sexta-feira, 23 de julho de 2010

NUM DOMINGO DE OUTUBRO...

...Os grilos cantavam a sua melodia estival. Eram acompanhados pelo coaxar macio e sereno das rãs. Num quadro de maravilha, as silhuetas de seis carvalhos recortavam-se contra a imagem luminosa e bela de uma lua, que sorrindo a uma noite de verão, subia para ocupar o seu lugar no céu. A doçura da natureza não combinava com a amargura do íntimo do Caminhante. Fora um dia duro. O luar iluminava-lhe o rosto, brilhante de lágrimas. O tempo de inactividade estava a chegar ao fim. Sem saberem, todos lhe pediam que agisse. Brevemente iria fazê-lo.

Num Domingo de Outubro de 1922 realizou-se o casamento de Américo Afonso e de Luísa. A Casa das Leis foi o palco da cerimónia simples de união entre dois amantes. Casaram-se pelo civil. D. Vitoriana ficou muito triste por não poder ver o seu filho perante o altar católico, numa cerimónia religiosa que com certeza a encheria de alegria. Mas dado o estado civil de Luísa, essa cerimónia era de todo impossível. Foi este o único aspecto do casamento do filho que verdadeiramente a entristeceu. O povo falava. O povo escandalizava-se. Mas se o fazia, era mais por inveja do que por outra razão. Até aí, Luísa sempre fora estimada por todos. D. Vitoriana sentia que o filho lhe arranjara uma nora em condições. Na verdade, o dinheiro não era tudo na vida. Se as qualidades humanas já não tinham valor, para onde iria o mundo?
Pela segunda vez Luísa abandonava a casa de seus pais. Comparando a simplicidade da casa da Quinta do Louro com a sumptuosidade da Casa das Leis, Luísa melhorara em muito a sua vida com aquele segundo casamento. Da riqueza assim oferecida beneficiavam também a pequena Rosa e o jovem Carlos Avilar. Os dois pequenos, partindo de uma vivência inadaptada ao novo ambiente, começaram progressivamente a ambientar-se ao luxo daquelas paredes e a conquistarem a verdadeira estima do padrasto e dos avós adoptivos.
Passada que fora uma lua de mel cheia de encanto e romance, vivida no paradisíaco Hotel do Buçaco, onde desfrutaram da envolvência outonal de uma floresta matizada de ouro, regressaram ao Bombarral. Em finais desse mês de Outubro, no aconchego da intimidade do quarto, Luísa disse a Américo:
- Chegou a altura de te revelar um segredo.
- Um segredo? - perguntou Américo com perplexidade.
- Sim, um grande segredo. Espero que me compreendas.
- Diz Luísa, fala - dizia Américo deveras curioso, sem no entanto deixar de sentir um pouco de preocupação.
- Com quem è que tu achas que o Carlos se parece?
- O teu filho? Não sei, não tenho jeito para tirar parecenças, mas acho que contigo não é. Só se for com o António, mas eu nunca o conheci.
- O Carlos não se parece nem comigo nem com o António, porque ele não é nosso filho.
- O quê? O Carlos não é teu filho?
- Não.
- Mas eu sempre o conheci agarrado às tuas saias.
- O António trouxe-o deveria ele ter um ano de idade.
- Foi uma adopção?
- Não, foi talvez um salvamento.
- Mas então, quem são os pais do miúdo? Nasceu onde?... (pág. 93, ex. XXXI-em continuação)

in QUANDO UM ANJO PECA

Março/1998

6 comentários:

Gibson Azevedo disse...

Ficaremos nós, oh poeta, na espera do próximo escrito seu, para sabermos de quem o carlinhos é filho? Esperemos...
Forte abraço.

Poeta do Penedo disse...

Caro amigo

O seu excelente humor, até em poucas palavras se revela. Ri de orelha a orelha. Aguardemos então pela filiação do «Carlinhos».
Um grande abraço.

Teresa Fidalgo disse...

Poeta do Penedo,

Se a curiosidade matasse...


Vou, então, ficar à espera do resto da história...


Saudações Poeta!

Poeta do Penedo disse...

Cara Teresa Fidalgo
fico muito feliz por a ver de regresso.
Aguardemos então pelo desenvolvimento.

Briosas saudações.

MM disse...

Caro Poeta do Penedo,

Deixe-me felicitá-lo por este trecho em que tão cabalmente soube estruturar o texto no sentido da curiosidade e surpresa do leitor.

Trata-se de uma sequência que apela à leitura do que lhe segue, porque é precisamente um ponto de maior fluidez e maior dinamismo da história.

É bom quando se lê um livro e se chega a pontos destes, em que a renda do enredo é invertida e contemplada de um avesso que não parecia plausível.

Com amizade,

Marcelo Melo
www.3vial.blogspot.com

Poeta do Penedo disse...

Caro Marcelo Melo
Por tudo quanto tenho lido da sua autoria, considero-o um jovem extremamente inteligente, com uma mente profundamente estruturada. Como tal, a sua análise é para mim muito gratificante.
Um abraço.