...Havia já três meses que o caminhante trabalhava na herdade Vila de Ló. Mostrara-se um excelente trabalhador. Sentia que o dono da herdade, Barreto Raposo, estava satisfeito com a sua prestação. Uma boa força de trabalho, em troca de meia dúzia de tostões, era decerto um bom negócio. Fazendo tudo para cair nas boas graças do fivelas, o Caminhante pediu humildemente ao patrão que lhe desse descanso naquele dia 10 de Agosto, para descontar no pagamento e o permitisse ir na carroça que nesse mesmo dia o Barreto Raposo enviava ao Bombarral. O fivelas acedeu, na condição de independentemente descontar o dia, o Caminhante ter de trabalhar um Domingo. Era uma injustiça, uma prepotência, mas outra coisa havia a esperar? Os necessitados estarão sempre sujeitos à desumanidade dos poderosos, pelo menos até um dia. E o Caminhante precisava muito de sair daquele ambiente. Constrangia-o o facto de trabalhar no seio de homens que não conseguiam ser verdadeiros amigos no trabalho. Percebia-se nitidamente que ali existiam dois grupos distintos : os de Alfeizerão e os do Bombarral.Os Bombarralenses, por mais esforços que fizessem em ser simpáticos para com os de Alfeizerão, recebiam sempre destes más respostas e olhares antipáticos. Por vezes davam-se até pequenas escaramuças. As coisas não chegavam a vias de facto, porque o controle patronal era apertado.
A herdade era efectivamente muito grande e rica. Setenta homens regavam com o seu suor aquele chão, de modo a que fosse fértil em gado, milho e trigo. Quarenta eram do Bombarral, os restantes eram Alfeizerenses. O Caminhante sentia que ali existia muita mágoa afogada num impressionante mar de injustiça. Injustiça que não era cultivada pelos quarenta trabalhadores do Bombarral, que esses eram simples e honestos homens do povo. A injustiça nascia no sentir, no querer do Barreto Raposo. Mas a revolta amordaçada era debilmente manifestada pelos de Alfeizerão, através do azedume com que tratavam os do Bombarral. Não tinham força nem arte para mais.
Em três meses o Caminhante pôde aperceber-se de tudo isto. Sentia-se em terra de ninguém, no meio de fogo inimigo. Teve necessidade de, pelo menos por um dia, abandonar aquele ambiente triste e também porque precisou de confirmar uma suspeita. Agora que estava de regresso a Alfeizerão, não tinha dúvidas. O que a sua memória suspeitava, os seus sentidos deram como certo.
Ao entrar em Alfeizerão pediu ao carroceiro que o deixasse apear-se. Quis fazer o resto do caminho a pé. A noite não tardaria. Talvez encontrasse a taberna do Ti Chico Bento ainda aberta. Notou então que uma figura vestida de negro vinha em sua direcção. Era o padre José Soares. Ia com certeza para casa. Até o padre comungava da tristeza e revolta do povo. O Caminhante sentia isso nas suas palavras, nos seus vazios relativamente ao fivelas.
- Boa tarde senhor padre - disse o Caminhante.
- Santas tardes. Foi bom encontrar-te. Ainda só te vi na missa uma única vez. Se pretendes ser um dos meus paroquianos, tens de ouvir a palavra de Deus mais vezes.
- Sabe senhor padre, os cuidados da terra roubam-me o tempo.
- Ai sim? E os cuidados da alma não te preocupam?
- Muito senhor padre, nem imagina quanto.
- Mas homem, se tens tantos pecados, porque não fazes uma visita ao confessionário?
- Acha o senhor padre que qualquer pecado que seja, tem remédio?
- Homem, a grandiosidade e a bondade de Deus são infinitas.
- Talvez um dia me entregue nas suas mãos.
- Fico à tua espera. Mas estou a falar contigo e não tens um nome pelo qual eu te possa chamar. Recuso-me chamar-te “Zé da Estrada". Afinal qual é o teu nome?
- Senhor padre José Soares, eu ao senhor não posso mentir, como tenho feito por aí. Eu tenho nome sim. Mas preferia não o divulgar, pelo menos por enquanto.
- Como queiras. Não insisto. Mas sinto que essa alma vive em sofrimento.
- Tal como esta terra - respondeu o Caminhante - a sua benção senhor padre.
- Deus te abençoe homem e te dê luz para seguires o teu caminho. Sabes muito mais do que aquilo que queres mostrar. Que idade tens?
- Muito menos do que pareço, senhor padre. Agora que tenho a sua benção, cá me vou.
O padre José Soares por um momento ficou a ver o Caminhante afastar-se. Por algo que não podia compreender, veio-lhe ao peito uma súbita e angustiante saudade do pequenino Leandro, do morgado Vitorino e do capataz José Chambão. E sobreveio o doloroso sentimento de culpa, pela sua atitude quase passiva perante o triplo rapto que ali tivera lugar, havia já doze anos...(em continuação, pág. 88- ex. XXIX)
in QUANDO UM ANJO PECA
Março/1998
segunda-feira, 15 de março de 2010
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10 comentários:
Poeta do Penedo,
Quase que aposto que o nosso "caminhante" é nada mais, nada menos, que o pequeno Leandro...
Saudações
amigo poeta,
passei pra degustar o sabor de suas palavras, e deixar um abraçãoooo apertado.
Boas energias
Mari
Cara Teresa Fidalgo
Deixe-me que lhe diga que o Leandro é a razão da minha existência.
O Caminhante.
Cara Mari
Tenham as minhas palavras a força que têm as suas.
É sempre muito bem vinda.
Obrigado pela amizade, que retribuo.
Caro Poeta,
O ser humano realmente é um animal gregário, com a particularidade de ele próprio instigar fronteiras que de modo algum se poderão assumir como naturais.
A inusitada rivalidade entre Bombarral e Alfeizerão é exemplar disso mesmo.
A título nacional várias são as rivalidades territoriais: norte-sul, interior-litoral, continente-zonas autónomas, etc.
Pergunto-me se estas fragmentações têm mesmo razões para existir e se as dificuldades que o país atravessa não passam também por uma melhor coesão nacional.
Amistosamente,
Marcelo Melo
www.3vial.blogspot.com
Poeta do Penedo,
Tenho sentido falta da sua escrita...
Saudações
Amigo poeta,
Usei um Ultra-leve para aterrissar aqui,e preocupada-mente saber,está tudo bem?.Perdoá-me,mas me preocupo com os amigos,espero saber de você antes da Páscoa,mas se não for possível,que o Espírito da Páscoa,traga a você e a sua familia Luz! e muito chocolate branco é claro.
Boas energias,
Mari
Caro Marcelo Melo
os bairrismos são muito salutares, quando se mantêm no campo da rivalidade inocente. No entanto deixe-me esclarecê-lo de que entre o Bombarral e Alfeizerão não existe qualquer rivalidade, até porque são localidades afastadas uma da outra cerca de 40 Kms. Essa rivalidade apenas se manifestou neste texto. Rivalidade real é sentida entre Alfeizerão e S. Martinho do Porto, que distam apenas três quilómetros uma da outra.
Com amizade.
Meu caro Grande Poeta.
Acho que é difícil avaliar, negativamente, os teus textos. Até as pessoas que não te conhecem, conhecem- te através das tuas palavras, da forma como te metes dentro delas.
Continua Amigo. Abraços
Meu grande amigo Rui Neves
não nego que receber palavras assim é sempre muito agradável, principalmente quando vêm de um grande amigo.
Foi uma grande surpresa, uma muito agrdável surpresa ver-te aqui no blogue.
Obrigado pelas tuas muito amáveis palavras. Espero ver-te por cá mais vezes.
Uma óptima recuperação.
Um grande abraço.
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