...Meu pai, porquê essa cara? –
perguntei eu, intrigado com a expressão do meu pai.
- Ó Joaquim, então, é o Conde D.
Rodrigo Corga.
- Sim, eu sei quem é. Mas porquê essa
cara?
- Tu vais a casa de um conde…
- Não meu pai, eu devo de ir a casa
de um doente. Já é tempo de essas coisas da nobreza irem sendo esquecidas e de
o deixarem de impressionar ainda tanto. Não é rapaz? – perguntei eu,
dirigindo-me ao moço.
- Pois que assim será, sim senhor –
respondeu o rapaz – mas o meu amo precisa do senhor doutor.
- Quem está doente?
- Ele mesmo – disse o jovem.
- Pois aguarda um pouco, que já te
acompanho. Enquanto esperas, vai lá atrás à cozinha das cocheiras, que a ti
Celeste te há-de dar alguma coisa para comeres e beberes e mais à tua mula.
- Obrigado senhor doutor – disse o
rapaz, que levando um sorriso a iluminar-lhe o rosto, logo se dirigiu para as
traseiras da nossa casa, levando a mula pela rédea.
Voltei
para dentro e dirigi-me ao consultório, munindo-me do que me fazia falta para a
consulta de um doente: o estetoscópio, ferramentas cirúrgicas e uma grande
variedade de fármacos, guardados em pequenos frascos de vidro que ia comprando
numa botica de Coimbra, fármacos esses que faziam parte da Farmacopeia Geral do
Reino – a Medicamentorum Sylloge, que fez parte de uma das disciplinas da
matéria médica, na Universidade de Coimbra.
O
meu pai seguiu-me.
- Tens que ir bem ataviado, Joaquim.
Faz a barba e leva a melhor roupa que tiveres.
- Meu pai, não me aborreça com esses
ditos. Se tem algum jeito o que vossemecê está a dizer?!
- Não tem jeito? Não julgues tu que
por o teu pai ser lavrador, não sabe reconhecer quando a vida nos dá uma
oportunidade de avançar. Esta visita que vais fazer ao senhor conde pode ser
muito importante para a tua vida de médico. O senhor conde é um homem com conhecimentos
importantes. Se gostar de ti, pode muito bem fazer com que o teu nome chegue
longe. E é importante que vás bem parecido.
- Meu pai, eu prefiro ver no senhor
conde apenas um doente.
- Quer dizer que tanto se te dá, como
se te deu, que o senhor D. Rodrigo Corga seja o doente que vais ver a seguir.
- Sim, meu pai. È isso mesmo.
- Tu não deves estar bom do miolo. Eu
sei onde queres chegar, porque não sou parvo. Mas segue o conselho de um
ignorante: não ponhas o raio da politica à frente da tua profissão.
- Meu pai, um homem sem convicções é
um trapo, um boneco. O meu pai repare no
que as sua palavras escondem, mesmo sem ter noção disso… que pelo facto do meu
próximo doente ser um conde, que o devo tratar com mais respeito do que trato
os meus outros doentes. É por isso que faz falta o liberalismo. Tem de haver
uma maior igualdade entre os homens.
- Olha Joaquim, eu muito melhor do
que tu conheço essas injustiças de que falaste, porque as tenho sentido na
carne. Toda a vida a fidalguia tentou mangar de mim, mesmo a fidalguia que não
tem um cruzado no bolso. A politica é uma coisa muito ordinária. Basta vermos o
que se tentou fazer há poucos meses com a Abrilada, em que o infante D. Miguel
teve a coragem de se virar contra seu próprio pai e rei. Mas não imagines tu
que, se algum dia o liberalismo vencer, os fidalgos vão acabar. Os fidalgos
nunca acabam. Mesmo que a monarquia venha a ser mais chegada ao povo, nunca irá
botar de fora os seus fidalgos. Os nobres continuarão a ser nobres e ricos, e o
povo continuará a ser povo e pobre. Toma tino nestas palavras que te eu disse.
Faz pela vida Joaquim. Foi para teres uma vida boa que te fiz médico, não para
andares por aí a espalhar ódios pelos fidalgos. Para eles eu pouco valho, mas
isso não acontece contigo, pois tu és médico. Todos os doentes te merecem os
maiores cuidados, mas os fidalgos exigem de ti uma vénia; e não penses que irão
ser os pobres que farão o teu nome chegar longe. Faz a barba a atavia-te como
deve de ser.
E
o meu pai virou-me as costas e foi-se embora...(em continuação, pág. 23- ex. X)
in ALMA DE LIBERAL
Junho/2009
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