...De
entre muitas coisas, Aveiro era também uma cidade universitária. Esse cariz
académico acentuou-se no principio da década de oitenta. O desenvolvimento sociocultural
que se sentia latente na cidade dos canais, exigia o surgimento de uma
universidade com prestígio. O « campus universitarius» que começou por ser
composto por dois blocos, distanciados cerca de cem metros um do outro,
transformou-se na que è hoje uma pequena cidade dentro da própria cidade.
A
Aveiro começaram então a afluir dezenas e dezenas de estudantes, que
rapidamente passaram a ser centenas e depois milhares. Eram oriundos de todo o
país. E esses estudantes, com a imaginação que lhe è peculiar, depressa criaram
a sua própria tradição. No inicio de cada ano lectivo, começaram a viver
intensamente a semana à recepção do caloiro. Desde então os aveirenses
habituaram-se a ver, em todos os Outubros de cada ano, rapazes e raparigas com
os rostos pintados de traços bizarros, de cores garridas, qual tela de Picasso.
Eram os caloiros, que no seio dos Cagarèus e Ceboleiros davam os primeiros
passos na sua vivência universitária. Também no fim de cada ano lectivo, no mês
de Maio, festejando o aproximar do final das aulas, os estudantes agrupados num
cortejo, que foi crescendo de ano para ano, criaram «O Enterro do Ano».
Comparativamente «À Queima das Fitas» de Coimbra, este «Enterro do Ano» è muito
pobre, pois falta-lhe a complexidade logística que envolve a «Queima» de
Coimbra, e sobretudo, não se apoia na secular tradição de briosas e velhíssimas
faculdades, como acontece na cidade do Mondego. Se em Coimbra a «Queima» è
essencialmente composta pelos finalistas de cada curso, em Aveiro, no
«Enterro», caloiros e finalistas se misturam, dando largas à sua alegria, uns
por terem terminado o curso com êxito, outros por terem ultrapassado mais uma
barreira que os separa desse tão almejado final de curso. Mas, com certeza que a
«Queima das Fitas» dos primeiros anos (e já depois disso muitas gerações de
doutores se formaram), não teria a riqueza e a exuberância dos dias de hoje.
Tal
como há muitos anos acontece em Coimbra, em Aveiro começaram a proliferar
quartos para alugar a estudantes universitários. Eles começaram a chegar em
vagas sucessivas e disseminaram-se por toda a cidade. Com eles trouxeram a sua
juventude, a sua alegria, a sua tristeza, os seus dramas. Muitos estavam a
centenas de quilómetros de casa. Por isso, ao entrarem em Aveiro, cidade em que
eram completamente desconhecidos, os longínquos estudantes eram bafejados pela
inebriante sensação de total liberdade. Em Aveiro não existiam os pais, os
vizinhos ou até os amigos, que de certa forma condicionavam a conduta de cada
um. Para um certo número destes distantes estudantes, Aveiro representava a
possibilidade de dar largas à sua necessidade de aventura, o meio há muito
esperado para se cometer aquela secreta asneira que sempre se teve vontade de
fazer, mas que por acção dos olhos críticos dos que os rodeavam, toda a vida
enclausuraram essa mesma vontade. Na cidade da ria tinham tempo, espaço e
ambiente para pecarem a seu belo prazer, sem correrem o risco de serem
repreendidos...(em continuação, pág. 74, ex. XXIV)
in Filhos Pobres da Revolta
Março/2003
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