...- Tens recebido noticias do Álvaro?- perguntou a amiga.
- Sim, ele está bem. O meu Álvaro dava um óptimo jornalista, pois manda-me autênticas reportagens de guerra. Apetece-me dizer que tenho África em directo.
- Deve ser óptimo ter um namorado que goste assim de escrever.
- È muito bom- respondeu Catarina- comunicando-se assim constantemente, ele sente-se mais vivo e quase comunga o dia a dia comigo. E eu, pelo meu lado, tenho a responsabilidade de o integrar nas coisas banais e nas coisas importantes que me vão acontecendo, para alimentar essa comunhão. E no tempo que gastamos a escrever cartas, e na ânsia que vivemos em as receber, os meses passam mais depressa. Quase sem darmos por isso já passaram nove.
- Eu acho que quando arranjar um namorado, vou escolher um homem que tenha o serviço militar já cumprido.
- Porquê?- perguntou Catarina, rindo.
- Não gosto muito de escrever. Se o meio de atenuar a saudade fosse apenas através das cartas, iria fazê-lo por obrigação e não por devoção, como conviria.
- Estás enganada Isabel. Irias fazê-lo por amor, que è algo totalmente diferente. Irias reparar que a lapiseira quase escreveria sozinha. E se amasses verdadeiramente o teu namorado, irias compreender que as cartas seriam o único meio que vos restava de se amarem.
- És feliz Catarina?
- Se sou feliz? Sob certas condicionantes posso dizer que sim. Tenho uns pais maravilhosos, tenho os meus amigos, tenho-te a ti, tenho-o a ele através dos aerogramas- dizia Catarina que com um pálido sorriso fixava o rosto da amiga. Esta segurou-lhe nas mãos e apertando-as disse-lhe:
- Querida amiga, podes sempre contar comigo. Mas agora tenho de me ir embora. Está a chegar a hora do eléctrico. Ficas?
- Sim, fico. Vim para estudar um pouco.
- Então até amanhã Catarina.
Ali, no primeiro andar, apenas mais duas mesas estavam ocupadas. Era estranho entabular-se uma conversação com um amigo, sobre um assunto tão sério, e seguidamente ficar-se só. Era como se esse amigo, por momentos nos tivesse ajudado a enfrentar os adversários da nossa vida, e nós, encorajados com essa ajuda, tivéssemos redobrado as forças. Mas o amigo ia-se embora e compreendíamos que aquela ajuda fora apenas uma ilusão. O adversário, a saudade, era sempre tão forte, tão intenso, tão presente, por mais cartas que se escrevessem.
Catarina ali se manteve por bastante tempo. Após muitas páginas de filosofia estudadas, muitas páginas de sebenta preenchidas com anotações, abandonou o Nicola e nem uma linha lera do livro Contacto. Afinal não sabia porque o trouxera. Eram quase seis da tarde. A noite quase se instalara. A paragem do eléctrico ficava mesmo em frente ao café de onde Catarina acabara de sair. Naquela paragem, instalada no largo passeio, existia grande aglomeração de pessoas. Ali estavam para apanharem as várias carreiras de eléctricos e tróleis que serviam toda a cidade. Para Catarina seria o 4, o que trazia escrito num pequeno rectângulo, na parte superior « Cruz de Celas ». Como o tempo esfriara. Aconchegou melhor o seu grosso casaco preto ao corpo. Os livros tinha-os colados ao peito e abraçava-os. Observava as pessoas que passavam. De vez em quando sorria a crianças que a observavam.
Finalmente surgiu o seu eléctrico. Já levava bastante gente e naquela paragem entraram mais umas quantas pessoas. O condutor do eléctrico, com o pé fez soar um dispositivo sonoro que se encontrava no chão, bem junto a uma base metálica, que suportava uma roda de que o condutor se servia para travar e destravar o eléctrico. Parecia uma roda de leme. Dois fortes batimentos metálicos que o condutor provocara e o eléctrico pôs-se em movimento. Catarina conseguira arranjar um lugar sentada, na parte da frente, junto ao compartimento do condutor. Já existiam alguns passageiros de pé, que de alguma forma atrapalhavam os movimentos do cobrador dos bilhetes, com a sua mala gasta, de cabedal castanho, que trazia a tiracolo e de onde retirava moedas, com as quais ia fazendo os trocos.
Ela não reparara, mas no eléctrico entrara um jovem que a observava intensamente. Era o mesmo que estivera sentado na mesa do café, quando Catarina ali entrara.
Ele tentava disfarçar a sua presença o mais que podia. Aquela loira não podia aperceber-se de que ele ia ali. Se calhar já nem se lembrava. Haviam trocado um olhar tão rapidamente! Ela ficara desconfiada. Mas que raio havia aquele livro ter de tão de especial, que o tivesse obrigado a ele, um jovem rapaz cheio de vida e com um promissor futuro como engenheiro, a aguentar todas aquelas horas meio escondido, aguardando que aquela sujeita saísse do café, obrigando-o a ele a persegui-la no interior de um eléctrico apinhado de gente, para tentar descobrir onde residia ela. O seu pai não era nenhum parvo. Se ele ambicionava ter o livro de capa preta que aquela loira levava no regaço, ele lá sabia porquê.
Chegado o 4 ao Largo da Conchada, no início da Rua António José de Almeida, Catarina saiu. O seu perseguidor atrasou a saída o mais que pôde. Já o eléctrico se punha de novo em movimento quando o rapaz saltou para o exterior. A loira levava-lhe um avanço de cerca de vinte metros. Contornou uns poucos de prédios e entrou numa rua, que abria, formando uma espécie de largo, assinalada com uma placa onde estava escrito « Rua Frei Tomé de Jesus ». Havia necessidade de anotar o nome da rua e foi o que o jovem fez, sem perder de vista a rapariga.
Catarina entrou em sua casa sem nunca se ter apercebido de que era seguida. O jovem deixou que ela desaparecesse no interior da habitação e aproximou-se para ler o número da porta. Era o número 61. Muito bem! O número 61 da Rua Frei Tomé de Jesus correspondia a uma pequena vivenda pintada de vermelho. Anotou a observação e foi-se embora. Caramba, que o pai nunca mais lhe pedisse fretes daqueles. Se ao menos o pai lhe tivesse dado a possibilidade de ele se poder comunicar com a loira!! Agora assim...(em continuação, pàg. 68- ex. XV)
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Novembro/1999
quarta-feira, 13 de outubro de 2010
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5 comentários:
Amigo poeta,
saio sempre muito feliz,quando passo por aqui.
Boas energias!
Mari
Poeta do penedo, poeta de portugal, poeta do mundo.
como é magnifico ler a terra lusitana em tuas palavras.
Meus caros amigos Mari e Sandrio
Sempre muito feliz por vos ver por cá.
Falar de Portugal foi a minha intenção primeira.
Com amizade.
A solidão urde silenciosamente contra a sorte do Álvaro... Ou não ?
Amigo Gibson
Por vezes, a solidão é boa conselheira. E em teatro de guerra, como é o local em que o Álvaro se encontra, todos os conselhos são bem vindos, a fim de que a vida se preserve. Muita coisa urde contra a sorte do Álvaro. Combater é isso mesmo.
Um grande abraço, caro amigo.
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