...As crianças
não correrão perigo. Mas não é justo. Desculpe a minha ousadia senhor padre,
mas o que pede não é deste mundo. Como pode um homem conter-se perante tanto
crime? Que mãos poderão deter as minhas próprias mãos, quando perdi tudo na
vida, quando sofri tanto, quando cheirei tanto sangue, tanto homem podre e tudo
por culpa desse maldito Barreto Raposo?
- Tu
António, por momentos recordaste-me o capataz José Chambão. Era essa a opinião
que ele tinha desse Raposo. Caso lhe tivéssemos dado ouvidos, talvez nada disto
tivesse acontecido.
- O capataz
pressentia o perigo.
- É
verdade, agora posso afirmá-lo.
- E não se
esqueça senhor padre, de que temos de ultrapassar a resistência dos dois cães
de guarda do Barreto Raposo, o mouro e o verruga. Esses bichos só entendem uma
maneira de falar.
- Tens
razão. No entanto eu vou tomando algumas medidas que acho necessárias.
Finalmente concederam a Alfeizerão o direito a ter um regedor. Vou ter uma
conversa com ele. Mas antes tenho de libertar a Lucinda daquele sofrimento.
- Cuidado
senhor padre. Ela não pode contar a ninguém.
- Tens
receio? Durante estes doze anos de ocupação ainda não chegou aos ouvidos do
Barreto Raposo que o verdadeiro dono da herdade se cruza todos os dias com ele
e humildemente obedece às suas ordens. Quem guardou tão bem esse segredo, está
à altura de guardar um segundo. Faz os preparativos da acção que eu me hei-de
encarregar dos preliminares. E que Deus nos perdoe e nos proteja. Sabes,
apetece-me celebrar qualquer coisa. Que tal fazermos um brinde ao renascimento
da herdade e do solar Vila de Ló?
- Com
muita, mas mesmo muita vontade eu brindo a essa nova vida - disse António
Avilar.
À pequenina adega foi o padre José Soares
buscar uma esquecida garrafa de vinho do Porto. O pó de alguns anos
transformara aquele vinho num maná do céu. Só um néctar assim era digno de
selar uma aliança como aquela, por uma tão nobre causa.
Cálices
despejados, uma, duas vezes, na despedida o padre José Soares disse a António
Avilar:
- Vieste
aqui em busca de ajuda. Afinal que auxílio levas?
- Todo
senhor padre. O relógio da minha vida recomeçou a andar. É bom sentir-me vivo
outra vez. Obter do senhor padre a compreensão em relação à minha participação
no assalto, tornou-me mais leve. O fardo desapareceu. Ter ganho no senhor um
aliado na missão que aqui me retém, foi uma boa surpresa. Estou capaz de
revolver este mundo e o outro.
- E em
relação ao Bombarral?
- Para o
Bombarral eu morri há quatro anos. A Luísa não merece ser assombrada por um
fantasma. Não tenho condições para ser marido dela, nem de nenhuma outra.
Hei-de aprender a viver com isso. A sua benção senhor padre.
- Deus te
abençoe alma boa.
Já
a noite envolvia Alfeizerão. O padre ficou por momentos parado, a seguir com o
olhar o percurso daquele homem que já não podia divisar, pois a escuridão era
plena. Respirou o ar outonal. Que surpresas Deus revela aos homens. Qual o
sentido de tudo isto? Qual o sentido da existência de cada um de nós? Como era
possível que um desconhecido, protagonista daquela noite maléfica, viesse doze
anos depois a transformar-se na esperança de resgate do que era ainda possível
salvar. Que vida, que grandes privações, que excelente exame estava aquela
alma, aquele António Avilar a fazer!
Assim
reflectia o padre José Soares.
António
Avilar ia feliz. Caminhava de alma cheia. Sempre houvera afinal um ser humano
que lhe estendera os braços. Um homem que sofrera com o pecado da sua vida. E
perdoara-lhe. Agora, mais do que nunca, a consistência da sua vontade era
indestrutível. Chegara ao Alto da Estrada. A taberna do Ti Chico Bento ainda
estava aberta. Ouviam-se vozes e de uma pequenina janela saía uma luz mole,
alternada de sombras. O Ti Zé da Estrada, pela primeira vez em doze anos, ia
visitar o reino de Baco com um sorriso nos lábios...(em continuação, pág. 105- ex. XXXVI)
in QUANDO UM ANJO PECA
Março/1998
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