NO AR GELADO, À SOLTA LÁ FORA ANDA A
MAGIA
Naquela
noite de Dezembro, com o frio gélido a tornar mais brilhante o céu estrelado,
uma silhueta estranha por momentos desenhou-se em contraste com a reluzente lua
cheia.
A
silhueta, que consigo transportava o som de mil campainhas a tilintarem, passou
incógnita, muito embora ela fosse desejada em todos os lares da cidade, naquela
noite abençoada.
Numa
das ruas da cidade, naquela noite, a azáfama numa determinada casa, igual à de
todas as outras casas, era enorme. Uma família grande estava ali reunida:
crianças, adultos, uns mais velhos do que outros, entre pais, avós, filhos,
tios, irmãos e primos, todos festejavam com muita alegria e amor a chegada de
mais um Natal. Por mais anos que o mundo tenha, por mais natais que se vivam, o
Natal é e será sempre uma festa diferente do que foi nos anos anteriores, tão
diferente como se nunca o mundo a tivesse festejado. É que bem lá no fundo do
espírito natalício, esse mesmo que torna única a mesa de consoada de cada
família, está o presépio de Belém, o nascimento daquele menino que, mesmo sem
muitas vezes pensarmos nele, tem o condão de, em Dezembro, trazer mais amor e
compreensão ao mundo.
Era
Natal pois claro. Os meninos e meninas daquela casa andavam numa correria
frenética, movendo-se pelo meio dos adultos, agitados não só com os odores que
se disseminavam pela casa, vindos da cozinha, mas também pela lembrança de que,
da muito fria e distante Lapónia, deveria estar a chegar o magnífico Pai Natal,
viajando no seu trenó, carregadinho de presentes, puxado por umas poucas de
renas lindas, que através do balanço do seu corpo, no esforço de puxar aquela
carroça sem rodas, tão pesada que vinha, faziam tilintar milhentas campainhas
penduradas nos seus pescoços.
Os
homens, enquanto conversavam, tratavam de pôr a mesa da consoada e escolher os
melhores vinhos para acompanhar o belo bacalhau com broa e o polvo à lagareiro,
que traria ainda mais cor àquela noite já de si tão maravilhosa. As senhoras
tratavam do bacalhau, do polvo, das velhozes, das filhoses e do bolo-rei…e do
bolo rainha, que nos últimos anos começara a fazer companhia ao rei, talvez para
ocupar o lugar deixado vago pela fava, que já não fazia parte do
bolo-rei…enfim, modernices!
Ao
fundo da sala daquela casa, como em todas as outras casas daquela cidade, num
canto, resplandecia uma enorme árvore de natal, enfeitada com mil bolas e fitas
de muitas cores, tudo iluminado por uma quente e espectacular profusão de
pequenas luzes, de muitas cores, que acendiam e apagavam ou cujo brilho se
tornava mais ou menos intenso. Naquele canto morava o encanto.
E
neste calor, em que os saborosos bacalhau e polvo mais uma vez fizeram jus à
tradição tão portuguesa, a noite se foi esgotando e o sono começou a chegar aos
olhos dos mais pequenos. Tiveram todos dificuldade em adormecer, pois que bem
sabiam que o Pai Natal, tão bom como era, iria responder aos seus pedidos de
presentes enviados por carta para a Lapónia, e na manhã seguinte iriam
encontrar a base da árvore de natal carregadinha de presentes.
Deitadas
as crianças, (incluindo aquele lindo bebé de dez meses que milagrosamente se
mantivera acordado e sossegado), que teimosamente resistiam ao sono, por
imaginarem o Pai Natal por cima das casas aguardando que todos se deitassem e
adormecessem, para então depositar a sua tão desejada e preciosa carga na base
da árvore de natal, lá iam cedendo, adormecendo profundamente. Os adultos, por
seu turno, de coração cheio por, em mais uma santa noite, terem convivido e
comemorado em família a data mais amada de toda a cristandade, davam as boas
noites e também eles se preparavam para o aconchego do sono. Mas antes que isso
acontecesse, ao dono da casa atingiu-o uma enorme vontade de ir à rua e
respirar o ar gelado da noite, como que aspirando a magia do natal, que andava à
solta lá fora. E assim fez. Inebriado por tamanho sentimento de felicidade, ao
reentrar em casa, por descuido de quem já combate o sono, não fechou a porta da
rua, apenas a deixando encostada. Dir-se-ia que alguma mente, feita de magia,
coordenava os movimentos do dono da casa. E logo a seguir toda a habitação foi
mergulhada num enorme silêncio e escuridão, exceptuando uma pequeníssima zona
da casa, que resplandecia com o brilho de mil luzinhas de múltiplas cores. Eram
quatro da manhã e a cidade dormia profundamente. Mas…toda?
Não,
toda não! Um dos seus habitantes deambulava pelas ruas desertas e geladas,
aspirando o resto dos odores dos doces tradicionais e das lareiras, cujas
brasas se iam apagando. Esse solitário habitante era o Zé Inácio.
Quem
era o Zé Inácio?
Há
muitos anos mecânico de um mesmo patrão, o Zé Inácio foi ganhando a vida
esforçadamente, tendo por vencimento pouco mais do que o salário mínimo. Mas
com a ajuda da esposa, cujo salário ainda era mais baixo do que o seu, lá foram
orientando a vida, tendo em casa dois filhos para alimentar, o mais velho
apenas de quatro anos de idade. E como o infortúnio quase sempre escolhe a casa
do pobre para bater à porta, aconteceu que o vício do jogo do seu patrão falou
mais alto, e as dívidas se começaram a avolumar, a ponto de em Outubro o patrão
ter declarado falência e desaparecido. Desde então o Zé Inácio ficou no desemprego,
e porque as burocracias eram sempre grandes e morosas, ainda não tinha recebido
um cêntimo do fundo de desemprego. Desde então soube que em sua casa o Natal
iria ser muito pobrezinho. Olhava para os seus dois filhos, o mais novo com
apenas dez meses (curiosamente com a mesma idade do bebé da casa onde dormia a
enorme família, com um canto em que uma árvore de Natal resplandecia), e sofria
porque não iria ter dinheiro para lhes oferecer um brinquedo. Consumido pela
tristeza e roído pela revolta, porque bem sabia que era merecedor de uma
situação bem melhor, o Zé Inácio partiu para a noite, depois de comida a parca
refeição a que não foi dado o nome de consoada, e de os pequenos e a esposa
ficarem a dormir.
Por
momentos reparara naquela casa que estivera tão iluminada, e para ali ficou a
observar a alegria que dela se exalava, ao mesmo tempo que uma lágrima teimosa
lhe corria pelo rosto abaixo. Ouviu um bebé chorar e o seu coração apertou-se.
Depois tudo foi sossegando e reparou num homem que viera à rua, e que por
momentos ali ficara, como que a aspirar qualquer coisa de bom que se encontrava
no ar. Ele, que estava na rua havia tanta hora, ainda nada de bom conseguira
obter daquele ar. Para os pobres nunca havia bons ares.
Depois
o homem reentrou e fechou a porta…ou será que apenas a encostara? Intrigado com
esta dúvida, o Zé Inácio, vigiando as redondezas, não fosse o diabo tecê-las e
alguém o estivesse a vigiar, o que o faria morrer de vergonha, quase de
pé-ante-pé, aproximou-se da porta daquela casa, e levemente tocou nela. A porta
oscilou. A porta estava aberta! Ia para a fechar, quando parou o movimento.
Tantos brinquedos que deveriam existir ali dentro…só iria tirar dois…quase se
não notaria. Resolvido a, por breves momentos, vestir a roupagem de ladrão,
para levar umas gotas de alegria aos seus dois filhos, o Zé Inácio introduziu-se
na casa…(continua)
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