. Surpreendes-te? Não é na madrugada de 24 para 25 de Dezembro que se diz que o Pai Natal visita as casas onde existem crianças? Hoje é essa madrugada. Duvidas da minha existência, Zé Inácio?

         O Zé Inácio começava a vacilar na sua convicção de que estava perante um charlatão.

-Bem…quer dizer, quando era criança ainda acreditei, mas logo a vida me demonstrou que o Pai Natal era só para alguns.

- Não Zé Inácio, o Pai Natal é para todos, desde que todos os homens saibam ouvir a criança que ficou a viver neles depois que deixaram de ser crianças. A sensibilidade é a cama onde o amor adormece, meu amigo. Só quem tem sensibilidade é que é capaz de sentir a magia. E esta madrugada é feita de magia, muita magia, a magia do Menino Jesus, e é por isso que tu estás a ver-me e a falares comigo.

- Como posso eu ter magia se em minha casa…

- Eu sei- interrompeu o Pai Natal o que o Zé Inácio ia dizer- eu sei que vives um momento complicado, e que a tua alma está triste porque tens dois filhos pequeninos a quem não podes dar o que gostarias de oferecer…mas eu não me esqueci deles.

- Não?- perguntou o Zé Inácio, com alguma esperança de que algo de bom estivesse para acontecer, não percebendo ainda muito bem se na verdade tinha razões para estar esperançado.

- Não! Mas antes de qualquer outra coisa, responde-me à minha pergunta: o que fazes tu dentro desta casa que não é a tua?

- Eu acho que tu sabes bem por que razão aqui estou. O desespero fez-me entrar aqui para roubar dois brinquedos para os meus pequenos. Eu sei que fiz mal, mas devem haver ali tantos brinquedos que…

- Quando entraste ainda lá não havia brinquedo nenhum. Agora a base da árvore de Natal está cheia…

- Queres-me dizer que foi o Pai Natal…tu, que trouxeste os brinquedos…- dizia o Zé Inácio como que discordando da ideia que o Pai Natal quis fazer passar.

- Mas é claro que fui eu…quem mais poderia ter sido?

- Só te falta dizeres-me que lá fora tens as renas e o trenó à tua espera.

- E que serão elas que te vão levar até à tua casa. Anda, vamos embora, que se está a esgotar o meu tempo de magia que fez com que pudéssemos conversar à vontade sem sermos ouvidos.

- Mas…tu tens mesmo renas lá fora?- perguntava o Zé Inácio cada vez mais incrédulo.

- Tu és mesmo céptico, Zé Inácio. Anda, vamos lá…para as traseiras da casa.

- Traseiras?

- Não ias querer que as renas ficassem aqui à vista de todos, pois não? Isso ia originar aqui um engarrafamento…bem, talvez não originasse porque não anda ninguém na rua.

- Pois, só um triste como eu.

- Anima-te homem, que as coisas vão melhorar.

- Deus te ouça!

- Ele ouve-me sempre…há muito tempo.

         E o Pai Natal, a sorrir, guiou o Zé Inácio até às traseiras daquela casa, que davam para um bonito morro, junto ao qual, numa grande gaiola, dormiam algumas bonitas rolas. E ali, junto à gaiola, encontrava-se um enorme trenó, carregado de sacos e mais sacos, à frente do qual se encontravam seis enormes renas, de grandes chifres, que ao verem o Pai Natal resfolgaram de prazer, deitando pelas narinas golfadas de fumo quente.

         O Zé Inácio ficou completamente boquiaberto.

- Mas…são renas a sério…e um trenó verdadeiro…

- Sobe Zé Inácio- disse o Pai Natal dando uma gargalhada- vamos levar-te a casa, que o teu lugar é junto à tua família.

- Subo? Posso?

- Anda homem, claro que podes.

         E o Zé Inácio, hesitantemente, subiu para o trenó, arranjando um pequeno espaço para si, no meio de todos aqueles sacos.

- Sacos com tantos nomes…em tantas línguas diferentes…- dizia o Zé Inácio maravilhado.

- Esses sacos são para as crianças do mundo inteiro, Zé Inácio- e dizendo isto o Pai Natal disse umas palavras mágicas, fazendo com que as renas imediatamente se colocassem em movimento, o que provocou que as milhentas pequenas campaínhas que tinham ao pescoço começassem a tilintar, tomando a direcção do céu.

         Zé Inácio, ao ver-se a viajar pelo ar, num trenó puxado por renas, finalmente acreditou, e exclamou numa grande gargalhada:

- Mas tu és o Pai Natal!

         E a rir-se Zé Inácio acordou, vendo a sua esposa sentada na cama, a rir-se para ele.

- Estavas a sonhar com alguma coisa engraçada- disse ela.

- Pois estava. Vê lá tu que sonhava que estava a viajar no trenó do Pai Natal, e que ele me veio trazer a casa.

- Não me digas, Zé. É que aconteceu uma coisa fantástica…acho que muito melhor do que fantástico.

- O que foi?- perguntou o Zé Inácio intrigado.

- Acordei a meio da noite, a ouvir umas campainhas e um pequeno barulho junto à nossa porta. Levantei-me e pareceu-me ouvir alguém a dar uma gargalhada. Abri a porta…e estava ali um grande monte de presentes. Fui pô-los na sala. Tu ainda não estavas em casa.

- Quem terá sido?

- Então, um destes ricos altruístas de quem de vez em quando ouvimos falar. Quem sabe, talvez o Pai Natal seja o maior de todos.

         Ambos se riram e foram à sala. Era verdade. Lá estava um grande monte de presentes, nos quais, além de brinquedos, se encontravam também víveres que fizeram mais feliz o Natal daquela família…e um pequeno envelope, com um cartão, onde se lia: «Zé Inácio, nunca deixes de acreditar na magia, e em mim, o Pai Natal».

         Foi então que apareceram os seus dois filhos pequeninos. O de quatro anos a correr, com os olhos brilhantes de felicidade, perante tantos presentes, e o pequerrucho, de dez meses, a gatinhar, que num maravilhoso sorriso balbuciou: «na na na».

         Dois dias depois o Zé Inácio recebeu um telefonema, em que alguém o contratava para um emprego numa oficina.

         Lá na longínqua Lapónia, naquelas vastidões geladas, onde sopra o vento vindo de todo o mundo, chega a mensagem de que o mundo, para ser mesmo feliz, necessita que o Pai Natal seja cada mais forte, para poder chegar aonde não chega a sensibilidade, para que todo o mundo, todo o mundo mesmo, tenha um FELIZ NATAL!
                                                                           FIM

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

NO AR GELADO, À SOLTA LÁ FORA ANDA A MAGIA


NO AR GELADO, À SOLTA LÁ FORA ANDA A MAGIA







Naquela noite de Dezembro, com o frio gélido a tornar mais brilhante o céu estrelado, uma silhueta estranha por momentos desenhou-se em contraste com a reluzente lua cheia.

A silhueta, que consigo transportava o som de mil campainhas a tilintarem, passou incógnita, muito embora ela fosse desejada em todos os lares da cidade, naquela noite abençoada.

Numa das ruas da cidade, naquela noite, a azáfama numa determinada casa, igual à de todas as outras casas, era enorme. Uma família grande estava ali reunida: crianças, adultos, uns mais velhos do que outros, entre pais, avós, filhos, tios, irmãos e primos, todos festejavam com muita alegria e amor a chegada de mais um Natal. Por mais anos que o mundo tenha, por mais natais que se vivam, o Natal é e será sempre uma festa diferente do que foi nos anos anteriores, tão diferente como se nunca o mundo a tivesse festejado. É que bem lá no fundo do espírito natalício, esse mesmo que torna única a mesa de consoada de cada família, está o presépio de Belém, o nascimento daquele menino que, mesmo sem muitas vezes pensarmos nele, tem o condão de, em Dezembro, trazer mais amor e compreensão ao mundo.

Era Natal pois claro. Os meninos e meninas daquela casa andavam numa correria frenética, movendo-se pelo meio dos adultos, agitados não só com os odores que se disseminavam pela casa, vindos da cozinha, mas também pela lembrança de que, da muito fria e distante Lapónia, deveria estar a chegar o magnífico Pai Natal, viajando no seu trenó, carregadinho de presentes, puxado por umas poucas de renas lindas, que através do balanço do seu corpo, no esforço de puxar aquela carroça sem rodas, tão pesada que vinha, faziam tilintar milhentas campainhas penduradas nos seus pescoços.

Os homens, enquanto conversavam, tratavam de pôr a mesa da consoada e escolher os melhores vinhos para acompanhar o belo bacalhau com broa e o polvo à lagareiro, que traria ainda mais cor àquela noite já de si tão maravilhosa. As senhoras tratavam do bacalhau, do polvo, das velhozes, das filhoses e do bolo-rei…e do bolo rainha, que nos últimos anos começara a fazer companhia ao rei, talvez para ocupar o lugar deixado vago pela fava, que já não fazia parte do bolo-rei…enfim, modernices!

Ao fundo da sala daquela casa, como em todas as outras casas daquela cidade, num canto, resplandecia uma enorme árvore de natal, enfeitada com mil bolas e fitas de muitas cores, tudo iluminado por uma quente e espectacular profusão de pequenas luzes, de muitas cores, que acendiam e apagavam ou cujo brilho se tornava mais ou menos intenso. Naquele canto morava o encanto.

E neste calor, em que os saborosos bacalhau e polvo mais uma vez fizeram jus à tradição tão portuguesa, a noite se foi esgotando e o sono começou a chegar aos olhos dos mais pequenos. Tiveram todos dificuldade em adormecer, pois que bem sabiam que o Pai Natal, tão bom como era, iria responder aos seus pedidos de presentes enviados por carta para a Lapónia, e na manhã seguinte iriam encontrar a base da árvore de natal carregadinha de presentes.

Deitadas as crianças, (incluindo aquele lindo bebé de dez meses que milagrosamente se mantivera acordado e sossegado), que teimosamente resistiam ao sono, por imaginarem o Pai Natal por cima das casas aguardando que todos se deitassem e adormecessem, para então depositar a sua tão desejada e preciosa carga na base da árvore de natal, lá iam cedendo, adormecendo profundamente. Os adultos, por seu turno, de coração cheio por, em mais uma santa noite, terem convivido e comemorado em família a data mais amada de toda a cristandade, davam as boas noites e também eles se preparavam para o aconchego do sono. Mas antes que isso acontecesse, ao dono da casa atingiu-o uma enorme vontade de ir à rua e respirar o ar gelado da noite, como que aspirando a magia do natal, que andava à solta lá fora. E assim fez. Inebriado por tamanho sentimento de felicidade, ao reentrar em casa, por descuido de quem já combate o sono, não fechou a porta da rua, apenas a deixando encostada. Dir-se-ia que alguma mente, feita de magia, coordenava os movimentos do dono da casa. E logo a seguir toda a habitação foi mergulhada num enorme silêncio e escuridão, exceptuando uma pequeníssima zona da casa, que resplandecia com o brilho de mil luzinhas de múltiplas cores. Eram quatro da manhã e a cidade dormia profundamente. Mas…toda?

Não, toda não! Um dos seus habitantes deambulava pelas ruas desertas e geladas, aspirando o resto dos odores dos doces tradicionais e das lareiras, cujas brasas se iam apagando. Esse solitário habitante era o Zé Inácio.

Quem era o Zé Inácio?  

Há muitos anos mecânico de um mesmo patrão, o Zé Inácio foi ganhando a vida esforçadamente, tendo por vencimento pouco mais do que o salário mínimo. Mas com a ajuda da esposa, cujo salário ainda era mais baixo do que o seu, lá foram orientando a vida, tendo em casa dois filhos para alimentar, o mais velho apenas de quatro anos de idade. E como o infortúnio quase sempre escolhe a casa do pobre para bater à porta, aconteceu que o vício do jogo do seu patrão falou mais alto, e as dívidas se começaram a avolumar, a ponto de em Outubro o patrão ter declarado falência e desaparecido. Desde então o Zé Inácio ficou no desemprego, e porque as burocracias eram sempre grandes e morosas, ainda não tinha recebido um cêntimo do fundo de desemprego. Desde então soube que em sua casa o Natal iria ser muito pobrezinho. Olhava para os seus dois filhos, o mais novo com apenas dez meses (curiosamente com a mesma idade do bebé da casa onde dormia a enorme família, com um canto em que uma árvore de Natal resplandecia), e sofria porque não iria ter dinheiro para lhes oferecer um brinquedo. Consumido pela tristeza e roído pela revolta, porque bem sabia que era merecedor de uma situação bem melhor, o Zé Inácio partiu para a noite, depois de comida a parca refeição a que não foi dado o nome de consoada, e de os pequenos e a esposa ficarem a dormir.

Por momentos reparara naquela casa que estivera tão iluminada, e para ali ficou a observar a alegria que dela se exalava, ao mesmo tempo que uma lágrima teimosa lhe corria pelo rosto abaixo. Ouviu um bebé chorar e o seu coração apertou-se. Depois tudo foi sossegando e reparou num homem que viera à rua, e que por momentos ali ficara, como que a aspirar qualquer coisa de bom que se encontrava no ar. Ele, que estava na rua havia tanta hora, ainda nada de bom conseguira obter daquele ar. Para os pobres nunca havia bons ares.

Depois o homem reentrou e fechou a porta…ou será que apenas a encostara? Intrigado com esta dúvida, o Zé Inácio, vigiando as redondezas, não fosse o diabo tecê-las e alguém o estivesse a vigiar, o que o faria morrer de vergonha, quase de pé-ante-pé, aproximou-se da porta daquela casa, e levemente tocou nela. A porta oscilou. A porta estava aberta! Ia para a fechar, quando parou o movimento. Tantos brinquedos que deveriam existir ali dentro…só iria tirar dois…quase se não notaria. Resolvido a, por breves momentos, vestir a roupagem de ladrão, para levar umas gotas de alegria aos seus dois filhos, o Zé Inácio introduziu-se na casa…(continua)

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

A PUNIÇÃO DE PTAHKNOR


...Ptahknor não ficara nada satisfeito com a forma como Sobek lhe ordenara que o seguisse. Agora, na presença do deus supremo, ouvindo as suas palavras, teve a certeza de que Seth fora detectado em MassiftonRá, e em consequência disso, fora também descoberta a sua deslealdade para com MassiftonRá e o deus Sobek. Por tal razão, Ptahknor resolveu não arrastar mais aquela difícil situação, pelo que de imediato se confessou.

-         Divino mestre, pelas tuas sábias palavras já percebi que descobriste a minha enorme falta.

-         Falta? Chamas simplesmente falta à permissão da entrada de Seth em MassiftonRá?!- dizia Amon-Rá com enorme ira- tu foste escolhido para Bhokurac porque preencheste os requisitos exigidos para o cargo: inteligência, coragem, honra e lealdade. Mas afinal não passas de um dissimulado. O que realmente te interessa é usurpares o lugar de Sobek. Tu não cometeste uma falta, tu cometeste um crime. Seth é inimigo de MassiftonRá; tu sabes isso muito bem, pois pertences à guarnição de guardiães. MassiftonRá é demasiado perfeito para permitir que um ser abjecto como tu conspurque as suas águas. Sobek- disse Amon-Rá, dirigindo-se ao deus crocodilo- não quero mais ouvir falar de Ptahknor. Por isso resolve a questão. És tu o responsável por todos os guardiães de MassiftonRá.

-         Devolvo-o à normalidade das águas do Nilo- disse Sobek, como que pedindo a opinião ao deus supremo.

-         Sobek, esse Bhokurac cresceu demais. Tornar-se-ia incómodo tanto para os crocodilos do Nilo, como para os humanos.

-         Então...- questionava Sobek, sem perceber bem o que Amon-Rá queria que fosse feito com o crocodilo Ptahknor.

-         Sobek, esse crocodilo não é merecedor de viver nas águas do Nilo- sentenciou Amon-Rá, afastando-se, dirigindo-se para o interior do mundo dos deuses.

-         Já percebi- disse Sobek, em jeito de comentário.

-         Não vou mais viver no Nilo, é isso?- perguntava Ptahknor com incredulidade.

-         E o que é que esperavas? Ser Bhokurac é ter muitas responsabilidades, meu caro. Fugir a elas é condenar-se. Foi o que tu fizeste. Por essa razão, ao romper do sol irás abandonar as águas do Nilo...

-         E vou viver como? Sobek, queres matar-me?

-         Não Ptahknor, não te quero matar. Apenas quero cumprir as ordens de Amon-Rá. Deixa que te diga que é com grande satisfação que o faço, pois não te mereço a ingratidão que demonstraste ter por mim. A partir do romper do sol vais-te tornar inimigo de MassiftonRá. Não tentes viver no Nilo, pois serias atacado pelos Taaril; por outro lado, também não poderás viver no Nilo, pois vais estar anatomicamente impossibilitado de o fazeres.

-         Anatomicamente? Que queres dizer com isso, Sobek?

-         Tens até ao nascer do dia tempo para saíres das águas do Nilo. Assim que o fizeres, o teu corpo de crocodilo dará lugar ao corpo de uma hiena, uma enorme hiena, e irás viver para o deserto. É esta a minha decisão. Agora desaparece Ptahknor. Aqui não és mais benvindo.

Ainda o sol não raiara, e uma enorme hiena foi vista, por alguns felas, a beber nas águas do Nilo. Os homens de imediato lhe deram caça. A hiena foi obrigada a afastar-se rapidamente, tomando a direcção do deserto, sendo perseguida pelos homens, aos berros. A hiena corria, enquanto assistia às últimas gotas da água do Nilo abandonarem o seu corpo. O deserto a aguardava. Quem sabe, talvez um dia se tornasse poderosa, a ponto de poder enfrentar Seth, o deus do deserto, o deus que amaldiçoara a sua vida…(em continuação, ex. XXXIV)
in A Causa de MassiftonRá

quinta-feira, 31 de outubro de 2019

XXIX JANELA SOBRE O MEU PAÍS: QUANDO O SOL NASCE NA COSTA NOVA DO PRADO


Costa Nova do Prado, sete e meia da manhã.
Quando o sol nasce é para todos, mas para alguns o sol nasce para iluminar o descanso, e para outros nasce para iluminar o trabalho. Falta de sol nenhum dos dois grupos tem!

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

PERTENCER A «ESSA GENTE»


...Não mais entraria em conflito com aqueles homens, até porque cada vez se viam menos. Durante muitos anos eles haviam sido considerados os maus da sociedade. Os novos agentes recebiam essa atroz herança assim que se alistavam nos quadros da PSP. Então significava que a revolução de Abril não eliminara todos os maus, pois julgando pela postura do povo relativamente aos policias pós 25 de Abril, os maus de outrora continuavam a actuar nas ruas do nosso país. Eu e o Serôdio pertencíamos a esse grupo repelente, a «essa gente» específica, expressão muito infeliz que por algumas vezes ouvi ser proferida por dignos cidadãos, quando se referiam aos agentes policias. Mas, se por uma improvável hipótese nós aceitássemos esse papel, não haveria ao menos a possibilidade de se colocar a pergunta: e do outro lado? Na parte externa da policia, existiam só santos? A esta pergunta, anos depois veio a resposta. Sumptuosas figuras, banhadas pela ilustre luz da cultura e sólida formação moral, em 1986 afiavam os caninos venenosos, preparando-se para a grande batalha que estava prestes a começar. O seu alvo? Nós, os maus da sociedade; nós, infelizes adolescentes do 25 de Abril de 1974, que naquele sopro de liberdade muito longe estávamos de imaginar que, para nós, aquele inebriante momento de um voo sem fronteiras se tornaria num prolongamento de culpas alheias. Sim, nós, novos policias de 1983...(em continuação), ex. XLI
in Filhos Pobres da Revolta

domingo, 6 de outubro de 2019

REFLEXÃO SOBRE A CONDIÇÃO DE SER POLÍCIA NA DITADURA


Os seus colegas antigos, pobres diabos, haviam sido marionetes, que manipulados pelo regime fascista foram seres que, numa extrema infelicidade, se haviam arrastado por longos quarenta e oito anos de ditadura, sofrendo as agruras de uma impiedosa hierarquia, que lhes sugou o amor próprio, a individualidade, os proibiu de pensar, os privou do descanso e da relação com a família. Enfim, foram homens sem direito à cidadania e privados de vida própria. Eram estas vítimas, agora à beira da reforma, merecedores de mais afrontas? Deixá-los falar, coitados! No fundo desdenhavam, apenas para esconderem a vergonha que sentiam por nunca terem tido coragem de questionar as palavras dos chefes. Mas, os tempos também eram outros. Até os próprios elementos da PSP, do tempo da outra senhora, poderiam ter constas a prestar à PIDE, caso discutissem as ordens recebidas. Podia assim a sua atitude ser interpretada como actuação de agitador, e isso poderia sair-lhes caro. Sobre Portugal pairava a aterradora e sinistra sombra do Tarrafal de Cabo Verde...(em continuação, ex. XL)
in Filhos Pobres da Revolta

sábado, 28 de setembro de 2019

FUNGOS SOCIAIS EM TANCOS


Eu ainda não me tinha esquecido do miserável episódio de Tancos, mas como o considero, muito provavelmente, a coisa mais abjecta que a nossa democracia nos ofereceu, tenho-o mantido nos confins da minha memória. E porquê?

            A nossa população que, cronologicamente, está abaixo do patamar dos…vejamos…58 anos de idade, quando se deu o 25 de Abril tinha 13 anos. Com treze anos poucas coisas relativas à política se retêm. Portanto, esses, muito provavelmente não sentiram a verdadeira força da sigla MFA, que em 25 de Abril de 1974 incendiava os espíritos revolucionários. «O Povo Está Com o MFA». Esta frase foi gritada, por esses dias, milhões de vezes, por gargantas sedentas de justiça social e nenhuma guerra no ultramar. Os que se encontram abaixo dessa faixa etária tomaram conhecimento daquela sigla pela boca dos pais e pelos próprios rumores da história. Isso é uma coisa, mas senti-la e gritá-la com dezoito anos de idade, é outra completamente diferente.

            Eu fui um dos que gritou MFA- Movimento das Forças Armadas até à exaustão. Três anos depois, em 1977, com imenso orgulho iniciei o meu serviço militar obrigatório em Mafra, na Escola Prática de Infantaria, essa escola de guerra, a mãe dos infantes, e uma escola da vida. Por essa razão sei o que para Portugal representam as Forças Armadas. Sim, eu sei que são fundamentais em todos os países, mas em Portugal trouxeram algo mais, porque devolveram a liberdade ao povo, liberdade essa de que a maioria dos que hoje formam o povo português desconhece o verdadeiro e real valor.

            Por isso considero que vivemos, desde há dois anos, o golpe mais baixo, mais ordinário, que a nossa democracia criou. Sim, porque este golpe foi possível apenas e só porque a nossa democracia, de ano para ano, tem perdido os seus mecanismos de defesa contra os fungos sociais, que lhe vão sugando a vitalidade e a seiva, esse micróbio nojento e parasitário da corrupção, que apenas merece o tratamento que o Otelo Saraiva de Carvalho, enquanto comandante do Cop-Con, há muitos anos lhe queria reservar.

            Depois de tudo o que foi dito, e as últimas novas são explosivas, ainda continuo a não perceber como foi possível que um plano, por mais bem elaborado que tenha sido, conseguiu penetrar os muros de Tancos e conseguiu penetrar os paióis propriamente ditos. Só este facto, completamente impossível no meu tempo de tropa, porque um paiol era mais sagrado do que um altar de uma catedral, é uma horrível machadada no digníssimo nome das Forças Armadas. Algo de muito, muito anormal, aconteceu. E não serei eu aqui que escreverei essa suja hipótese, mas que penso nela, isso penso. E é na verdade uma sombra negra.

            E depois vem o resto. Parece que «o fechaduras» (e é ao fim de quase dois anos que volto a ouvir falar nele), depois de ter sido contratado pelo cérebro da operação, a troco de 50000 euros, para abrir as fechaduras das Forças Armadas de Tancos, arrependeu-se e denunciou a operação parece que ao Ministério Público de Loulé…três meses antes do assalto (parece que estamos a falar de um assalto a um supermercado). E a coisa deu-se na mesma. Horrível!

            A política anda agora aos trambolhões, ainda mais às portas de eleições legislativas. Quanto mais mexem mais a coisa cheira mal.

            Nos meses a seguir ao 25 de Abril Portugal assistiu a saneamentos em série. Era tão bom recuperar essa prática e sanear um valente punhado de gente miserável, que há muito está a mais na nossa sociedade.

            Que o povo português continue a elevar bem alto o nome das Forças Armadas, esse valoroso símbolo da nossa amada democracia, e aos que ousaram tentar denegrir as FA, recebam o prémio que toda a indignidade de um povo lhes quer oferecer!

sábado, 14 de setembro de 2019

XXVIII JANELA SOBRE O MEU PAÍS- O MUNDO A NAVEGAR PELOS CANAIS DA RIA DE AVEIRO


Numa tarde quente e luminosa de Setembro duas culturas se cruzam a bordo de moliceiros. Nos canais da ria, na calma de quem nos visita, os moliceiros, outrora barcos de recolha de moliço, na ria de Aveiro, com que se fertilizavam as terras, transportam agora o turista. Das ruas que ladeiam os canais, os cagaréus e os ceboleiros observam o mundo que viaja nos seus barcos históricos, numa multiplicidade de línguas que atravessam os canais, entrecortadas pelos piados das gaivotas e dos corvos marinhos.

            Os canais da ria de Aveiro são agora auto-estradas dos cinco continentes!

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

UM SENTIMENTO INEXPLICÁVEL


...-         Vamos filho, vamos embora... mas estou sem jeito.

-         Porquê pai?

-         Pareceu-me que aqui, perante os meus olhos, tiveste uma transformação, ou melhor, uma recuperação. De um momento para o outro deixei de te sentir tão abatido.

-         Pai, sinto-me realmente mais revigorado. É como se neste momento algo me desse a certeza de que a Catarina está viva... e me aguarda.

-         Que te aguarda? Vê lá o que te passa por essa cabeça. A vida não pode parar...

-         Pai, estás com receio de quê?

-         Por aquilo que me estás a dizer só posso deduzir uma coisa.

-         O quê?

-         Que estás com vontade de ires ter com a Catarina.

-         Suicídio? Não pai, não me percebeste. Eu sinto que a Catarina me aguarda na vida e não na morte.

-         Álvaro, não te enganes, a Catarina morreu...

-         Pai, não me estou a fazer entender. Tal como aconteceu na «operação do alferes bruxo», voltou-me a acontecer algo de estranho.

-         Que é isso do alferes bruxo?

-         É uma história. Vamos embora.

-         Sim vamos, mas não me podes contar essa história?

-         Posso. Trata-se de uma história de guerra que aconteceu o mês passado. Se ela não tivesse existido, talvez tu agora estivesses a chorar a minha morte.

-         Não me digas uma coisa dessas!

-         Não te digo porquê? Seria isso muito mais natural do que ter eu recebido a notícia da morte da Catarina.

-         E o que foi que se passou?- perguntou o enfermeiro Victor, enquanto ambos se afastavam daquele talhão e reentraram na rua empedrada.

-         A nossa companhia foi fazer uma missão de reconhecimento para ver se se detectavam sanzalas inimigas, pois três dias antes o nosso aquartelamento fora alvo de um forte ataque. De repente ouvi uma voz segredar-me ao ouvido que na picada os turras nos tinham preparado uma emboscada. É absurdo, mas confiei plenamente naquele aviso, como se eu próprio tivesse inspeccionado o local da emboscada. Fui avisar o comandante da companhia, um bom homem, excelente comandante. A princípio ele não me deu crédito, mas perante a minha insistência, cedeu com muitas reservas. Aquilo era uma maluquice. Mas...e se fosse verdade? Correndo o risco de me sujeitar a tribunal militar, pois eu estava a interferir com a vida de cento e cinquenta combatentes, mantive a minha palavra, e a coluna militar a partir desse momento tomou um comportamento altamente defensivo, contra um inimigo que ninguém sabia se existia. Mas os turras estavam lá mesmo. Eram cinquenta.

-         Houve muitas baixas?- perguntou o enfermeiro Victor, sentindo através das palavras do filho a sensação de algo semelhante já vivido, acontecido com ele, havia muitos anos.

-         Não se disparou um único tiro e os turras foram todos capturados.

-         Esse caso é perfeitamente insólito. És tu então o alferes bruxo?

-         Sou- respondeu Álvaro sorrindo- tal como naquela altura, em que eu senti a presença do inimigo sem o poder ver, também agora sinto que a Catarina não morreu. E aprendi a confiar neste sentimento de aproximação por quem não se vê e nem se sabe onde se encontra.

-         Mas Álvaro, eu vi a Catarina no caixão. Estive no funeral, o caixão foi ali aberto, vi-o descer à terra...

-         Pai, eu também não conhecia aquela mata, e no entanto a minha profecia revelou-se exacta. Sei que a fonte que me inspirou em Angola é a mesma que me inspira neste momento.

-         Vais dizer isso aos pais da Catarina?

-         Evidentemente! Anunciar-lhes a vida da filha é o grande presente de Natal da vida deles.

-         Vão-te chamar louco, vão pensar que o Ultramar te transtornou a cabeça.

-         É isso que tu pensas?

-         Eu...- o pai de Álvaro manteve-se uns segundos em silêncio, fixando o filho- não Álvaro, não é isso que eu penso, porque compreendo o inexplicável desse teu sentimento.

-         Como é que podes percebê-lo?

-         Um dia te direi. Também tenho uma história para contar, mas fica para outra altura. Os pais da Catarina querem-te ver...(em continuação, ex. XXXIX)

in Visitados

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

UM EXEMPLO VINDO DA AMAZÓNIA


Quando a Amazónia é notícia por razões ligadas à sua integridade como a maior floresta tropical do planeta, e concomitantemente o seu pulmão, e que levam ao ataque, em geral, do ambiente a nível planetário- a ganância industrial pelo lucro, surge esta foto perfeitamente excepcional: uma mulher, pertencente a uma das tribos daquela região amazónica, com o seu bebé ao colo, amamentando ao mesmo tempo uma cria de javali, cuja mãe tinha sido abatida por caçadores furtivos.

            O autor desta foto ganhou um prémio internacional.

            Se toda a humanidade seguisse o exemplo desta mulher, o mundo não teria os lamentáveis índices de egoísmo em que anda afogado, nem o planeta teria em risco o seu equilíbrio natural.

            Esta mulher explica-nos quão maravilhosa pode ser a simbiose entre a humanidade e a natureza, e até que ponto é feio este preconceito que o homem apresenta de se sentir superior às outras espécies, esquecendo-se de que não passa de homo sapiens, uma espécie animal entre muitas, que fazem parte da fauna do planeta Terra.

sábado, 24 de agosto de 2019

VISITANDO UM LUGAR SÓRDIDO, ANTRO DE SOLIDÃO


...Caminhavam em direcção a um talhão. Os jazigos tinham ficado para trás. O pai parara.

-         É aquela meu filho- disse tristemente o enfermeiro Victor.

Álvaro olhou para onde o pai indicara, uma sepultura recente, cuja cor castanha da terra molhada espreitava aqui e ali pelo meio de muitas coroas de flores, que contavam a história de um funeral abundante em gente, onde muitos olhos jovens haviam chorado lágrimas de profundo pesar, por uma vida que fora ceifada quando tão distante da morte estava.

-         É horrível ver este monte de terra.

-         Então Álvaro, ainda leva algum tempo até poder ter uma pedra tumular. Depois ficará mais composta.

-         Composta? Composta para quê? Sabes pai, não tem graça nenhuma visitar a morte. Nunca mais aqui venho.

-         Como nunca mais aqui vens? Por respeito, por amor, por saudade...

-         Pai, por respeito a Catarina quero vê-la onde ela merece estar, na minha memória, tornando eterna toda a sua beleza. Aqui, neste... neste lugar sórdido, antro de solidão e desolação, nada existe, absolutamente nada. Amor e saudade...- dizia Álvaro olhando o céu- mal de mim, mal de todos nós se buscássemos o amor e a saudade num sítio como este. Aqui até o céu azul, num dia de sol, se deve tornar baço. Pai, eu sei e sinto que se quero encontrar algo da Catarina, não é aqui que devo procurar. Vamos embora?

O enfermeiro Victor estava um pouco perplexo. Contrariamente ao que a lógica ditava, Álvaro ao ver a sepultura da namorada não se angustiara, como era de esperar. Pelo contrário, o seu corpo tornou-se menos flácido, o seu rosto ganhou alguma luz, no seu olhar existia mais brilho. (em continuação, ex. XXXVIII)
in Visitados

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

ALGUÉM POR MIM OLHOU


          



Num tempo

Que ao tempo

Já não ocupa espaço,

Na pressa do abrigo

Ver surgir,

Vi nascer a minha essência

Vi abrir-se o teu sorrir.

Por mim passou o desejo,

O amor que se fez sem pressa.

Onde estás que te não vejo

Dono da minha existência.

Tive dias de alegria

Alguém por mim olhou,

Uma voz que sempre dizia

Que eu não chegaria

Ao que sou.

Mas a morte um dia veio

Afugentando de mim a vida.

A promessa ficou pelo meio,

Já que tu,

Meu dono,

Depressa foste de partida.

O meu dono é agora a solidão

Não passo de um triste ermo,

Sou sangue sem coração

Sou história a que se pôs termo.

Na ruína do meu ser

Tenho por companhia o luar.

Já me não é possível querer

O amor,

Que outrora em mim teve lugar.

sábado, 3 de agosto de 2019

XXVII JANELA SOBRE O MEU PAÍS- O MÁGICO COLORIDO DAS ÁRVORES


Numa noite de Aveiro, em que nas águas calmas dos canais urbanos da ria, nos sossegados moliceiros navegavam festivais, as árvores enchiam-se de magia, colorindo os aplausos dos homens que ovacionavam a navegação serena dos moliceiros festivaleiros.

segunda-feira, 29 de julho de 2019

OS ANJOS, POR REGRA, NÃO COSTUMAM TER IDENTIDADE


- Vitorino de Lourenço Fernando- releu o advogado- tem semelhanças.

- Decerto que ao escrever um falso nome, o Vitorino arriscou. O outro talvez não soubesse o nome certo do morgado ou este testou a sua capacidade de leitura. Depois vêm as delimitações que estão trocadas com os respectivos pontos cardeais.

- Sabe senhor padre, em tribunal este documento pode facilmente ser destituído de veracidade. Afinal, nunca um Vitorino de Lourenço Fernando foi proprietário da herdade Vila de Ló. Como tal nunca poderia vender o que nunca foi seu. E não nos podemos esquecer da possível relação existente entre a data e a base do armário.

- Eu estou cheio de esperança e expectativa. Neste momento quase que consigo sentir a proximidade de uma Alfeizerão ainda monárquica. Mas toda esta esperança se me aperta no peito numa manifestação de amargura, ao sentir que o Vitorino morreu a pedir-me ajuda e a desistir de Deus.

- Diz isso por causa da última frase do texto- “sem fé”?

- Exactamente.

- Ora senhor padre, eu que não conheci o senhor morgado, estou a detectar a subtileza. O texto não começa com a frase - “sob minha fé?” Pois se ele escreveu “sem fé”, é o mesmo que dizer que a venda da herdade é uma mentira.

- Ò homem, que a tristeza me atrofiou a inteligência. Mas é isso mesmo. Deus lhe pague por esta misericórdia que me acabou de fazer. Até respiro melhor. Com a ajuda que Deus enviou de dois lados, estou certo de que a identidade perdida dos Lourena Fernandes voltará a florescer aqui, na sua terra.

- A dupla ajuda divina! Eu... e o anjo- disse Américo ironicamente.

- Sim, o senhor doutor e um anjo.

- Os anjos, por regra, não costumam ter identidade- disse Américo ironicamente.

- E este não foge à regra. Mas, almoçados que estamos, não quererá o senhor doutor visitar a minha humilde capela, ler o assento de baptismo dos dois gémeos? Penso que lá está a prova em como eles são filhos do morgado Vitorino.

- Pois então não percamos tempo - respondeu Américo - ainda hoje tenho doze léguas para percorrer e um rapazinho para conhecer. Estou deveras curioso.

         E os dois homens atravessaram aquele início de tarde de Dezembro, onde a esperança renascia sob um tépido sorriso do sol…(em continuação,ex. LVI)

in Quando Um Anjo Peca

sábado, 20 de julho de 2019

HÁ 50 ANOS, O MIÚDO DE TREZE ANOS QUE SOUBE ESPERAR PELA APÓLO 11 NA LUA, NA TELEVISÃO


Nesse ano de 1969 a Nasa, nos Estados Unidos, lançou-se em força para o espaço, com o programa Apólo. Acho que a meio de Julho desse ano foi lançada para o espaço a Missão Apólo 11, cujo objectivo era o de levar dois astronautas ao solo lunar, ao «mar da tranquilidade». E o homem chegou à lua nesse mês de Julho de 1969. Lá em casa ninguém demonstrou grande entusiasmo por seguir em directo a emissão, pelo que à hora normal toda a família se foi deitar. Mas eu não conseguia dormir. O homem ia poisar na lua, isso ia dar em directo na televisão, e eu não iria ver? Já nessa época, apenas com treze anos, eu era apaixonado pelos feitos do homem e toda essa carga emocional que me suscitam os grandes actos. E convictamente decidi enfrentar todos os riscos.

Era uma noite de verão, uma característica noite de verão em Coimbra, com imenso calor. Da janela aberta da sala chegavam-me os sons dos grilos que cantavam à lua (que nessa noite tinha intrusos), grilos que se encontravam pelas tocas nos terrenos baldios que rodeavam aquela pequena casa, encarrapitada lá no alto. Comigo estava o meu gato, preto e branco, o «Corredor», que dormia comigo. Acho que verdadeiramente era o meu grande amigo naquela fortaleza. E perto das duas horas da manhã, hora marcada para se dar início à emissão, eu liguei a televisão, esse acto criminoso e hediondo. Mas fi-lo, por amor à ciência, e respeito pelos homens que arriscavam a vida para que a humanidade progredisse. A televisão estava num som quase imperceptível. E então, no televisor surgiu, no estúdio, o jornalista José Mensurado, dando algumas explicações. Explicou, por exemplo, que a nave «mãe» se encontrava em órbita lunar, sendo apenas tripulada por um astronauta- Michael Collins, enquanto que os outros dois seus companheiros, Edwin Aldrin e Neil Armstrong, tinham entrado num módulo lunar, que tinha estado acoplado à nave mãe e que brevemente poisaria no solo lunar. Mas que tremenda expectativa. Havia lá alguma ordem «obscuriana» que naquele momento me fizesse afastar do televisor a preto e branco?!

E depois a transmissão, há cinquenta anos, conseguiu transmitir em directo o módulo lunar a poisar. É claro que tudo decorria muito lentamente. Desde que o módulo lunar poisou (parecia uma aranha), até a porta se abrir, decorreu uma eternidade. E eu, de vez em quando, ia à janela, e observava intensamente a lua, que estava muito brilhante nessa noite, e tentava conseguir ver um pontinho pequenino, que me conseguisse localizar os meus heróis na dimensão do pequeno planeta.

E depois aquele momento extraordinário de ver o Neil Armstrong assomar à escotilha do módulo lunar, completamente envolto naquele fato espacial complicadíssimo, com imagens da lua reflectidas no visor do excepcional capacete, e começar a descer as pequenas escadas. E eu com treze anos reparei, e memorizei, aquela breve hesitação do Neil Armstrong com o pé direito, retirado do degrau e dirigindo-o em direcção ao solo lunar, quando o tinha a breves centímetros do solo parou o movimento, e por dois ou três segundos manteve o pé suspenso, para seguidamente o poisar com enorme precaução. E seguidamente, ao retirar as mãos dos corrimões das escadas metálicas, deixando de ter contacto físico com o módulo lunar, ao dar o seu primeiro passo, ter dito a fabulosa frase: «este é um pequeno passo para o homem, um enorme salto para a humanidade». Esta, talvez a frase mais célebre de toda a história da humanidade, desde que a humanidade escreve, e eu vi-a a ser proferida pela primeira vez, pelo seu autor, o astronauta Neil Armstrong, por volta das três da manhã do dia 20 de Julho de 1969…na lua.

in Prosas Pelas Janelas da Vida