- ...Esperem por mim seus sacanas- berrava Narciso Conde, enquanto a correr se afastava da casa Lobito de Benguela- isso è que vocês são uns amigos.
- Ah, nós è que somos maus amigos!!- retorquia um dos outros três rapazes- quase nos meteste numa grande trapalhada. Asseguraste-nos que não ia haver qualquer perigo na casa da tua tia, e afinal tínhamos uma comissão de recepção.
- E vocês não viram porquê? Como podia eu adivinhar que o animal do Serôdio estava lá em casa?
- E ele estava lá em casa a fazer o quê?
- È verdade!! Ele estava lá em casa a fazer o quê?- questionava-se Narciso- ele não conhece a velha, nunca esteve naquela casa. Sabem de uma coisa? Aquele gajo estava à nossa espera. Ele sabia que nós íamos ali esta noite.
- Mas sabia como? Só se o tipo for bruxo.
- Isso eu não sei- dizia Narciso- mas que ele estava ali por nossa causa, disso não tenho dúvidas. Aquele tipo vai-me pagar isto bem pago.
- Será que nos conheceram?
- È possível, mas nada podem provar- respondeu Narciso cheio de confiança- fiquem calmos. Temos de ter a cabeça fria. Eu irei de mansinho sondar a velha e o tição, para ver se desconfiam de alguma coisa.
E os quatro seguiram cada um para sua casa, tendo-se livrado previamente dos garruços de lã preta, que abandonaram num contentor do lixo.
No dia seguinte, depois do almoço, D. Silvina dirigiu-se a casa do seu irmão. Não estaria nas melhores condições psíquicas para ter uma conversa do género daquela que iria desenvolver, mas não podia deixar cair em esquecimento o que lhe acontecera na noite anterior. E o que acontecera fora muito grave! Não tivesse sido a oportuna intervenção de Serôdio, talvez a sua vida já não existisse. Como o rapaz ficara com a cara. Estava inchada e na zona da vista esquerda tinha uma enorme nódoa de um negro muito feio. Fora uma noite esgotante. Teria agora de ter muito tacto para conversar com o seu irmão. Sim, porque não se acusa um filho de alguém de uma coisa tão má como aquela, assim de ânimo leve, sem provas, mesmo a acusadora sendo uma tia.
O seu irmão, Carlos Conde, era dois anos mais novo do que ela. Formara-se em engenharia. O pai dos dois fora um benemérito médico aveirense. Numa educação respeitando os princípios cristãos e as leis da moralidade, criou os seus dois filhos. Ao rapaz deu um curso de engenharia e à rapariga deu um nome respeitável, nome esse que veio a atrair a atenção de um jovem alferes. Por isso mesmo, D. Silvina contava com o discernimento do irmão para poder resolver aquele assunto tão delicado.
Previamente ligara para o seu irmão, certificando-se de que ele estaria em casa.
Carlos Conde vivia numa tradicional casa ribeirinha, na zona da beira mar plantada, virada para um braço da ria que passava num canal a que puseram o nome de S. Roque. Daquela casa se já havia assistido ao esforço de centenas e centenas de marnotos, na árdua faina do sal. Se a casa de D. Silvina evocava os tempos da colonização portuguesa em África, a casa de Carlos Conde recordava o tempo em que a ria fora o coração de Aveiro, exibindo painéis de azulejos onde se representavam barcos moliceiros cortando as águas da ria, uns carregados de montes de escuro moliço e outros a abarrotar com a alvura de montes de sal.
Nem foi preciso fazer-se anunciar. O irmão aguardava-a ao topo de uma pequena escadaria.
- Então Silvina, o teu tom de voz ao telefone deixou-me preocupado- dizia Carlos Conde, um homem quase a entrar nos cinquenta, de cabelo e pêra grisalhos.
- Não è para menos Carlos, não è para menos- dizia D. Silvina, enquanto saía do carro conduzido pelo criado negro- ainda há quem se aproveite do facto de uma mulher ser viúva.
- Que me dizes? Fizeram-te alguma coisa?- perguntava o irmão de D. Silvina, enquanto a acompanhava.
Depois de comodamente instalados numa sala, onde o primordial motivo de decoração era a faina da ria, Carlos Conde disse:
- Mas então irmã, que te aconteceu?
- Gostaria de ter esta conversa a sós contigo.
- Podes falar Silvina, a minha mulher e os miúdos saíram e a empregada está a estender roupa no quintal.
- Pois muito bem, meu querido irmão, o que te tenho para dizer não è nada simpático. Também não tenho provas, mas não podia ficar a viver nesta situação, sujeita sabe Deus a quê.
- Silvina, quando te pões com essas evasivas, è porque o caso è mesmo sério.
- Sim è sério. Eu podia estar morta neste momento...
- Morta?- questionou o engenheiro Carlos Conde- morta como?
- Morta como? Sem vida, como è que querias que eu estivesse morta a não ser dessa maneira?
- Não è isso que eu quero dizer. Correste mesmo perigo de vida?
- Sim Carlos, ontem pelas duas horas da manhã a minha casa foi assaltada por quatro meliantes.
- Que me dizes?
- È verdade. Um deles atacou-me com uma daquelas lanças que o Raul trouxe de Angola. Não fosse a pronta intervenção de um rapaz que lá estava em casa...
- Tu tinhas um rapaz em tua casa às duas da manhã?
- A história começa nesse rapaz. Durante a tarde de ontem esse moço chamado Serôdio veio-me bater à porta, para me alertar de que eu à noite iria ser assaltada.
- Essa agora!! E foste mesmo- dizia o engenheiro Carlos Conde.
- E fui mesmo! Mas o mais grave ainda não te disse. Esse rapaz, que è colega de turma do teu filho Narciso, foi acusá-lo de que seria ele o cérebro do assalto.
O irmão de D. Silvina ficou uns momentos em silêncio. Depois disse calmamente:
- Tu estás a acusar o meu filho de ser um assaltante?
- Que te hei-de eu dizer irmão? Aquele rapaz veio denunciar uma situação que acabou por acontecer. Os assaltantes foram direitinhos ao quadro da parede que esconde o cofre. Retiraram o quadro da parede e já se preparavam para abrir o cofre, quando foram descobertos. Que te hei-de dizer?
- Tens provas da acusação que estás a fazer?
- Não, não tenho, porque os quatro assaltantes estavam encapuçados e nunca falaram.
- E esse tal... como se chama...?
- Serôdio?
- Sim, esse tal Serôdio, estará ele por detrás desse assalto?
- Depois de em voo se ter lançado contra o indivíduo que para mim corria com a lança em riste, e depois de por esse mesmo bandido ter sido agredido a pontapé no peito e no rosto, acho muito difícil.
- Silvina, faz-me compreender a razão pela qual acreditas que o meu filho Narciso seria capaz de te fazer tal barbaridade.
- Talvez o modo desprezível com que me olha. Sinto nele que por mim não nutre qualquer sentimento.
- Eu estou muito magoado contigo Silvina.
- Meu irmão, Deus me perdoe se estou a cometer uma injustiça. No entanto, vivendo todas as minhas incertezas e pavores, aqui me tens a dizer-te tudo isto e não na esquadra de policia. Eu não poderia fazer isso ao meu querido irmão, nem mesmo se tivesse a certeza da presença do Narciso ontem em minha casa.
- E esse Serôdio, porque enxovalhou ele o nome do meu filho?
- Porque disse ter descoberto o plano, e porque estava farto da conduta do Narciso para com os colegas de turma e ele próprio.
- A conduta? Que conduta?
- Olha Carlos, não sei... vai lá ao liceu e informa-te. Eu fui assaltada, quase agredida, tive de ir com o rapaz ao hospital, foi uma noite para esquecer. Estou exausta. Não tenho provas para acusar o teu filho, mas... disse-te o que sinto. Se ele não tiver culpa, eu a ti e a ele pedirei desculpas. Boa tarde.
E D. Silvina abandonou a casa do irmão, mais angustiada do que entrara. Ele ficara revoltado com ela. Era natural. Nenhum pai gosta de ouvir más palavras em relação a um filho. Mas, infelizmente, ela sentia que Serôdio tinha razão na acusação que fizera...(em continuação- pág. 38- ex. XI)
in FILHOS POBRES DA REVOLTA
Março/2003
segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010
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9 comentários:
Poeta do Penedo,
Pois é... No melhor pano cai a nódoa!
e
O mais cego é aquele que não quer ver!
(enquanto estava a ler o texto, lembrei-me destes dois provérbios, acho que vão mesmo a calhar :))
Saudações
Cara Teresa Fidalgo
Assim é. Deve ser extremamente doloroso para um pai, confrontar-se com a má índole de um filho por quem apenas se espera nobreza de carácter.
Briosas saudações.
Caro Poeta do Penedo,
Registo com agrado os dois textos relativos a este assalto de D.Silvina.
Permita-me que lhe revele que é notório em si um especial apreço pelos diálogos.
Haverá alguma explicação da sua parte para semelhante predileção?
Com amizade,
Marcelo Melo
www.3vial.blogspot.com
Meu caro Marcelo Melo
acho a comunicação entre as pessoas fundamental. Por outro lado a minha formação teatral, que já tem mais de trinta anos, mas mantém-se viva, impele-me ao diálogo na escrita.
Com amizade.
Poeta do Penedo,
Claro que há-de ser um desgosto de morte sabermos que o/os nosso/s filho/s não é quem nós gostaríamos que fosse. Saber que é um criminoso. Mas não me parece que a melhor atitude seja meter a cabeça na areia. Muito menos ficar "zangado" com quem nos vem avisar desse mal.
Parece-me que seria mais sensato o Carlos ouvir a irmã com mais atenção; com aquelas palavras confrontar o filho; averiguar donde estaria a razão; e depois, agir em conformidade...
Saudações
Cara Teresa Fidalgo
O Carlos reagiu assim, movido pela esperança de que a acusação da irmã fosse uma difamação. Mas parece-me que a consideração que tem por ela, irá forçá-lo a confrontar o filho com a acusação da tia, e assim tirar a limpo toda aquela história tão estranha. Parece-me...
Briosas saudações
Poeta do Penedo,
Quanto ao comentário eliminado... Mea culpa, mea culpa! Eu sem querer eliminei o meu comentário, mas depois voltei a repetí-lo.
Quanto ao resto, fico mais descansada... vou esperar então pela continuação da história...
Saudações
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