Quatro
anos se passaram. Na sua contínua e silenciosa viajem em torno do Astro Rei, a
Terra girou mais de um milhar de vezes sobre o seu eixo, oferecendo aos seus
habitantes a dádiva do sol, que neles fazia crescer a agitada palpitação da
vida e ainda a retemperante quietude da luz da lua.
No
emaranhado de países a guerra ditou a sua triste lei e os homens cresceram um
pouco mais na sua perfídia.
No
mundo ocidental, a humanidade disse adeus ao Papa Paulo VI, conheceu num
brevíssimo pontificado o Papa João Paulo I, e viu surgir um dos grandes chefes
do Vaticano, um enorme líder espiritual, um fervoroso peregrino de Fátima de
Portugal: o Papa João Paulo II.
Neste
nosso pingo de terra, numa falésia da Europa plantado, nesses quatro anos
conhecemos a crise política e social, com a sucessiva queda de vários governos
constitucionais, e a morte do primeiro ministro, Francisco Sá Carneiro,
ocorrida num acidente de aviação em Camarate, com origens profundamente
nublosas.
No
Arquipélago dos Açores, os separatistas da Frente de Libertação dos Açores
(FLA), provocavam incidentes graves, tendo inclusive montado cerco ao Comando
Regional da Policia de Segurança Pública em Ponta Delgada. No Alentejo, a
agitação popular foi enorme, com todos os actos sensatos e insensatos que
tiveram lugar no decorrer da chamada «Reforma Agrária».
No
mundo da arte, no que concerne aos artistas das palavras, Portugal pôde de
alguma forma sorrir de alegria: o livro «Os Bichos» de Miguel Torga foi
premiado em França; no Canadá foi inaugurada uma exposição sobre Alexandre
Herculano; Fernando Namora recebeu a medalha de ouro da Societé Encouragement
au Progrés de France; por fim David Mourão Ferreira foi agraciado com a Legião
de Honra Francesa.
Aveiro
era uma cidade fria. Corria o mês de Dezembro de 1981. Nesses quatro anos
Serôdio passara por várias fases. Começara por manter uma luta feroz contra o
seu próprio organismo, na tentativa de recuperar todas as suas faculdades
motoras. Com muito sacrifício e paciência, ao fim de um ano de exaustiva
terapia, os membros do lado direito começaram finalmente a obedecer-lhe. Então
intensificou mais os treinos, para mais depressa recuperar a sua forma física. Já
escrevia com delicia. Memorizar o que lia è que ainda era um problema, embora
aprendesse que se quisesse armazenar alguma informação na memória, teria que
apenas ler algumas linhas diariamente. Era pouco, mas já era um avanço. Um
avanço que no entanto nenhum significado tinha para quem se propunha tirar um curso superior.
Serôdio
reflectiu imenso. Aquela inferioridade não o podia transformar num homem
derrotado. Se a vida não podia seguir pelo caminho planeado, teria de se
encontrar um outro rumo. Poderia ser mais sinuoso, mas a vida não podia parar
nem ele alguma vez se transformaria num inútil. Por isso, naquela bela tarde de
meditação, enquanto corria pelo parque da cidade, decidiu dar-se voluntário
para a tropa.
O
tempo passou e pelo Natal de 1981, ali estava o soldado Velasques, gozando um
fim de semana de licença.
O
início da sua vida militar foi acabrunhante e frustrante. Tivera sido incorporado
no Curso de Oficiais Milicianos, em Mafra. Mas dada a sua incapacidade
memorizadora, o comando da Escola Prática de Infantaria de Mafra decidiu
eliminar Serôdio daquele curso. Ele bem que tentou explicar qual a deficiência
de que era vítima e qual a sua origem, mas o comandante do curso não foi
sensível aos apelos de Serôdio, no sentido de que houvesse alguma benevolência
para com ele. Se não estava apto para responder ao que dele se exigia, em
termos de assimilação de conhecimentos, teria de ocupar um lugar cujo factor
intelectual era de menor valia. Foi desclassificado do curso de Oficiais
Milicianos e incorporado no Contingente Geral. Era um sério candidato à
classificação de «básico». Serôdio sofreu imenso com aquela humilhação, mas
cerrando os dentes e os punhos, seguiu em frente. Três meses volvidos foi com
muita tristeza que viu os seus antigos colegas do C.O.M serem promovidos a
aspirantes, enquanto ele não passava de um soldado raso. Decidiu lutar
afincadamente contra a sua inferioridade. Teria de ser capaz de reter na
memória aquilo que lia.
O
tempo avançou e naquele fim de semana, próximo do Natal de 1981, Serôdio
ultrapassara os seus recalcamentos. Mais alguns meses e a tropa pertenceria ao
passado. Havia que pensar no futuro e Serôdio já tinha tomado uma resolução.
Nesse fim de semana iria comunicá-la aos pais...(em continuação, pág. 66, ex. XXI)
in FILHOS POBRES DA REVOLTA
Março/2003
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