sexta-feira, 1 de outubro de 2010

NA SOMBRA DE ANTÓNIO AVILAR VEM O CAMINHANTE

...O Caminhante sofria. As lágrimas corriam-lhe abundantes pelo rosto barbado e endurecido pelas mágoas da vida. O seu olho cego tinha a única utilidade de ajudar a fazer brotar as tristezas que lhe escureciam a vida. No seu minúsculo casebre rangia os dentes e furiosamente agredia as paredes do pobre lar. Vencido pelo destino, tomou uma resolução - ir dar-se a conhecer ao Padre José Soares. Não suportava mais aquela situação sozinho. O padre era a pessoa certa para o poder ajudar. O sol de outono estava a pôr-se no horizonte salgado de S. Martinho do Porto. Era o momento.
Deu um pouco de água ao rosto e convictamente partiu em direcção à casa do pároco. Encontrou-o pelo caminho.
- Santas tardes senhor padre.
- Viva homem de Deus. Não vais ao caldo?
- Primeiro preciso de alimentar o espírito.
O padre parou.
- Queres-te confessar?
- Quero sim senhor padre. Quero-me confessar a Deus e aos homens - e duas lágrimas pesadas, carregadas de escuridão, lhe desceram pelo rosto.
- Estou a ver - disse o padre José Soares - vamos até minha casa. Não podes por mais tempo manteres-te um incógnito. É isso não é?
- É sim senhor. E será muito mais do que isso. Preciso de ajuda.
- Assim eu tivesse podido ajudar a todos, como te posso ajudar neste momento. Vamos a isso.
Os dois homens entraram na casa do pároco. Uma casa que ele habitava havia já vinte e um anos. Com o desaparecimento do morgado Vitorino, não mais recebera visitas. O Caminhante era o primeiro. O padre José Soares abria a sua porta àquele homem simples, porque nele sentia estarem latentes aqueles valores humanos de que ele próprio tanto precisara. Também a sua vida se tornara mais sombria desde o desaparecimento do seu pupilo, do pequeno Leandro e do José Chambão.
- Senta-te homem - disse o padre José Soares, sentando-se também - abre-me esse espírito.
- Preciso muito de ajuda espiritual senhor padre. Sou um homem só. Desgracei a minha vida na herdade onde trabalho, numa noite que já tem doze anos.
- Ali na herdade? Há doze anos? - perguntou o padre intrigado.
- Senhor padre, chamo-me... António Avilar. Sou do Bombarral e participei no assalto em que morreu o morgado e o capataz.
Ao ouvir aquelas palavras, como que empurrado por força invisível, o padre José Soares levantou-se de um salto, foi até à janela mais próxima, mãos postas junto ao rosto, mantendo-se em silêncio. O Caminhante, um António Avilar de rosto transformado pelas agruras da guerra, sentiu que algo muito sério se passava no íntimo do padre.
- Como disseste que te chamas?
- António Avilar, senhor padre.
- Diz-me então António, porque razão vieste para Alfeizerão?
- Vim para tentar reparar o mal, que sem querer, ajudei a fazer.
- Como é isso possível? Deste-me a certeza de que o meu querido Vitorino está morto.
- Vitorino? Quem é o Vitorino senhor padre?
- Vitorino era o morgado de Alfeizerão. Que reparo podes fazer? Que remédio tens tu para a morte?
- Nenhum senhor padre. Mas posso tentar devolver os bens ao menino que eu raptei.
O padre José Soares não aguentou mais. Virou-se repentinamente. Os olhos estavam endurecidos com a chama do desgosto e da raiva.
- Foste tu que roubaste ao berço o pequenino Leandro?
- Fui senhor padre, para o salvar da fúria do Barreto Raposo. Eu não matei ninguém. Vim enganado, era jovem. O ideal republicano fervia-me no sangue.
- Que fizeste tu ao menino?
- Levei-o para minha casa. Lá anda pelo Bombarral. Está um belo rapazinho.
- Deus seja louvado - ria e chorava o padre - o pequenino Leandro está vivo e mora no Bombarral.
- Mas senhor padre, ele não se dá por esse nome. Ele chama-se Carlos Avilar. Foi o nome que eu lhe dei.
- Pois fica sabendo que esse rapazinho, quando tu o tiraste ali do solar, já se chamava Leandro Vital de Lourena Fernandes. Que alegria a Lucinda vai ter quando souber.
- A Lucinda Matias?
- Essa mesma - disse o padre.
- É ela a mãe do pequeno?
- Não, a mãe do pequeno morreu quando ele nasceu. Ele e o irmão.
- O Helder - disse António Avilar.
- Como sabes?
- Eles são iguais senhor padre.
- Confirmasse agora a tua história - disse o padre - efectivamente são gémeos. Tu a fugires com um para um lado e a Lucinda com outro para outro lado, concretizaram a separação dos dois.
- A Lucinda apercebeu-se da nossa chegada?
- Apercebeu. Na altura tinha o Helder ao colo e com ele fugiu. Dás-me então a certeza de que o responsável por tudo isto é o Barreto Raposo?
- É verdade sim senhor. Quando ele descobriu que eu fugira, perseguiu-me. Fui obrigado a sair de Portugal.
- Bem a Lucinda tinha razão ao dizer que reconhecera a voz desse Raposo. Qual foi o teu destino?
- A guerra, a maldita guerra...(em continuação, pág.97, ex. XXXIII)

in QUANDO UM ANJO PECA

Março/1998

5 comentários:

Mari Amorim disse...

Poeta amigo,
Hoje infelizmente não consegui fazer a leitura do seu texto,mas voltarei.
Hoje é dia de eleições aqui no Brasil,e São Paulo é o maior colégio eleitoral do país,Que Deus,cuide do Brasil!
Grande beijo,
Mari

Mari Amorim disse...

Poeta amigo,
quanta diferença faz o livre arbítrio
na vida de uma pessoa,não é mesmo?
Boas energias sempre,
um abraço fraterno genuinamente brasileiro.
Mari

Gibson Azevedo disse...

Como disse, caro poeta, boa trama!... Boa trama! Esperemos e vejamos como termina. Assim como no texto, o tempo, nosso amigo, desvendará todo o mistério. Paciência...
Bravo, Poeta! Grande abraço.

Poeta do Penedo disse...

Cara Mari
Pois que o povo brasileiro tenha sabido votar. Fiquei muito feliz em saber, por uma reportagem que passou aqui, relacionada com as vossas eleições, que Lula da Silva trouxe o progresso ao Brasil, e que a vossa economia respira saúde. Se assim é, não percebo o que fazem neste pobre país, que é Portugal, os emigrantes brasileiros, e que são já uma comunidade muito vasta.
Pois, o livre arbítrio, essa liberdade de actuação perante a vida, que tanta responsabilidade acarreta.
Um excelente fim de semana, minha cara amiga.

Poeta do Penedo disse...

Meu caro Gibson
o seu comentário fez-me rir, de verdade. Com imensa paciência, aguardemos, serenamente, pelo que o Antóno Avilar nos tem para mostrar, aguardemos para ver se ele merece a paciência pela espera.
Quanta coisa boa, meu amigo, teríamos para contar um ao outro, se fossemos vizinhos.
Um grande abraço e votos de um óptimo fim de semana.