terça-feira, 17 de março de 2020

XXX JANELA SOBRE O MEU PAÍS: COVID 19, ECO NAS RUAS DESERTAS


Estive hoje num cenário que não me foi de todo desconhecido. Apenas houve uma particularidade: é que as imagens similares àquelas em que estive hoje inserido, me foram dadas a conhecer pela ficção, pelo cinema. Mas hoje, estas imagens que pisei com os meus passos, fizeram e continuam a fazer parte da minha, da nossa realidade.

Há já não sei quanto tempo vi um ou dois filmes que mostravam cidades desertas, estabelecimentos comerciais às moscas e a apreensão a desenhar-se nos semblantes das pessoas, pois que a humanidade estava a ser atacada pela ferocidade de uma pandemia viral.

Foi essa apreensão ficcional que hoje se me revelou na realidade. Ruas desertas onde o eco se propaga, espaço demasiado nos hipermercados, revelando o empenho colectivo nas medidas para evitar a disseminação de um inimigo comum, que  ninguém vê, mas que está a fazer colapsar o serviço nos hospitais, esse desconhecido vírus covid 19, que está a fazer do mundo uma imensa aldeia global, onde todos, por muito diferente que sejam as culturas e os hábitos, nos obriga a termos os mesmos comportamentos.

Porque de todo não me agrada esta apreensão e esta tensão, faço votos para que os nossos cientistas e profissionais de saúde bem depressa consigam ter a capacidade de controlar este vírus, que colocou a humanidade aos trambolhões, para que o mais depressa possível estas imagens regressem à ficção.

Óptima saúde para todos!


quinta-feira, 5 de março de 2020

UM MOMENTO NUM CAIS BACALHOEIRO


Há momentos na nossa vida, que por nos terem transmitido uma intensidade emocional inesperada, nos sacodem e nos obrigam a tomar uma atitude, uma qualquer, que de certa forma marque a diferença entre esses momentos especiais e todos os outros, os comuns momentos.

         Desses momentos tão fortes e especiais, houve um, que há dias vivi, que me fez tomar uma atitude que foi a de me sentar à minha secretária e escrever. E aqui estou!

         Chamo-me Maurício da Benta e tenho cinquenta e um anos de idade. De escritor não tenho nada, a não ser uma lapiseira vulgar e folhas de papel. Sou um pequeno comerciante, natural de Ílhavo. E porque nasci nessa terra de marinheiros, muito dificilmente a minha história familiar não estaria ligada à pesca do bacalhau. Sou de Ílhavo, mas a vida levou-me para outras paragens. Continuo junto ao mar, mas desloquei-me mais para sul. O meu pequeno negócio situa-se na bonita praia da Nazaré. E comigo vivem os meus pais. E porque sinto que o meu pai, especialmente, de quando em vez tem necessidade de estar em contacto com a sua região, foi que, por estes dias, num Domingo de Primavera, viemos em passeio à nossa querida região, a de Ílhavo, onde teve lugar esse momento arrebatador.

         Na região de Ílhavo a nossa família resume-se a dois primos afastados. Nunca fomos uma família grande. Por isso o desgaste do tempo depressa eliminou a memória da nossa existência aqui nesta terra. Dadas essas circunstâncias tivemos de almoçar num restaurante desta pequena cidade. Depois do almoço fomos dar uma volta pelos arredores e qualquer coisa me impeliu para o porto de pesca da Gafanha da Nazaré, localidade piscatória mesmo pegada a Ílhavo. Disse ao meu pai que íamos dar um passeio pelo porto de pesca. Imediatamente vi surgir no seu olhar uma luz que o iluminou. Não sei bem que encanto pode trazer à memória a recordação de horas tão amargas. Por certo apenas e só a recordação da força da juventude. Sim, o meu pai foi pescador do bacalhau nos bancos de pesca da Terra Nova, no Canadá. E só mesmo a força da juventude, que o fez superar as tremendas dificuldades da pesca do bacalhau à linha, lhe pode deixar saudades, nunca a brutal vida que levava. Mas a mente humana é profundamente complexa. E mesmo um filho nunca terá possibilidade de compreender alguns recônditos mentais do seu pai. É nesta lógica que me refugio, para encarar aquela luz de encanto que vi no olhar do meu pai, quando lhe disse que íamos dar uma volta pelo porto de pesca.

         Entrei no cais onde logo vislumbrámos dois arrastões da pesca do bacalhau. Mas, mais depressa do que eu, o meu pai apercebeu-se de que no final do cais, bem lá ao longe, estava ancorado um veleiro. E imediatamente me chamou a atenção para isso. Eu olhei e realmente vi quatro mastros, ao longe, a delinearem-se contra o azul da água e do céu. Era um barco que, por entre a imensa ferrugem que escorria em múltiplos fios pela amurada abaixo, se percebia que era branco. Um lugre!- dizia o meu pai como que enfeitiçado.

         Com o carro em andamento fomo-nos aproximando do navio. Quando chegámos junto a ele foi possível divisar o seu nome, escrito na popa- «Bispo do Mar». Parei o carro. O meu pai logo saiu. Atrás dele eu observava-o. Um corpo robusto outrora, como eu ainda dele me recordava, via-o agora com um andar um tanto ou quanto vacilante, a dirigir-se para o navio. Chegado ao pé dele colocou a mão direita em contacto com a velha estrutura, como que se apoiando no seu passado. Aproximei-me do meu pai e vi o que nunca tinha visto: grossas lágrimas corriam-lhe pelo rosto abaixo. Comovi-me e abracei o meu pai. Sim, chorava pela vida pobre e difícil que o país o obrigara a ter, para poder ter algum pão na mesa, já que nada mais tinha para lhe oferecer. Chorava por ver o símbolo dessa vida amargurada abandonado pela memória de todo um povo, a ser lentamente comido pela ferrugem, como algo que nada mais merece a não ser o desprezo…(em continuação, ex. III)

in Pelas Arestas da Terra e do Mar