domingo, 23 de fevereiro de 2020

CORAÇÃO DE UM COIMBRÃO


E com o avançar do verão chegou aquele tão temido dia- 14 de Agosto de 1974, dia em que, com o peito em sobressalto e os olhos marejados de lágrimas, me despedi de toda a Rua Luís de Camões.

As linhas que em Coimbra a minha vida haveria de compor estavam a terminar o seu ciclo. Escrever sobre a minha Coimbra é escrever sobre uma alma portuguesa, um ser-se português no mais romântico que tem a essência lusitana. Corra-se todo o território nacional, percorra-se todo o antigo Império Romano, e decerto que não se encontra nome mais belo do que este- AEMINIUM.

É um privilégio ter-se nascido conimbricense. Coimbra guarda valiosas memórias da história de Portugal.

Na Alta, na minha saudosa Alta, encontra-se a majestosa e muitas vezes secular Sé Velha, de estilo Românico. Nas suas pedras gastas pelo tempo segredei muitos dos meus ideais da juventude. Ainda na Alta, a meio caminho da Baixa, quantas foram as vezes em que passei sob o Arco de Almedina, a primitiva entrada de uma Coimbra ainda mourisca. Descendo a Visconde da Luz, eis-me na Praça 8 de Maio e ali, quantas vezes os meus olhos passearam pela muita antiga, imponente e sublime Igreja de Santa Cruz, onde repousam os restos mortais do fundador da nacionalidade, o nosso primeiro rei D. Afonso Henriques.

Já na Portagem, actualmente sem a passagem dos meus carinhosos eléctricos, que tanta nostalgia me traziam, atravessando a ponte, quantas vezes senti a mística que envolve o Mosteiro de Santa Clara a Velha, que o rio Mondego reclamou como sendo seu. E olhando aquele velho mosteiro submerso pelas águas do Mondego, me vinha à memória a Rainha Santa Isabel e o Milagre das Rosas; e ali bem perto, na Fonte dos Amores, era impossível esquecer o dramático romance de D. Pedro e D. Inês de Castro, Pedro e Inês, eternos amantes. Daquele mesmo local muitas vezes avistei a opulência da Torre da Universidade de Coimbra, fundada por D. Dinis em 1308.

Universidade de Coimbra, só ela é uma história. E quantas histórias não criou, que se disseminaram por este país fora e pelo mundo: o Hilário, o PadZé… e os meus muito queridos e particulares Bruno Rosa da Cunha e Luís Diogo Fareleira Simão Gomes. Histórias que orgulhosamente, todas elas, envergaram capa e batina, se passearam pelo choupal, namoraram tricanas, envolveram-se em disputas ferozes com fútricas, gritaram o A.F.R.A…. e arderam de paixão no Penedo da Saudade.

Da minha Académica, da Festa do Espírito Santo aos Olivais, da Queima das Fitas, de respirar Coimbra, eu tenho saudades.

Das trupes, do Fado Hilário e das Serenatas, eu tenho saudades.

«Coimbra tem mais encanto na hora da despedida». Ser de Coimbra é reter no coração a envolvência misteriosa de um ambiente único, onde o passado intervém no presente.

Só quem já passou por uma hora de despedida a Coimbra, pode efectivamente cantar o seu encanto. Eu posso fazê-lo, muito embora recuse a idéia de alguma vez me ter despedido de Coimbra. Nunca deixei de lá residir, mesmo estando ausente.

E assim este coimbrão, com a alma negra como negra é a capa de estudante, a meio daquele Agosto de 1974, seguindo o Bruno e a mãe, acompanhado pelas irmãs Léninha e Elsie, lá seguiu em direcção ao seu novo destino, à sua nova vida, para uma terra chamada Alfeizerão.

Como se lhe rasgou a alma ao atravessar a Ponte de Santa Clara, sobre o seu querido Mondego…
in Prosas Pelas Janelas da Vida
livro I


domingo, 16 de fevereiro de 2020

UM NOIVO PARA MARIA CLARA...COISAS SEM NEXO, DECERTO


Nos dias que se seguiram à visita do inglês Jack Horn a Malhal de Sula, andei pela região, exercendo a minha actividade clínica e ao mesmo tempo conversando com as pessoas sobre o que acontecera no Luso, nas terras do Conde de Cértima. Eu sabia que se algo corresse pela boca do povo, é porque alguma verdade havia no que corria. E de duas coisas eu fiquei ciente: não corriam boatos sobre o nome do assassino, embora tivesse ouvido muitas conjecturas, nenhuma que incluísse o nome de Pedro Corga, o que queria dizer que o inglês se mantinha calado, o que não facilitava nada a minha tarefa; e não corria que o regedor tivesse ainda movido uma palha, no propósito de tentar descobrir alguma pista que o levasse à identidade do assassino.

         O meu instinto não permitia que eu fosse a casa de D. Rodrigo Corga, mas ele era meu doente e eu tinha de continuar o meu trabalho.

         Lá fiz o meu domicílio.

         O Conde de Cértima recebeu-me sem grande entusiasmo. Depois de eu lhe ter aplicado uma nova porção do unguento contra o reumatismo, D. Rodrigo Corga disse-me:

- Senhor doutor, penso que por via deste meu mal não precisará o senhor de voltar cá a casa. Já me sinto bem. As suas mezinhas são boas. Resta-me fazer contas consigo e sempre que seja necessário lá o chamarei.

- Como Vossa Excelência entender. E desde já os meus agradecimentos pela confiança que Vossa Excelência demonstra pelos meus serviços.

- Está certo, está certo – disse o conde – espero que tão depressa não o tenha de chamar, até porque agora mal calharia já que estou próximo de arranjar casamento à minha filha. Finalmente! Já vai com trinta anos de idade.

- A senhora D. Maria Clara vai-se casar? – perguntei eu, com um sorriso que a mim próprio me pareceu muito desmaiado.

- Se Deus o permitir, será com o Visconde de Sá. É uma casa distinta de Aveiro.

- Folgo em saber essa notícia – voltei eu a falar, sentindo que as cordas vocais se me tolhiam.

         Depois o Conde de Cértima pagou o preço das minhas consultas. E quando me preparava para sair, perguntei-lhe:

- Excelência, notícias sobre o nome do matador, não há nenhuma?

- Não, senhor doutor. Que quer? Se o descobridor pouco sabe do seu ofício, pouco ou nada se descobre. E no fundo, aos mortos tanto se lhes dá que se descubra como não. Debaixo da terra ninguém os tira.

- Mas, Excelência, anda um criminoso a monte!

- Vá dizer isso ao regedor. Ainda aqui não pôs os pés e já lá vão não sei quantos dias.

- E como está o senhor Francisco Carvalho?

- Como há-de estar?! Lá lhe dei uns cruzados para tornar mais pequena a dor e o animar, que tanoeiro como ele não há outro por aqui.

         Achei o conde com muita falta de piedade, contrariamente ao que tinha presenciado no dia em que os mortos haviam sido encontrados. Suscitou-me aquela atitude algumas dúvidas, coisas sem nexo, decerto…(em continuação, ex. XXXII)
in Alma de Liberal

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

O CASO DA MOFINA MENDES


Poucos meses antes de se ter dado o 25 de Abril de 1974, a minha turma, no Liceu D. João III em Coimbra, viveu um episódio complicado, porventura o mais complicado de toda a minha vida estudantil. Eram então uma novidade as aulas de substituição, coisa mesmo muito recente. Aconteceu então que numa inesquecível aula de ginástica o professor não compareceu. Perante a ausência do mestre, e contrariamente ao que era habitual, fomos mandados para a sala de aula e aguardar pela vinda de um outro professor, que de alguma forma iria ocupar o espaço deixado vago pelo colega faltoso. E saiu-nos na rifa uma professora de história, muito nova. Acresce dizer que a nossa turma, daquele 5º ano, era formada por alguns alunos repetentes, como tal, já com uma idade mais avançada do que a maioria. A dita professora entrou, e talvez por ver que na turma existiam alunos espigadotes, assumiu uma postura prepotente. E começou a dar uma aula de história, que era a sua especialidade. Nós, que éramos uma turma barulhenta sim, mas respeitadora, como convinha naquele liceu, perante a prepotência da professora, principalmente porque era tão novinha, não aceitámos aquela postura, e começámos a entrar no campo do gozo, nas respostas às perguntas que ela nos ia fazendo sobre história. E ela, a pouco e pouco, foi perdendo o controle da turma. Até que chegou aquele momento. O 25, do fundo da turma, que tinha a alcunha de «Paizinho», porque era o mais velho, dezoito anos de idade, pediu à professora para mudar de lugar já que a chuva que caía estava a molhá-lo, pois que perto de si existia uma janela com um vidro partido. A professora negou-lhe a pretensão, com a justificação de que quando ele fosse para a tropa iria levar muita chuva em cima e não se iria queixar. Acontece que na turma existiam dois irmãos, os Póvoas, a quem tinha falecido recentemente um irmão no ultramar. Ao ouvir a justificação da professora, o Póvoas mais velho, deu um salto na carteira, levantou-se, e berrando, perguntou à professora o que é que ela percebia de tropa, para logo de seguida se virar para o Paizinho e lhe ordenar que mudasse de lugar, o que ele imediatamente fez. A partir desse momento a professora de história emudeceu, sentou-se atrás da secretária e aguardou que os cinquenta minutos se esgotassem, enquanto a turma se comportava de uma forma perfeitamente indisciplinada, aos gritos e enviando bolas de papel uns aos outros. Quando tocou para a saída a professora de história levantou-se e disse-nos, em tom de ameaça, que decerto nós supúnhamos o que é que ela iria fazer seguidamente. E fez! A queixa seguiu para o Conselho Directivo e daí para o Reitor. E o reitor levantou um processo disciplinar à turma. Todos nós fomos ouvidos, e incrivelmente, tivemos os nossos professores por nós. Mas mesmo assim a turma foi punida com oito dias de suspensão. Metade da turma seria punida numa semana e a outra metade na semana seguinte. E assim se fez. No entanto esta punição disciplinar não teve quaisquer repercussões nas nossas notas. Por essa época tínhamos acabado de dar, em português, Gil Vicente. E um dos seus autos falava de uma Mofina Mendes (a desgraçada). Pois foi com esse nome que baptizámos aquela estranha professora de história, que por ironia do destino dava história à turma ao lado da nossa. Por isso, depois de termos cumprido a punição, quando estávamos a aguardar a chegada do professor para uma aula, e víamos ao fundo do corredor surgir a professora de história da turma ao lado, o que a tinha descoberto gritava:

- Malta, vem lá a Mofina Mendes.

E todos nos íamos encostar à parede do corredor, entre a porta da nossa sala e a porta da sala da turma ao lado, em sentido (caso o nosso professor ainda não tivesse chegado). E essa rotina mantivemo-la até ao final do ano lectivo, que foi mais ou menos até ao 25 de Abril de 1974. Estava-me eu a despedir de Coimbra.
in Prosas Pelas Janelas da Vida
livro I