Há momentos na nossa
vida, que por nos terem transmitido uma intensidade emocional inesperada, nos
sacodem e nos obrigam a tomar uma atitude, uma qualquer, que de certa forma
marque a diferença entre esses momentos especiais e todos os outros, os comuns
momentos.
Desses momentos tão fortes e especiais, houve um, que há
dias vivi, que me fez tomar uma atitude que foi a de me sentar à minha
secretária e escrever. E aqui estou!
Chamo-me Maurício da Benta e tenho cinquenta e um anos de
idade. De escritor não tenho nada, a não ser uma lapiseira vulgar e folhas de
papel. Sou um pequeno comerciante, natural de Ílhavo. E porque nasci nessa
terra de marinheiros, muito dificilmente a minha história familiar não estaria
ligada à pesca do bacalhau. Sou de Ílhavo, mas a vida levou-me para outras
paragens. Continuo junto ao mar, mas desloquei-me mais para sul. O meu pequeno
negócio situa-se na bonita praia da Nazaré. E comigo vivem os meus pais. E
porque sinto que o meu pai, especialmente, de quando em vez tem necessidade de
estar em contacto com a sua região, foi que, por estes dias, num Domingo de
Primavera, viemos em passeio à nossa querida região, a de Ílhavo, onde teve
lugar esse momento arrebatador.
Na região de Ílhavo a nossa família resume-se a dois primos
afastados. Nunca fomos uma família grande. Por isso o desgaste do tempo
depressa eliminou a memória da nossa existência aqui nesta terra. Dadas essas
circunstâncias tivemos de almoçar num restaurante desta pequena cidade. Depois
do almoço fomos dar uma volta pelos arredores e qualquer coisa me impeliu para
o porto de pesca da Gafanha da Nazaré, localidade piscatória mesmo pegada
a Ílhavo. Disse ao meu pai que íamos dar um passeio pelo porto de pesca.
Imediatamente vi surgir no seu olhar uma luz que o iluminou. Não sei bem que
encanto pode trazer à memória a recordação de horas tão amargas. Por certo
apenas e só a recordação da força da juventude. Sim, o meu pai foi pescador do
bacalhau nos bancos de pesca da Terra Nova, no Canadá. E só mesmo a força da
juventude, que o fez superar as tremendas dificuldades da pesca do bacalhau à
linha, lhe pode deixar saudades, nunca a brutal vida que levava. Mas a mente
humana é profundamente complexa. E mesmo um filho nunca terá possibilidade de
compreender alguns recônditos mentais do seu pai. É nesta lógica que me refugio,
para encarar aquela luz de encanto que vi no olhar do meu pai, quando lhe disse
que íamos dar uma volta pelo porto de pesca.
Entrei no cais onde logo vislumbrámos dois arrastões da
pesca do bacalhau. Mas, mais depressa do que eu, o meu pai apercebeu-se de que
no final do cais, bem lá ao longe, estava ancorado um veleiro. E imediatamente
me chamou a atenção para isso. Eu olhei e realmente vi quatro mastros, ao
longe, a delinearem-se contra o azul da água e do céu. Era um barco que, por
entre a imensa ferrugem que escorria em múltiplos fios pela amurada abaixo, se
percebia que era branco. Um lugre!- dizia o meu pai como que enfeitiçado.
Com o carro em andamento fomo-nos aproximando do navio.
Quando chegámos junto a ele foi possível divisar o seu nome, escrito na popa- «Bispo
do Mar». Parei o carro. O meu pai logo saiu. Atrás dele eu observava-o. Um
corpo robusto outrora, como eu ainda dele me recordava, via-o agora com um
andar um tanto ou quanto vacilante, a dirigir-se para o navio. Chegado ao pé
dele colocou a mão direita em contacto com a velha estrutura, como que se
apoiando no seu passado. Aproximei-me do meu pai e vi o que nunca tinha visto:
grossas lágrimas corriam-lhe pelo rosto abaixo. Comovi-me e abracei o meu pai.
Sim, chorava pela vida pobre e difícil que o país o obrigara a ter, para poder
ter algum pão na mesa, já que nada mais tinha para lhe oferecer. Chorava por
ver o símbolo dessa vida amargurada abandonado pela memória de todo um povo, a
ser lentamente comido pela ferrugem, como algo que nada mais merece a não ser o
desprezo…(em continuação, ex. III)
in Pelas Arestas da Terra e do Mar
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