quinta-feira, 5 de setembro de 2019

UM SENTIMENTO INEXPLICÁVEL


...-         Vamos filho, vamos embora... mas estou sem jeito.

-         Porquê pai?

-         Pareceu-me que aqui, perante os meus olhos, tiveste uma transformação, ou melhor, uma recuperação. De um momento para o outro deixei de te sentir tão abatido.

-         Pai, sinto-me realmente mais revigorado. É como se neste momento algo me desse a certeza de que a Catarina está viva... e me aguarda.

-         Que te aguarda? Vê lá o que te passa por essa cabeça. A vida não pode parar...

-         Pai, estás com receio de quê?

-         Por aquilo que me estás a dizer só posso deduzir uma coisa.

-         O quê?

-         Que estás com vontade de ires ter com a Catarina.

-         Suicídio? Não pai, não me percebeste. Eu sinto que a Catarina me aguarda na vida e não na morte.

-         Álvaro, não te enganes, a Catarina morreu...

-         Pai, não me estou a fazer entender. Tal como aconteceu na «operação do alferes bruxo», voltou-me a acontecer algo de estranho.

-         Que é isso do alferes bruxo?

-         É uma história. Vamos embora.

-         Sim vamos, mas não me podes contar essa história?

-         Posso. Trata-se de uma história de guerra que aconteceu o mês passado. Se ela não tivesse existido, talvez tu agora estivesses a chorar a minha morte.

-         Não me digas uma coisa dessas!

-         Não te digo porquê? Seria isso muito mais natural do que ter eu recebido a notícia da morte da Catarina.

-         E o que foi que se passou?- perguntou o enfermeiro Victor, enquanto ambos se afastavam daquele talhão e reentraram na rua empedrada.

-         A nossa companhia foi fazer uma missão de reconhecimento para ver se se detectavam sanzalas inimigas, pois três dias antes o nosso aquartelamento fora alvo de um forte ataque. De repente ouvi uma voz segredar-me ao ouvido que na picada os turras nos tinham preparado uma emboscada. É absurdo, mas confiei plenamente naquele aviso, como se eu próprio tivesse inspeccionado o local da emboscada. Fui avisar o comandante da companhia, um bom homem, excelente comandante. A princípio ele não me deu crédito, mas perante a minha insistência, cedeu com muitas reservas. Aquilo era uma maluquice. Mas...e se fosse verdade? Correndo o risco de me sujeitar a tribunal militar, pois eu estava a interferir com a vida de cento e cinquenta combatentes, mantive a minha palavra, e a coluna militar a partir desse momento tomou um comportamento altamente defensivo, contra um inimigo que ninguém sabia se existia. Mas os turras estavam lá mesmo. Eram cinquenta.

-         Houve muitas baixas?- perguntou o enfermeiro Victor, sentindo através das palavras do filho a sensação de algo semelhante já vivido, acontecido com ele, havia muitos anos.

-         Não se disparou um único tiro e os turras foram todos capturados.

-         Esse caso é perfeitamente insólito. És tu então o alferes bruxo?

-         Sou- respondeu Álvaro sorrindo- tal como naquela altura, em que eu senti a presença do inimigo sem o poder ver, também agora sinto que a Catarina não morreu. E aprendi a confiar neste sentimento de aproximação por quem não se vê e nem se sabe onde se encontra.

-         Mas Álvaro, eu vi a Catarina no caixão. Estive no funeral, o caixão foi ali aberto, vi-o descer à terra...

-         Pai, eu também não conhecia aquela mata, e no entanto a minha profecia revelou-se exacta. Sei que a fonte que me inspirou em Angola é a mesma que me inspira neste momento.

-         Vais dizer isso aos pais da Catarina?

-         Evidentemente! Anunciar-lhes a vida da filha é o grande presente de Natal da vida deles.

-         Vão-te chamar louco, vão pensar que o Ultramar te transtornou a cabeça.

-         É isso que tu pensas?

-         Eu...- o pai de Álvaro manteve-se uns segundos em silêncio, fixando o filho- não Álvaro, não é isso que eu penso, porque compreendo o inexplicável desse teu sentimento.

-         Como é que podes percebê-lo?

-         Um dia te direi. Também tenho uma história para contar, mas fica para outra altura. Os pais da Catarina querem-te ver...(em continuação, ex. XXXIX)

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