...-
Vamos filho, vamos embora... mas estou sem jeito.
-
Porquê pai?
-
Pareceu-me que aqui, perante os meus olhos, tiveste uma
transformação, ou melhor, uma recuperação. De um momento para o outro deixei de
te sentir tão abatido.
-
Pai, sinto-me realmente mais revigorado. É como se neste
momento algo me desse a certeza de que a Catarina está viva... e me aguarda.
-
Que te aguarda? Vê lá o que te passa por essa cabeça. A vida
não pode parar...
-
Pai, estás com receio de quê?
-
Por aquilo que me estás a dizer só posso deduzir uma coisa.
-
O quê?
-
Que estás com vontade de ires ter com a Catarina.
-
Suicídio? Não pai, não me percebeste. Eu sinto que a Catarina
me aguarda na vida e não na morte.
-
Álvaro, não te enganes, a Catarina morreu...
-
Pai, não me estou a fazer entender. Tal como aconteceu na
«operação do alferes bruxo», voltou-me a acontecer algo de estranho.
-
Que é isso do alferes bruxo?
-
É uma história. Vamos embora.
-
Sim vamos, mas não me podes contar essa história?
-
Posso. Trata-se de uma história de guerra que aconteceu o mês
passado. Se ela não tivesse existido, talvez tu agora estivesses a chorar a
minha morte.
-
Não me digas uma coisa dessas!
-
Não te digo porquê? Seria isso muito mais natural do que ter
eu recebido a notícia da morte da Catarina.
-
E o que foi que se passou?- perguntou o enfermeiro Victor,
enquanto ambos se afastavam daquele talhão e reentraram na rua empedrada.
-
A nossa companhia foi fazer uma missão de reconhecimento para
ver se se detectavam sanzalas inimigas, pois três dias antes o nosso
aquartelamento fora alvo de um forte ataque. De repente ouvi uma voz
segredar-me ao ouvido que na picada os turras nos tinham preparado uma
emboscada. É absurdo, mas confiei plenamente naquele aviso, como se eu próprio
tivesse inspeccionado o local da emboscada. Fui avisar o comandante da
companhia, um bom homem, excelente comandante. A princípio ele não me deu
crédito, mas perante a minha insistência, cedeu com muitas reservas. Aquilo era
uma maluquice. Mas...e se fosse verdade? Correndo o risco de me sujeitar a
tribunal militar, pois eu estava a interferir com a vida de cento e cinquenta
combatentes, mantive a minha palavra, e a coluna militar a partir desse momento
tomou um comportamento altamente defensivo, contra um inimigo que ninguém sabia
se existia. Mas os turras estavam lá mesmo. Eram cinquenta.
-
Houve muitas baixas?- perguntou o enfermeiro Victor, sentindo
através das palavras do filho a sensação de algo semelhante já vivido,
acontecido com ele, havia muitos anos.
-
Não se disparou um único tiro e os turras foram todos capturados.
-
Esse caso é perfeitamente insólito. És tu então o alferes
bruxo?
-
Sou- respondeu Álvaro sorrindo- tal como naquela altura, em
que eu senti a presença do inimigo sem o poder ver, também agora sinto que a
Catarina não morreu. E aprendi a confiar neste sentimento de aproximação por
quem não se vê e nem se sabe onde se encontra.
-
Mas Álvaro, eu vi a Catarina no caixão. Estive no funeral, o
caixão foi ali aberto, vi-o descer à terra...
-
Pai, eu também não conhecia aquela mata, e no entanto a minha
profecia revelou-se exacta. Sei que a fonte que me inspirou em Angola é a mesma
que me inspira neste momento.
-
Vais dizer isso aos pais da Catarina?
-
Evidentemente! Anunciar-lhes a vida da filha é o grande
presente de Natal da vida deles.
-
Vão-te chamar louco, vão pensar que o Ultramar te transtornou
a cabeça.
-
É isso que tu pensas?
-
Eu...- o pai de Álvaro manteve-se uns segundos em silêncio,
fixando o filho- não Álvaro, não é isso que eu penso, porque compreendo o
inexplicável desse teu sentimento.
-
Como é que podes percebê-lo?
-
Um dia te direi. Também tenho uma história para contar, mas
fica para outra altura. Os pais da Catarina querem-te ver...(em continuação, ex. XXXIX)
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