...O
mouro ia deveras agitado. Ruminava ameaças. As esporas que possuía na base das
botas de montar feriam os flancos do cavalo que montava. Ao chegar à herdade, o
pobre animal sangrava das feridas provocadas pelos bicos aguçados das esporas.
Aquele sangue era o reflexo da raiva que consumia o mouro. A curta distância
que separava o casario trabalhador do solar, fora percorrida pelo mouro num
galope veloz, alimentado por instintos sanguinários.
Chegado
ao solar o mouro desmontou e dirigiu-se em passos largos e rápidos à porta
principal, na qual bateu brutalmente com os punhos cerrados.
- Patrão, ó
patrão, venha cá fora - clamava o mouro furiosamente.
Chegava
o fim da tarde de mais um dia de Outono. Corriam os primeiros dias de Novembro.
Barreto Raposo encontrava-se no escritório, fazendo contas, utilizando uma
aritmética muito própria, constituída por símbolos que só ele sabia decifrar.
Necessidades de quem nunca aprendera o significado de letras e números.
Possuído por uma grande cobiça e uma incomensurável ambição, Barreto Raposo foi
obrigado a criar o seu próprio sistema aritmético, para assim poder gerir os seus
bens, muitas vezes os frutos da sua esperteza maldosa, do seu mau carácter, sem
ter de recorrer a ninguém, para não correr o risco de dar a conhecer a sua
deplorável conduta. Ouviu os batimentos de desespero, reconheceu a voz do mouro
e atravessou o comprido corredor.
- O que é
que se passa mouro? - abriu a porta e deparou com o seu capataz de feições
alteradas, olhar mais frio do que nunca, espuma branca e nojenta aos cantos da
boca.
- Eu
mato-os a todos - dizia o mouro.
- A quem é
que tu matas? - perguntou o fivelas, curioso.
- Aquela
reles da Lucinda, o padre e o zarolho.
- Não estou
a perceber - dizia o Barreto Raposo - pareces um bezerro tresmalhado. Põe-me as
ideias no sítio e explica-te. Pelo que vejo há aí história.
- E das
grandes patrão.
- Conta-me
o que se passou.
- Vinha eu
de passar uma vista de olhos pela herdade. Encaminhava-me já para aqui. Ao
passar pela casa do Daniel ouvi a mulher dele a chorar e a rir ao mesmo tempo.
Achei aquilo muito sem "trambelhos". Desmontei e quando me aproximava
da casa saiu-me ela como doida, a dizer que havia de contar ao marido, que o
menino dela estava vivo há doze anos...
- Disseste
há doze anos?
- Foi o que
eu ouvi ela dizer.
- Eh raio!
Há doze anos tomei eu conta da herdade. Também me fica uma pulga atrás da
orelha. E que mais?
- Ela
quando me viu chamou-me belzebu. Eu ia-me a ela quando de dentro da casa
apareceu o padre.
- O padre?
- Foi
verdade. Logo ali me disse uma lengalenga. Não percebi nada mas ficou-me a
ideia de que o padreco esteve a mangar de mim. Subiu-me cá o nervoso, que com
duas das minhas o pus em sentido. Mas para ajudar à festa apareceu também o
zarolho que se pôs a defender o padre e a ameaçar-me.
- E porque
é que logo na altura não lhe ensinaste algumas das tuas habilidades?
- Deixei
isso para um outro dia, para quando me possa desforrar bem à minha maneira -
disse o mouro, escondendo do Barreto Raposo as apreensões que sentira quando
teve vontade de atacar o António Avilar.
- Tu tens
razão mouro. Aí há história. O padre já estava em Alfeizerão quando eu para cá
vim. Segundo me parece ele era muito amigo do fidalgote. Falar-se aí nalguma
coisa que aconteceu há doze anos, estando o padre misturado com o povinho,
cheira-me a esturro. Haverá por aqui qualquer coisa que eu desconheça?
- Ó patrão,
se houvesse eu já sabia.
- Talvez
sim, talvez não. As cabeças vazias dos «pobretas» por vezes conseguem pensar.
Se tens andado atento, põe-te mais atento ainda. Mas nada de fazeres qualquer
coisa contra a Lucinda ou o padre. Não me estavas a ajudar em nada. Já reparei
que a Lucinda é muito estimada pelas gentes de cá e com respeito ao padre,
desse nem se fala.
- E o
zarolho patrão? Esse também se fica a rir?
- Não, a
esse podes tu chegar-lhe com força. Se quiseres manda-o desta para melhor. Não
me agradam aqueles que provocam o meu capataz.
- Ah rico
patrãozinho, que a falar assim nunca a língua se lhe tolha. Pois àquele hei-de
eu tratar da saúde, pode o patrão ficar descansado...(em continuação, pág. 115- ex. XLI)
in Quando Um Anjo Peca
Março/1998
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