sábado, 31 de outubro de 2015

FORD T, UMA CARROÇA BARULHENTA

...Era uma bela manhã de Dezembro, soalheira, luminosa. O sol, como que aborrecido por há muito não acariciar o mundo com os seus raios de vida e alegria, surgiu nessa manhã, sorridente e pronto a reavivar as cores de todas as coisas que fazem os corações dos homens transbordarem de emoção. A pardacenta cor do inverno estava ausente. O sol aquecia frescamente o ar. Todas as plantas, desde a ínfima erva à mais robusta árvore, perante a inesperada e fecunda luz solar, numa rápida e preciosa acção química de fotossíntese, exalavam odores campestres, os quais exaltavam os homens a amarem tudo o que era natural. Aquela era uma manhã mágica. E Américo Afonso sentia isso mesmo. Ao volante do seu automóvel Ford, modelo T, ia percorrendo calmamente a distância entre o Bombarral e Alfeizerão, desviando-se das muitas poças de água, autênticos espelhos da natureza, que reflectiam a luz solar e que de quando em vez o cegavam. De vez em quando cruzava-se com camponeses, que atónitos, paravam e num virar completo de corpo e cabeça, seguiam o movimento daquela carroça barulhenta e que por mais que pensassem, não atinavam com a fonte de energia que a fazia mover. Alguns desses simples homens do campo levavam consigo os seus burros, transportando imensos feixes de erva ou molhos de vides. Outros ainda iam aparelhados com albardas, carregados com toros de lenha para a lareira, que as noites iam frias. Os animais perante a presença da máquina roufenha desatavam a zurrar e a ameaçar fugir, assustados com a terrível visão, para desespero dos donos, que não só lutavam por acalmar os burros, como também eles próprios ficavam inertes de perplexidade. E estas cenas, fruto de algo desconhecido, que pela primeira vez chegava ao conhecimento daqueles homens, faziam aflorar um leve sorriso aos lábios de Américo Afonso...(em continuidade, pág. 121, ex. XLVI)

in Quando Um Anjo Peca
Março/1998

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