...A minha vida, em Coimbra, era regulada pelo padrão eclesiástico do convento de Santa Cruz. Embora não tivesse intenções de me dedicar à vida do sacerdócio, tinha de viver consoante as regras pelas quais era regulamentada a vida dos frades. Enquanto o reino lambia as feridas deixadas pelos franceses e o povo tentava sobreviver numa terra devastada, a minha existência como que decorria dentro de um casulo, preocupando-me apenas em absorver conhecimento, completamente abstraído das convulsões que, no exterior do convento, tinham lugar.
Durante esses oito anos fui visitar os meus pais apenas em quatro ocasiões. Em cada uma delas, os meus pais encontravam-me sempre diferenças: mais alto e mais homenzinho. Eu gostava de apreciar o reboliço que ia por Malhal de Sula, e já com quinze anos, numa das vezes que visitei os meus pais, quis participar nos trabalhos da lavoura, quis ter a noção do que seria ser lavrador como o meu pai, pretendi, enfim, dar-me a conhecer àquele chão que um dia iria ser meu. Mas o meu pai disse-me, com um sorriso, que os doutores não tinham sido feitos para amanhar terras. Não queria que eu, ao pegar num cabo de enxada, rebentasse mãos tão mimosas, sem calosidades, mãos que haviam sido feitas para apalpar barrigas de gente e mexer em instrumentos complicados.
E eu nunca soube o que custou fazer de Malhal de Sula uma terra fértil.
Entrei finalmente na universidade. Ao despedir-me de frei Lourenço, com os olhos rasos de lágrimas, não tinha a verdadeira noção do quanto a minha vida iria mudar.
No lugar em que me encontro já algumas vezes me cruzei com frei Lourenço. Faz parte do meu grupo espiritual. Como frade, viveu ele a sua última experiência terrena. Nessa época, frei Lourenço foi uma pessoa muito influente na minha vida, a quem devi a base sólida da minha formação. Pena foi que a causa que abracei então, o liberalismo, tivesse considerado frei Lourenço uma inutilidade. Mas, mais uma vez, liberalismo era coisa de política, e como a política foi criada pelos homens, logo o liberalismo não podia ser perfeito.
Ao entrar na universidade, tomei contacto com uma cidade que desconhecia, embora lá vivesse havia oito anos.
Através da velha universidade de Coimbra tive acesso a toda uma cidade que fervilhava de paixão, romantismo, tradição. As tricanas do Mondego inundaram de beleza a minha vida. Por duas ou três dessas tricanas bateu fortemente o meu coração apaixonado, em noites de lua cheia, tão próximo que estava do astro brilhante, num céu de escura magia, sentado numa lapa do Penedo da Saudade; senti o encanto das ruas empedradas e estreitas da Alta, como a Rua da Matemática ou a Rua da Ilha, paredes meias com a imponente Sé Velha; o Mondego, cujas águas feitas de saudade, me transmitia uma melancolia saborosa, quase me transformando em poeta. Rio que dá liberdade à mente, a solta, a faz vibrar, a aproxima do que mais belo há no ser. Não há no mundo outro assim; e a sempre eterna rivalidade entre nós, estudantes de Coimbra, e os futricas, potenciais maridos das tricanas. Quantas disputas foram resolvidas a varapau! Cabeças rachadas, sangue que corria, a capa negra rasgada, a tradição que se impunha…e os ecos do liberalismo, que varreram a velha academia com um ímpeto avassalador. Ali não existia um único coração que não fosse anti-britânico. Sentia-se que as invasões francesas eram coisas do passado, como se tivessem ocorrido há muitos anos. Impunha-se… exigia-se o regresso de El-Rei D. João VI ao reino. E o rei acabou por vir… e com ele, veio a guerra…uma vez mais...(em continuação, pág. 18, ex. VIII)
in ALMA DE LIBERAL
Junho/2009
quarta-feira, 8 de dezembro de 2010
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