...-
Por falar em Deus, quero-te também contar algumas
coisas- disse Serôdio sorrindo.
-
E que coisas são essas?- perguntou a mãe bastante
curiosa.
-
Eu estive em coma. Para o exterior foi como se tivesse
estado num longo e profundo sono. Mas no interior, eu estive bem acordado.
-
Estiveste... acordado...?! Não te percebo!
-
È difícil de perceber e difícil de explicar. Por
muitas vezes, lembro-me de ver o meu corpo num plano inferior ao meu campo de
visão, no quarto do hospital. Algumas vezes abracei-te quando tu estavas junto
ao meu corpo, mas tu não deste por mim.
-
Ai Serôdio... credo... até me estou a arrepiar.
-
Mas è a verdade mãe. Nessa altura, eu sei que estive
muito perto da morte. Lembro-me também que estive constantemente acompanhado
por uma bela senhora vestida de branco, que me falou de muitas coisas. Acho que
vi cenas da minha vida, quando eu era pequeno e também cenas de outras vidas
que eu já tive.
-
Serôdio, isso è conversa de maluco.
-
Não è mãe. Durante este período, eu aprendi muitas
coisas sobre nós e o nosso espirito.
-
Credo, Nossa Senhora- disse D. Amélia benzendo-se.
-
Quando eu estiver melhor, vou procurar literatura
sobre o espiritismo, para aprofundar o que me foi dado saber.
-
Tu acreditas mesmo nisso filho?
-
Mãe, eu andei por muito lado. Tenho a certeza de que
muitas coisas que vi e ouvi me não deixam recordá-las.
-
Mas quem?
-
Deus, quem havia de ser!
-
Deus? Serôdio, não chames Deus para esses assuntos
de... de...
-
Prefiro que o não digas. Senti Deus de uma forma tão
intensa. Sei também que me disseram qualquer coisa relacionada com a D.
Silvina, mas não me consigo lembrar o quê, por enquanto.
-
Com a D. Silvina? Eu ouvi tu proferires esse nome
quando estavas a recuperar do coma.
-
A sério mãe? Então è verdade.
-
Que coisas tão estranhas tu me disseste agora,
Serôdio.
-
Sabes mãe, no meu estado de coma o corpo foi
desligado. O meu espirito quase que obteve liberdade completa para viajar por
onde quis. Mas podes crer, a morte não è tão má como a pintam.
-
Serôdio, a morte è o fim. Não há nada pior do que
isso.
-
Mas a morte não è o fim, pelo menos o fim do nosso
espirito. Aí termina a vida do corpo, disso não há dúvidas. Mas è no momento em
que o corpo morre, que o espirito se liberta e cada um de nós volta a assumir a
sua verdadeira identidade. Todos nós sabemos disso, só que não nos lembramos.
-
Mas tu lembraste!!- disse a mãe com perplexidade.
-
Eu lembro-me, porque estive do lado de lá e regressei
de novo, não num outro corpo, mas naquele que era meu nesta vida. Fui e
regressei continuando a ser o Serôdio Velasques. Se tivesse na verdade morrido
e daqui a não sei quantos anos tivesse regressado, reencarnado numa outra
pessoa, não me lembraria de que um dia o meu espirito reencarnara um corpo,
cujo nome fora Serôdio Velasques. Percebes?
-
Não filho, não percebo e nem quero perceber. Estou
mais preocupada com a tua alimentação. Come o teu lanche- disse a mãe de
Serôdio, cujo semblante demonstrava preocupação.
-
Porquê essa cara mãe?- perguntou Serôdio abraçando-se
à mãe.
-
Sempre foste um rapaz ponderado. Eu tinha tanto
orgulho em ti! Adorava ouvir-te conversar. Agora, depois de teres sido
espancado, dizes-me coisas sem pés nem cabeça. Não posso ficar com uma cara
muito feliz.
-
Minha querida mãe, eu não te quero ver triste. Podes
ter a certeza de que o teu filho não sofre de nenhuma demência. Prometo nunca mais
te falar nisto.
-
Mas vais pensar nessas coisas...
-
Mãe, não è à toa que eu estou vivo. Agradeço a Deus o
facto de me ter dado a oportunidade de te continuar a abraçar, a ti e ao pai.
Mas vejo a vida agora por uma outra perspectiva. Tudo nesta vida tem razão de
ser. Há sempre um porquê e um para quê. Te garanto que não estou doido, mas só
o tempo te demonstrará se a minha maneira de estar na vida revela ou não algum
sintoma de alienação. Obrigado minha mãe pela tua preocupação.
-
Não faço nada demais filho, nada demais- dizia a
senhora, abraçada ao filho, com os olhos marejados de lágrimas...(em continuação, pág. 62, ex. XIX)
in FILHOS POBRES DA REVOLTA
Março/2003
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