Estou com quarenta e
cinco anos de idade. Segundo a letra da canção do Paco Bandeira entrei na idade
de uma ternura muito específica, que além de sentimento tem também experiência
e sabedoria. E estou tentado a dar-lhe razão.
De
facto a idade dos quarenta é um patamar cronológico de vida, que se pode
considerar de excelência. Alia conhecimento a uma ainda enorme vitalidade. Que
pode o ser humano querer mais?
Pois
aí é que está a questão. No mundo que o homem foi moldando, conhecimento e
vitalidade não chegam para se ser feliz! Talvez isso acontecesse naqueles
tempos distantes, no fim da Era dos Neandertais e o começo do Homo Sapiens, em
que a vida não conhecia a expressão «possuir bens».
Nessas
épocas tão distantes de nós, há vinte e oito mil anos, a felicidade dos seres
humanos de então residia em três coisas: ser um experimentado caçador, ter uma
caverna onde se abrigar e ser muito bom a conseguir, com o atrito de duas
pedras de sílex, uma boa faísca através da qual ser-lhe-ia possível fazer uma
boa fogueira, para se aquecer e assar a carne da caça.
Mas
o Homo Sapiens estava destinado, pelo criador disto tudo, a evoluir. Ao
fazê-lo, esqueceu a felicidade daquela vida agreste, difícil, mas com a pureza
do que é simples, e começou a complicar. E de complicação em complicação,
atravessando a profundidade dos séculos, conseguiu complicar o que já de si foi
ficando complicado: inventou o dinheiro!
A
partir dessa invenção, ser saudável e ter experiência e conhecimento deixou de
bastar para se ser feliz.
Os
pobres, na tentativa de mitigarem o seu sofrimento, criaram a expressão:
«dinheiro não é felicidade». Como eu gostaria que assim fosse!
Eu
sei que há muita gente que, sendo rica, não é feliz. Falta-lhe a saúde. Mas
perguntem a um miserável, cheio de saúde, se é feliz. Ele até pode tentar
convencer-se de que o é, pois tendo uma vida para viver, tem de a concretizar
da melhor maneira possível. Mas num mundo consumista e materialista, que vida
pode ter aquele que não tem possibilidade de consumir, a quem está vedado o
acesso aos bens materiais que o rodeiam?
Como
eu gostaria que o Homo Sapiens actual inventasse agora uma forma de se ser
feliz sem dinheiro.
Bem,
mas se estou para aqui a divagar, é com um propósito. Quero revelar o conteúdo
de uma carta fechada que a vida me abriu.
Chamo-me
Mário Feliciano. Filho de gente pobre, não posso dizer que a minha vida, na
adolescência e juventude, tenha sido um inferno, mas esteve muito longe de ter
sido um paraíso.
Os
meus pais, com muita dificuldade, me mantiveram a estudar até ao terceiro ano
do Secundário, o que a lei obrigava. Com dezasseis anos de idade, vi o meu pai
conseguir-me arranjar trabalho num enorme armazém de produtos agrícolas, onde
ele próprio trabalhava, tendo-me ali mantido durante vinte e um anos, tempo este
apenas interrompido por aquela meia dúzia de meses em que tive de ir cumprir o
meu serviço militar obrigatório.
Trabalhava-se
muito, e como já é hábito neste pobre país, ganhava-se pouco. Vida de pobre! A
massa trabalhadora a dar tudo o que tem e o patronato, em troca, a dar à massa
trabalhadora apenas o que a triste legislação obriga, revestindo-se de uma
carapaça onde os escrúpulos fazem ricochete.
Já
o meu pai dizia que a vida pode se revelar uma carta fechada. Tive então
dificuldade em perceber o que ele queria dizer com isso, até ao dia em que a
vida mo ensinou, naquele excepcional dia de 2010.
Nesse
dia, já possuidor de carta de condução, que paguei com dificuldade em
prestações (esse favor devo ao dono da escola de condução), conduzindo uma
carrinha de caixa aberta, fui levar meia dúzia de sacos de batatas a um
restaurante. Carregando os sacos, um a um, lá os depositei na cozinha, onde se
encontrava o proprietário, que também era o cozinheiro. Foi uma daquelas coisas
que não têm explicação! O dono do restaurante e eu nunca nos tínhamos visto na
vida, e quando nos observámos, sorrimos um para o outro e ali nasceu uma
simpatia mútua. No final do carrego o senhor ofereceu-me uma cerveja, que eu
aceitei. Estávamos em Julho e o calor já apertava. E ali, na sua cozinha,
conversámos cerca de um quarto de hora. Foi o bastante! Um mês depois deixei o
armazém de produtos agrícolas, de há vinte e um anos, dizendo adeus ao
explorador do patrão, que não demonstrou qualquer tipo de curiosidade em
perceber por que razão me ia embora. Para ele, sair eu ou um canico que por ali
tivesse andado vinte e um anos, foi o mesmo. Verdade seja dita que me aguentei
ali todo aquele tempo apenas e só para não trazer complicações à vida do meu
pai. Mas tendo-o já reformado, assim que tive oportunidade, para mais sendo um
novo trabalho oferecido com um sorriso, simpatia e maior justiça salarial,
mandei o sacana do explorador para o quinto dos infernos.
Com
que alegria e entusiasmo abordei o novo trabalho!
O
meu novo patrão, solteiro como eu e uns anos mais velho, chamava-se Albertino
Pereira Torres, e o seu pequeno restaurante o «Azeite e Alho».
Era
um restaurante simples e popular, direccionado para gente simples como nós, com
um cozinheiro que, além da sua contagiante simpatia, tinha nas mãos um tempero
de excelência.
Comecei
a trabalhar servindo às mesas. O serviço não exigia requinte, porque os
clientes apenas requeriam simpatia e boa comida. Por isso não foi difícil a
minha adaptação.
Tinha
apenas um colega, mais ou menos da minha idade, mas já muito tarimbado naquelas
andanças de servir à mesa de forma simples mas eficaz. Com os seus conselhos e
a simpatia do patrão, ao final do primeiro mês o trabalho revelava-se-me muito
mais gratificante do que aqueles vinte e um anos a carregar caixotes de fruta e
sacos de batatas.
Naquela
casa comecei a ver a vida por uma perspectiva muito mais colorida. A diferença
que pode fazer o carácter de uma pessoa na nossa vida, que tem influência
directa no nosso trabalho, pode ser mesmo impressionante. A tal carta fechada
de que o meu pai falava, revelou-me uma excelente surpresa. O senhor Albertino
Torres transformou-me num tipo um pouco mais feliz, porque trouxe à minha vida
um pouco mais de justiça social, ao fazer-me sentir que trabalho e dignidade
eram duas realidades que, afinal, estavam ao meu alcance.
Mas
as cartas fechadas ainda não tinham acabado.
Trabalhava
eu no Azeite e Alho havia dois anos e meio, quando, um dia, ao jogar no
euromilhões, a deusa da fortuna apiedou-se de mim, e ganhei vinte e sete
milhões de euros. Não, não me enganei. Acho que na altura até me babei. Um
homem, de um momento para o outro tornar-se dono de uma fortuna assim, até pode
provocar alguma coisa má com tanta emoção! Mas lá me aguentei.
E
inebriado com a abundância de dinheiro, não reparei em mais nada, por certo
naquilo que tinha obrigação moral de dar conta. Fechei-me num estúpido
egocentrismo, talvez até tendo sofrido de um momentâneo e deplorável narcisismo.
Com a carteira a rebentar pelas costuras com o peso do dinheiro, olhando, mas
sem nada ver, despedi-me do Azeite e Alho e dei um abraço de «até um dia
destes» ao meu patrão, o senhor Albertino Pereira Torres. Corria o mês de Julho
de 2012. Teria sido uma boa altura para pegar um maço de notas de cem euros, e
esfregar com ele a cara mimosa da avantesma do meu antigo patrão.
Portugal
afogava-se em dívidas, mas eu tinha de nadar energicamente para não me afogar
em dinheiro.
Solteiro,
livre como os passarinhos, após rechear bem a triste conta bancária dos meus
pais, fui conhecer mundo sem data marcada de regresso, no píncaro dos meus
fortes trinta e nove anos de idade, impulsionado pelo avião a jacto que eram os
meus milhões. Andei por onde me deu na veneta, e como a minha veneta é
enorme…desde a Austrália ao Alasca, da Ásia à Tórrida e mágica África, berço da
humanidade, passando pela América do Sul e a luxuriante e densa Amazónia, tudo
vi e muito aprendi. Depois, regressado à Terra-Mãe, com o espirito explorador
muito mais sossegado, fui comprando enciclopédias e aprendi mais alguma coisa,
a juntar ao bocadinho que o terceiro ano do Secundário me oferecera. Até que,
passados dois anos, acho que um qualquer remorso me bateu forte.
Terminada
aquela euforia inicial eu tinha de dar algum sentido ao dinheiro que tão
subitamente ganhara. Sem um significado a dar àquela fortuna, parecia que eu
não era merecedor de a possuir. Numa hora muito feliz o senti.
Com
o coração a bater forte de emoção, dirigi-me ao Azeite e Alho para rever aquele
homem que me ensinara que, afinal, a felicidade não era impossível de ser
alcançada.
Cheguei
ao restaurante e parei o meu excelente carro bem à sua frente. Havia ali
qualquer coisa de anormal. Pus a minha mão direita no manípulo da porta de
entrada e rodei…mas a porta não se abriu. O nome do restaurante ainda lá
estava, por cima da porta, em letras pintadas de vermelho e amarelo-torrado,
mas cheio de teias de aranha carregadas de insectos mortos, e muita sujidade a tirar
cor à vida do Azeite e Alho. Não foi difícil perceber aquele drama, um drama de
um homem que o não merecia. Essa percepção foi-me ditada pela consciência a
martirizar-me. Reparei então num papel colado no vidro triste e empoeirado da
porta. Indicava um número de telefone de um administrador judicial. Meu Deus,
dois anos depois de me ter ido embora vim dar com o senhor Albertino Torres
falido. Por certo que os problemas começaram ainda eu lá trabalhava. Lembrei-me
de que a afluência da clientela diminuía. A crise instalava-se em Portugal de
forma abrupta e impiedosa. Mas ele nunca me fizera sentir que o restaurante
estava em dificuldades. Nunca me faltou com o vencimento…tudo se deve ter
precipitado após a minha saída.
Liguei
para aquele número de telefone e imediatamente me reuni com aquele
administrador. Pedi, com urgência, uma reunião de credores, e montado nos meus
milhões, paguei a dívida de uns míseros milhares de euros. No mundo do
materialismo ter a força do dinheiro abre qualquer porta, qualquer uma! Já por
outros mundos, de que o materialismo desdenha e apelida de ignorante, a
potência dominante é apenas e só a essência de cada um de nós. Infelizmente
essa essência, embora ande por cá, não pertence a este mundo.
Deram-me
a última residência conhecida do falido, o meu antigo patrão. Mas não fui
talhado para fazer averiguações, e como podia, entreguei o assunto aos
entendidos. Com o meu poderoso smartphone xpto, que uma pequeníssima côdea dos
meus milhões me oferecera, logo encontrei uma agência de detectives privados,
tendo contratado os seus serviços. Duas semanas depois um detective
contactou-me e deu-me a informação de que eu precisava: a localização do senhor
Albertino Pereira Torres. Emudeci! Uma hora depois estava lá.
A
força dos meus milhões levou-me até um parque de estacionamento que servia um
hospital. Estávamos em Dezembro, às portas do Natal. O dia estava soalheiro,
mas frio. Eram três da tarde.
Percorri
o parque mais em busca de um arrumador que me indicasse um lugar para estacionar,
do que propriamente o espaço para estacionar.
Quis
ser visível. E fui! Ao fundo daquela rua sem história, que se abria entre duas
longas fiadas de carros estacionados, uma à direita outra à esquerda, lá estava
o arrumador a fazer-me sinal com as mãos de que havia ali um lugar.
Aproximei-me dele e observei-o muito…muito bem, com as lágrimas a abrirem
caminho pelos meus poros agora milionários. Tal como um dia me indicara um
local para ser feliz, agora aquele arrumador indicava-me um local para
estacionar.
Estou
muito feliz. E essa felicidade devo-a aos milhões que tenho, que me
possibilitaram devolver dignidade material a um homem que, um dia, teve o
condão de me ensinar o quanto a nossa essência espiritual pode influenciar a
nossa existência material. Aprendida a lição, apenas mostrei ao meu mestre a
forma como o fiz.
É
Natal, faz muito frio na rua. Mas com o calor do forno, junto ao qual o senhor
Albertino Torres de novo é feliz, e eu também, servindo às mesas (não rejeito
uma gorjeta), o calor humano aquece a alma.
Neste
Natal o restaurante Azeite e Alho, além de poder dar um sabor melhor e
diferente ao bacalhau, tem montado um encantador presépio para oferecer magia
aos seus clientes.
Passem
por cá. Não se irão arrepender!
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