...O jantar foi servido ás
sete horas, numa luxuosa sala, como luxuosa era aquela casa.
Quando entrei na sala de jantar, já lá se encontravam os
filhos do conde: a senhora D. Maria Clara Corga e o senhor Pedro Corga. Os dois
irmãos teriam idades muito próximas, ambos um pouco mais velhos do que eu.
Pedro Corga tinha retratado no rosto a soberba, o ar pedante
e triunfante de um certo sector da classe nobre, muito radical, enraizada nas
convicções absolutistas, que bem de cima apenas olham mas não vêem os restantes
homens, infelizes seres, que desprovidos do sopro divino, que aos nobres é
concedido à nascença, deambulam pelo mundo, poluindo-o com o seu abjecto odor.
No olhar daquele condezinho eu vi reflectida a minha imagem de um ser menor. De
imediato nutri por ele profunda antipatia… e ele ainda nem sequer tinha aberto
a boca.
Maria Clara Corga era uma mulher bela, interessantíssima,
mas enigmática. Ao ver-me, deu-me um sorriso, mas só os lábios sorriram, porque
os olhos, de um preto profundo, mantinham-se tristes, muito tristes. Conhecia
aquela mulher havia apenas breves momentos e só porque estava na presença do irmão eu sentia que
ela, da vida, não obtivera ainda qualquer alegria. Não sei se o facto de eu
ter, já naquela altura, muita experiência com o sofrimento humano, tenha
sintonizado os meus sentidos para a detecção desse mesmo sofrimento, mesmo
quando ele se me apresentava mesclado com laivos de felicidade, o que é certo é
que não me enganei.
Foram feitas as cortesias que se impunham… e sentámo-nos à
mesa. De imediato surgiram dois criados, que sob a orientação da governanta
Maria do Carmo, que se encontrava à entrada da sala, começaram a servir-nos uma
deliciosa canja.
- Caso não seja
indiscreta a minha pergunta, o doutor é de onde? – questionou-me o filho do Conde
de Cértima, dando ênfase ao termo «doutor», denotando uma mistura de relativo
interesse pela minha proveniência, com um desdém mal disfarçado.
- Nasci nos arrabaldes da
Mealhada, mais propriamente numa quinta que dá pelo nome de Malhal de Sula.
- Já ouvi falar nesse
nome – disse o conde – forte em vinhedos.
- De facto! – retorqui
com orgulho – o meu pai trabalhou arduamente, mas valeu a pena.
- Então o seu pai é… -
dizia o emproado filho do conde.
- É um abastado lavrador
– conclui eu.
- Um lavrador que fez do
filho um médico – retorquiu Pedro Corga, com sarcasmo.
- Um lavrador pode fazer
dos filhos o que quiser, senhor Pedro. É preciso é que tenha dinheiro. Saí
médico como poderia ter sido oficial do exército.
- Disso não estou tão
certo – disse o filho do conde.
- E porque não? Acho que
bem mais difícil será a feitura de um médico que a de oficial.
- E pode-me explicar
porquê, doutor?
- Porque bem mais
complicada é a compreensão do funcionamento do corpo humano, do que a
compreensão das tácticas da guerra.
- Acho que está a ver mal
a questão, doutor. Para se ser oficial é necessário ter-se tido uma educação
esmerada, pela qual se tenha aprendido a arte da liderança. Desculpe-me a
observação, mas um médico não sabe ser chefe.
- E quem disse que não? Eu
comando os meus remédios, que colocam em debandada toda a horda de micróbios
que ataca o nosso corpo. Vossa excelência coloque um oficial à frente do seu
exército, achacado por micróbios, e se ele não tiver um médico à mão veja se
ele consegue pôr em prática as tácticas de guerra que aprendeu.
- Bom, bom, resposta
inteligente essa – disse o conde - sabe doutor Joaquim Lopes – continuou – o
meu filho é precisamente oficial do exército. Presta serviço no Batalhão de
Voluntários Reais do Porto.
- Á, o filho de vossa
excelência é oficial… - disse eu com ar de surpresa – peço mil desculpas pelas
afirmações que fiz. É claro que um oficial tem de ser, forçosamente, um homem
culto, corajoso e tremendamente forte na palavra. A vida de médico representa a
arte da anatomia; a vida de oficial traduz a arte da mente – disse eu, tentando
sair airosamente da situação desconfortável em que eu próprio me colocara. Ia
lá adivinhar que o filho do conde fosse oficial.
- Boa observação – disse
Pedro Corga, muito mais confiante na sua posição de mandante de homens.
Eu regalei-me com aquela estupidez.(em continuação, pág. 32, ex. XIV)
in Alma de Liberal
Junho/2009
Sem comentários:
Enviar um comentário