domingo, 23 de agosto de 2009

NO SECTOR DE LA BASSÉ

...- Fazes-me rir Rouxinol. Um pobre agricultor não é propriamente um morgado.
- Mas é um valente soldado, militar da infantaria 24, que combate em França.
- Tal como tu. Afinal, és de onde?
- Sou de Aveiro. Nasci em Verdemilho.
- Verdemilho? Nome bonito esse. Faz-me lembrar as searas de milho quando ainda estão verdes. As searas da nossa terra querida. Tens saudades de Portugal?
- Eu? Que bom seria sentir debaixo dos pés o baloiçar de um barco moliceiro. Amo a ria, a ria de Aveiro. Sim António, tenho saudades de Portugal, mas principalmente tenho saudades da vida.
- Tem calma homem. Em breve para ela vais voltar.
- Tenho medo. Tantos homens que como nós para aqui vieram e já partiram.
- Quem não tem medo Rouxinol? Ser um bravo, um herói, é fazer coisas dominando o medo que se sente. Vivendo cinco meses com a ameaça da morte, combatendo o inimigo, a fome e o frio, põe qualquer um de rastos. Mas, como ouviste, talvez ainda hoje sejamos rendidos. O desabafo que tive contigo deixou-me mais sereno. Vamos descansar um pouco?
- Vamos meu amigo. Preparemos os nossos espíritos para a alegria que será deixar este lodaçal.
Os dois homens voltaram a colocar os capacetes na cabeça. Encostaram-se a uma das paredes da trincheira. As botas, impregnadas de lama, faziam sulcos no terreno mole. Os capotes compridos estavam rijos pela dureza da lama seca que os envolvia. Os bornais que traziam a tiracolo estavam rotos e imundos. O peso das munições que guardavam nos bolsos dos capotes, pedia-lhes que descansassem os corpos doridos e martirizados. A carência de descanso era tanta que qualquer local onde deitassem a cabeça se transformava rapidamente no conforto da almofada que se usava lá em casa.
Com as tréguas providenciais que se faziam sentir havia algumas horas, os combatentes portugueses acomodavam-se como podiam, tentando recuperar forças e sonhando com a prometida rendição. Naqueles doze quilómetros, nos quais fora formado o sector português, já não existiam combatentes psicologicamente preparados para a guerra. Estavam ali apenas homens, que pelo facto de lhes ter sido prometida a rendição para esse dia, se encontravam no campo de batalha apenas fisicamente. Os seus espíritos estavam longe, abraçando as esposas, os filhos, as namoradas, os pais, os amigos. Doze quilómetros de trincheiras, onde o sentimento reinante era a alegria de muito brevemente as abandonar.
Subitamente, às 04H15, ouviu-se o som de um disparo da artilharia alemã. Seguidamente outro e mais outro. Poucos minutos depois a noite era rasgada por imensos clarões. Estilhaços enchiam o ar, como mortífero enxame de abelhas.
O corpo de tropas portuguesas acordou do seu torpor. Os combatentes protegiam-se como podiam. Tentavam diminuir a sua silhueta, comprimindo-se o mais possível contra os muros térreos da trincheira. Olhares furtivos à trincheira inimiga tentavam adivinhar qual o propósito daquele fogo, que ao fim de um quarto de hora indiciava ter um qualquer objectivo. Os rebentamentos das granadas, que a princípio começaram por não oferecer grande perigo às tropas portuguesas, foram-se lentamente acercando da trincheira lusa, numa demonstração inequívoca de que os artilheiros alemães estavam a afinar a pontaria. A noite conseguia esconder as imagens, mas não o som brutal das explosões, o gritar de ordens confusas, o praguejar de homens sem alento para combaterem, o zumbido aterrorizador de estilhaços invisíveis, o gemer de feridos, o silêncio dos mortos.
Em cinco meses de trincheira nunca a artilharia alemã se mostrara tão feroz e mortífera. A primeira luz do dia 09 de Abril de 1918 mostrava doze quilómetros de gente lusitana bastante flagelada. Algumas centenas de corpos jaziam por aqueles corredores de desespero, atrapalhando os movimentos dos vivos na ânsia de sobreviverem. O cheiro a sangue empestava o ar. O hospital de campanha, improvisado nas zonas da trincheira consideradas mais seguras, depressa ficara sem espaço. Os feridos, conforme iam chegando, eram colocados em cima de esteiras podres e fétidas, que dadas as condições existentes, eram o que de mais cómodo a trincheira podia oferecer. As enfermarias do suposto hospital mais não eram do que galerias abertas em pequenas elevações do terreno, onde os homens se acumulavam e sentiam angustiadamente o esvair da vida. Membros mutilados esguichavam sangue para cima de homens horrivelmente surpreendidos. Barrigas abertas deixavam escorrer intestinos ainda com vida. Os queixumes, os gritos de dor, o som das explosões, faziam daquele hospital um local sem esperança. Os maqueiros, enfermeiros e médicos tentavam acudir a todos, mas a artilharia alemã era mais eficaz.
Horas antes, a serenidade fora completa. Tão plena, que dera oportunidade ao António Avilar de desabafar com o seu colega de circunstância. Agora, que o dia nascia, a morte passeava-se no seio dos combatentes portugueses, semeando o caos. Por momentos António Avilar fixou o olhar no rosto jovem e inútil de um soldado. Jazia numa amálgama de sangue e lama. O rosto virado para o céu apresentava um olhar vítreo, onde no entanto se adivinhava a surpresa da morte. Mesmo no teatro da guerra, a morte é sempre inesperada. António Avilar teve tempo para fechar os olhos àquele seu camarada de armas, por quem, decerto, alguns pensamentos estariam enganosamente esperançados no seu regresso...(pág.55)

in QUANDO UM ANJO PECA

Março/1998

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