O
mouro cavalgava a trote pela herdade. Era sem dúvida os olhos e os ouvidos do
Barreto Raposo. A sua atenção era quase completamente direccionada para os
trabalhadores de Alfeizerão. Ninguém na sua presença se podia sentir
indiferente. Mantinha o mesmo olhar de aço, um rosto sem expressão nem
indicador dos mínimos sentimentos. O Barreto Raposo valia-se dele para poder
aniquilar à nascença qualquer manifestação de revolta. E o sentimento de
revolta existia, adormecido numa hibernação contínua, mas pronto a explodir ao
menor sinal de ajuda, que tardava a surgir. O Barreto Raposo não era amigo dos
seus assalariados. Não conversava amistosamente com eles, como o fizera o
morgado Vitorino. Não era uma mão pronta a ajudar, como o fora o morgado
Vitorino. O Barreto Raposo era um tirano, um explorador. As gentes de
Alfeizerão sentiam que a presença do Barreto Raposo, na qualidade de
proprietário da herdade, estava apoiada por uma história com muito pouco
sentido. Que necessidade tivera o morgado em vender a herdade? Ao vendê-la, que
necessidade tivera em desaparecer na companhia de um dos filhos e do capataz?
Teria o assalto ao solar tido algum relacionamento com a venda da herdade?
Estaria o Barreto Raposo implicado no assalto? Todas estas perguntas estavam
sem resposta e andavam no ar havia doze anos. Mas o tempo tudo transforma. Até
mesmo os menos resignados ao desaparecimento do morgado, já davam mostras de
aceitarem a situação como definitiva. A imagem da presença forte e sempre bem
saudada do capataz José Chambão, cavalgando por pastos e terras de cultivo, já
praticamente caíra no esquecimento de todos. Iam-se habituando ao deambular
maléfico do novo capataz, o mouro.
Regressava
este de mais uma ronda que fizera aos locais onde os homens suavam o rosto, no
esforço de pedirem o pão à terra. Continuava a ostentar a visão terrífica da
sua cimitarra. Ele era só um contra um monte deles. Ria-se do seu poder.
Conseguira
amedrontá-los a todos. Conseguira também a casa que fora do outro capataz, o
mesmo que ele mandara para o inferno. Habitava nela, na companhia do verruga.
Aquilo sim era vida. Desconfiava que até mesmo o patrão o temia. Dava-lhe tudo
que ele pedisse. Um bom patrão e muitos homens a quem podia provocar medo!
Havia coisa melhor?
Ao
passar no casario trabalhador despertou-lhe a atenção uma casa. Dela chegavam
aos seus ouvidos sons de choro e gargalhadas. Parou o mouro e desceu do cavalo.
Aquela era a casa daquela mulherzinha com cabelo vermelho que andava vestida de
preto. Estava intrigado o mouro. Só conhecera tristeza naquela casa. De repente
tantas gargalhadas?! Alguma coisa haveria. Não que isso prejudicasse a produção
da herdade, mas que o patrão gostava de saber de todas as alegrias e tristezas
dos que trabalhavam para si, lá isso gostava. E ele mouro, aplicava-se a fundo
a descobrir todos os segredos. Essa era uma das formas de ganhar a estima e
consideração do patrão. Mas poucas novidades haviam. A vida daquela gente era
pobre demais para terem tempo para segredos. Mas que naquela casa havia
história, lá isso havia...(em continuação, pág. 107, ex. XXXVII)
in QUANDO UM ANJO PECA
Março/1998
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