quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

NO AR GELADO, À SOLTA LÁ FORA ANDA A MAGIA


NO AR GELADO, À SOLTA LÁ FORA ANDA A MAGIA







Naquela noite de Dezembro, com o frio gélido a tornar mais brilhante o céu estrelado, uma silhueta estranha por momentos desenhou-se em contraste com a reluzente lua cheia.

A silhueta, que consigo transportava o som de mil campainhas a tilintarem, passou incógnita, muito embora ela fosse desejada em todos os lares da cidade, naquela noite abençoada.

Numa das ruas da cidade, naquela noite, a azáfama numa determinada casa, igual à de todas as outras casas, era enorme. Uma família grande estava ali reunida: crianças, adultos, uns mais velhos do que outros, entre pais, avós, filhos, tios, irmãos e primos, todos festejavam com muita alegria e amor a chegada de mais um Natal. Por mais anos que o mundo tenha, por mais natais que se vivam, o Natal é e será sempre uma festa diferente do que foi nos anos anteriores, tão diferente como se nunca o mundo a tivesse festejado. É que bem lá no fundo do espírito natalício, esse mesmo que torna única a mesa de consoada de cada família, está o presépio de Belém, o nascimento daquele menino que, mesmo sem muitas vezes pensarmos nele, tem o condão de, em Dezembro, trazer mais amor e compreensão ao mundo.

Era Natal pois claro. Os meninos e meninas daquela casa andavam numa correria frenética, movendo-se pelo meio dos adultos, agitados não só com os odores que se disseminavam pela casa, vindos da cozinha, mas também pela lembrança de que, da muito fria e distante Lapónia, deveria estar a chegar o magnífico Pai Natal, viajando no seu trenó, carregadinho de presentes, puxado por umas poucas de renas lindas, que através do balanço do seu corpo, no esforço de puxar aquela carroça sem rodas, tão pesada que vinha, faziam tilintar milhentas campainhas penduradas nos seus pescoços.

Os homens, enquanto conversavam, tratavam de pôr a mesa da consoada e escolher os melhores vinhos para acompanhar o belo bacalhau com broa e o polvo à lagareiro, que traria ainda mais cor àquela noite já de si tão maravilhosa. As senhoras tratavam do bacalhau, do polvo, das velhozes, das filhoses e do bolo-rei…e do bolo rainha, que nos últimos anos começara a fazer companhia ao rei, talvez para ocupar o lugar deixado vago pela fava, que já não fazia parte do bolo-rei…enfim, modernices!

Ao fundo da sala daquela casa, como em todas as outras casas daquela cidade, num canto, resplandecia uma enorme árvore de natal, enfeitada com mil bolas e fitas de muitas cores, tudo iluminado por uma quente e espectacular profusão de pequenas luzes, de muitas cores, que acendiam e apagavam ou cujo brilho se tornava mais ou menos intenso. Naquele canto morava o encanto.

E neste calor, em que os saborosos bacalhau e polvo mais uma vez fizeram jus à tradição tão portuguesa, a noite se foi esgotando e o sono começou a chegar aos olhos dos mais pequenos. Tiveram todos dificuldade em adormecer, pois que bem sabiam que o Pai Natal, tão bom como era, iria responder aos seus pedidos de presentes enviados por carta para a Lapónia, e na manhã seguinte iriam encontrar a base da árvore de natal carregadinha de presentes.

Deitadas as crianças, (incluindo aquele lindo bebé de dez meses que milagrosamente se mantivera acordado e sossegado), que teimosamente resistiam ao sono, por imaginarem o Pai Natal por cima das casas aguardando que todos se deitassem e adormecessem, para então depositar a sua tão desejada e preciosa carga na base da árvore de natal, lá iam cedendo, adormecendo profundamente. Os adultos, por seu turno, de coração cheio por, em mais uma santa noite, terem convivido e comemorado em família a data mais amada de toda a cristandade, davam as boas noites e também eles se preparavam para o aconchego do sono. Mas antes que isso acontecesse, ao dono da casa atingiu-o uma enorme vontade de ir à rua e respirar o ar gelado da noite, como que aspirando a magia do natal, que andava à solta lá fora. E assim fez. Inebriado por tamanho sentimento de felicidade, ao reentrar em casa, por descuido de quem já combate o sono, não fechou a porta da rua, apenas a deixando encostada. Dir-se-ia que alguma mente, feita de magia, coordenava os movimentos do dono da casa. E logo a seguir toda a habitação foi mergulhada num enorme silêncio e escuridão, exceptuando uma pequeníssima zona da casa, que resplandecia com o brilho de mil luzinhas de múltiplas cores. Eram quatro da manhã e a cidade dormia profundamente. Mas…toda?

Não, toda não! Um dos seus habitantes deambulava pelas ruas desertas e geladas, aspirando o resto dos odores dos doces tradicionais e das lareiras, cujas brasas se iam apagando. Esse solitário habitante era o Zé Inácio.

Quem era o Zé Inácio?  

Há muitos anos mecânico de um mesmo patrão, o Zé Inácio foi ganhando a vida esforçadamente, tendo por vencimento pouco mais do que o salário mínimo. Mas com a ajuda da esposa, cujo salário ainda era mais baixo do que o seu, lá foram orientando a vida, tendo em casa dois filhos para alimentar, o mais velho apenas de quatro anos de idade. E como o infortúnio quase sempre escolhe a casa do pobre para bater à porta, aconteceu que o vício do jogo do seu patrão falou mais alto, e as dívidas se começaram a avolumar, a ponto de em Outubro o patrão ter declarado falência e desaparecido. Desde então o Zé Inácio ficou no desemprego, e porque as burocracias eram sempre grandes e morosas, ainda não tinha recebido um cêntimo do fundo de desemprego. Desde então soube que em sua casa o Natal iria ser muito pobrezinho. Olhava para os seus dois filhos, o mais novo com apenas dez meses (curiosamente com a mesma idade do bebé da casa onde dormia a enorme família, com um canto em que uma árvore de Natal resplandecia), e sofria porque não iria ter dinheiro para lhes oferecer um brinquedo. Consumido pela tristeza e roído pela revolta, porque bem sabia que era merecedor de uma situação bem melhor, o Zé Inácio partiu para a noite, depois de comida a parca refeição a que não foi dado o nome de consoada, e de os pequenos e a esposa ficarem a dormir.

Por momentos reparara naquela casa que estivera tão iluminada, e para ali ficou a observar a alegria que dela se exalava, ao mesmo tempo que uma lágrima teimosa lhe corria pelo rosto abaixo. Ouviu um bebé chorar e o seu coração apertou-se. Depois tudo foi sossegando e reparou num homem que viera à rua, e que por momentos ali ficara, como que a aspirar qualquer coisa de bom que se encontrava no ar. Ele, que estava na rua havia tanta hora, ainda nada de bom conseguira obter daquele ar. Para os pobres nunca havia bons ares.

Depois o homem reentrou e fechou a porta…ou será que apenas a encostara? Intrigado com esta dúvida, o Zé Inácio, vigiando as redondezas, não fosse o diabo tecê-las e alguém o estivesse a vigiar, o que o faria morrer de vergonha, quase de pé-ante-pé, aproximou-se da porta daquela casa, e levemente tocou nela. A porta oscilou. A porta estava aberta! Ia para a fechar, quando parou o movimento. Tantos brinquedos que deveriam existir ali dentro…só iria tirar dois…quase se não notaria. Resolvido a, por breves momentos, vestir a roupagem de ladrão, para levar umas gotas de alegria aos seus dois filhos, o Zé Inácio introduziu-se na casa…(continua)

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