sexta-feira, 26 de julho de 2013

UM RAPAZINHO DAS PROFUNDEZAS DO NILO

...Vamo-nos deixar de evasivas. Tu, na qualidade de Sumo Sacerdote de Amon-Rá, tens a obrigação de rapidamente assimilares esta informação, de a compreenderes e de a guardares em profundo sigilo.
- Sim… compreendo… MassiftonRá… o local onde vivem os deuses- dizia Masahemba, enquanto endireitava o tronco, na tentativa de melhor compreender, de uma assentada, o que naquele momento lhe fora transmitido e de que ele nunca ouvira falar.
-É assim tão difícil para ti aceitares a ideia de que os deuses também têm direito a viver em algum lugar?
- Não, claro que não; só que nunca pensei que os deuses tivessem necessidade de algo tão primário como isso.
- Os homens foram feitos à semelhança dos deuses. Isso determina que exista uma certa reciprocidade entre os homens e os deuses. Um homem é um deus numa escala muito, muito reduzida. Mas nos deuses alguns traços têm semelhanças com os homens; e a necessidade de se ter a sua casa é um deles. Mas já perdi imenso tempo.
- Como é que te chamas?- perguntou Masahemba, com a incredulidade estampada no rosto.
- Eu não tenho nome. Eu não me chamo, eu sou um sifto. Fora da água tomo esta forma, pois as missões de que sou incumbido baseiam-se sempre no bem, tal como no bem vivem as crianças. Mas estou aqui numa missão muito especial.
- Sim, está bem, mas eu gostaria de saber…
- Ouve Masahemba- disse o sifto, interrompendo o Sumo Sacerdote- já reparei que estás extremamente curioso em relação à estrutura social dos deuses, estrutura essa que tu desconhecias existir. Mas a tua curiosidade não te leva a questionares-te porque razão aqui me encontro?
- Sabes rapazinho, tu és de tal forma misterioso, que na verdade eu apenas me sinto maravilhado perante a tua presença. Mas já que fizeste essa observação, penso que a tua presença terá algum significado para mim. És uma dádiva dos deuses?
- Não, não sou uma dádiva. Sou um aviso, um alerta!
- Um aviso?- perguntou Masahemba intrigado.
- Um aviso vindo directamente de Amon-Rá.
- Amon-Rá, o meu divino mestre?
- Exactamente. Amon-Rá avisa-te de que corres um grande perigo. Neste preciso momento decorre uma reunião no palácio do faraó, em que está a ser decidido que tu vais passar à condição de prisioneiro, como tal, escravo.
- Mas porquê? Que fiz eu de errado? Já percebi que o faraó não simpatiza comigo, mas daí a transformar-me em escravo?!
- O que fizeste de errado foi seres o Sumo Sacerdote de Amon-Rá.
-Como?
- É isso mesmo que ouviste. Por um lado o faraó não aceita que tu, um estrangeiro, ocupes um cargo tão elevado como o de Sumo Sacerdote do deus supremo. Por outro lado, o faraó abandonou o culto a Amon-Rá, por ter sabido que o deus supremo não aceita que Nefertiti, a sua sacerdotisa, venha a ser rainha do Egipto. Por essas razões o faraó decidiu encerrar este templo e enviar-te para o nível mais baixo da estrutura social dos homens- a escravatura. Mas Amon-Rá não aceita que isso te aconteça. És demasiado querido para o deus supremo, para que te veja transformado num escravo. Por isso tens de abandonar este templo ainda esta madrugada.
- E vou para onde?
- Recorre a toda a tua capacidade de sobrevivência e astúcia, para escapares ao rancor que o faraó nutre por ti.
- Terei a protecção de Amon-Rá?
- Na medida do possível.
- Na medida do possível? A vontade do faraó é mais forte do que o poder do deus supremo?
- Amon-Rá é senhor na espiritualidade. No que diz respeito ao ambiente dos homens- o factor material, o deus supremo pouco pode fazer. Dar-te-á o apoio que lhe for possível oferecer-te.
- Então se eu for apanhado, espera-me a miserável condição de escravo, e Amon-Rá não terá meios de me resgatar, é isso?
- Não te posso responder peremptoriamente a essa questão, Masahemba. Acho que algo o deus supremo poderia fazer, mas decerto que, essencialmente, terias de contar quase exclusivamente contigo mesmo. Mas para evitar essa situação é que eu fui enviado. Tens ainda algum tempo. Para onde fores, eu acompanhar-te-ei. Amon-Rá precisa de saber exactamente onde te vais esconder.
- E eu sei lá!!
- Procura em ti esse conhecimento. Amon-Rá tem a total certeza de que a indomável força dos reinos do sul, adormecida em ti, vai despertar e dar-te a resposta.
- Bem, sendo assim- dizia Masahemba, reflectindo, enquanto olhava em todas as direcções- quando o faraó entrar no templo e me não encontrar, logicamente me irá procurar no exterior. Se eu estiver escondido no interior do templo, ele não me encontra, certo?
- Certo. E esse esconderijo existe no templo?- perguntou o sifto.
- Espero que sim, acho que vai ter a capacidade de iludir o olhar observador do faraó.
- E onde é?

- Vamos para lá- disse Masahemba, começando a dirigir-se para o tanque sagrado...(em continuação, pág. 48, ex. XVI)

in A Causa de MassiftonRá
Novembro/2005

domingo, 21 de julho de 2013

I JANELA DO MEU PAÍS- AVEIRO

Em Aveiro, a um canto da Europa, numa pequena feira de artesanato, sob a sombra de velhos eucaliptos, África reflecte.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

A PERSPECTIVA DE UM FOSSO DESCOMUNAL

...-         È isso mesmo rapaz- retorquiu o pai de Serôdio- um homem enrascado è pior do que sei lá o quê!
-         Tu falas muito bem, mas o Serôdio está aqui está a acabar a tropa. E depois?
-         Depois- disse D. Silvina-  depois alguma coisa se há-de arranjar. Os amigos servem para as ocasiões e eu tenho a certeza de que ainda existirão amigos do meu marido, que a meu pedido poderão arranjar um emprego interessante para o Serôdio.
-         Eu agradeço a sua disponibilidade D. Silvina, mas com um pouco de sorte vou resolver o meu próprio problema- disse Serôdio convictamente, dando assim a entender que tinha encontrado uma solução. Por isso o pai perguntou-lhe:
-         Mas então tens alguma coisa em mente?
-         Sim pai, tenho. Vou concorrer à PSP!
-         Vais o quê?- perguntou a mãe de Serôdio, com uma expressão facial que demonstrava estar-se a sentir escandalizada.
-         Vou tentar entrar na Policia de Segurança Pública.
-         Ai meu Deus... Serôdio, não faças uma coisa dessas- dizia D. Amélia- tu mereces coisa bem melhor do que isso...
-         Mãe, è um emprego do Estado. Eu não estou em condições de ser esquisito.
-         Manuel, vê se tiras esta ideia da cabeça do teu filho- suplicava D. Amélia ao marido.
-         Sabes qual è o tipo de serviço na PSP e quais as pessoas que lá estão nos quadros, não sabes?- perguntou o senhor Manuel ao filho.
-         Sei pai!
-         Tu já és um homem, Serôdio. Pondera bem antes de te decidires, porque depois será tarde para te arrependeres- continuou o pai de Serôdio.
-         Qual è a tua opinião sobre a minha ida para a policia?
-         Não fico a saltar de alegria, tal como a tua mãe. O serviço que a policia desempenha não è nada simpático, e depois ver-te misturado com homens sem nenhuma formação, vai-me custar muito.
-         Mas pai, se a nossa sociedade está a evoluir, obrigatoriamente que a evolução há-de chegar à Policia de Segurança Pública.
-         Evolução? Com aqueles basbaques? Eu bem sei o que senti quando tive de ir à esquadra por causa do que te aconteceu- dizia D. Amélia- parecia que tinha entrado num antro de estupidez. Só via homens de aspecto rude, grosseiros, a olharem para nós. Aqueles serão incapazes de evoluir.
-         Esses talvez não evoluam, mas outros que virão a entrar, tal como o Serôdio...- disse por sua vez D. Silvina- eu apoio o Serôdio nesta sua decisão. A falta de emprego, hoje em dia, è muito grande. Isso fará com que os quadros da policia sejam preenchidos com pessoas mais capazes.
-         Para a admissão ao curso não tenho que ter grandes preocupações, pois apenas preciso de prestar provas físicas, já que estou isento das provas escritas.
-         E porquê- perguntou D. Amélia.
-         Porque tenho habilitações demasiado altas para o nível mínimo exigido, que è a quarta classe, como sabem.
-         És quase considerado um doutor- disse D. Silvina sorrindo.
-         Se realmente vier a fazer parte dos quadros da PSP, empenhar-me-ei para melhorar a imagem da corporação. Já que me vão pagar um ordenado, è o mínimo que posso fazer em retribuição.
-         Talvez tenhas razão. È possível que a policia evolua- disse o senhor Manuel.
-         Pai, alguém tem de fazer aquele trabalho. A segurança è indispensável à estabilidade de qualquer país. Um dia, o nosso governo terá de apostar no serviço e nos homens da Policia de Segurança Pública.
-         Amélia, teremos de nos conformar. Um filho policia não será assim tão mau.
-         Está calado homem, não me digas nada. Sonhava vê-lo médico. O destino desfez esse sonho e agora quer vestir ao meu menino uma farda cinzenta. De médico a policia vai um fosso enorme.
-         Mas nas suas fileiras, a policia terá homens cujo valor os poderia um dia ter levado a tirarem um curso de medicina, e que têm opinião formada sobre a vida. Deixarão assim de existir na policia apenas homens desprovidos de qualidades, tais como a moral, a solidariedade, o respeito pelo seu semelhante, qualidades essas que enobrecem o espirito humano e que realmente fazem falta à nossa policia. Vai Serôdio, enverga aquela farda e sê dos primeiros a dar um sopro de mudança à Policia de Segurança Pública. Vai descansado, que os teus pais terão orgulho em ti.
De médico a policia vai na realidade um fosso descomunal. Serôdio teria oportunidade de sentir a dimensão desse fosso, fosso esse que se viria a revelar num imenso vale, onde numa das encostas, banhada por um auspicioso dia de sol, lugar de sonhos, êxitos e direitos cívicos, estava a figura fictícia de um Serôdio doutor, brilhante, inchado pela importância que lhe era atribuída pelo sistema social. E como um vale tem obrigatoriamente duas encostas, na outra, sombria, votada a um permanente céu cinzento, carregado de nuvens de má fé social, se encontrava a figura real de um Serôdio policia, baço, desprezível e desprezado, humilhado por um sistema social, que irresponsavelmente o considerava um mal necessário.
Pobre Serôdio, tivesse eu te conhecido a tempo...(em continuação, pág. 72, ex. XXIII)

in FILHOS POBRES DA REVOLTA
Março/2003




sexta-feira, 12 de julho de 2013

POVO PORTUGUÊS...UM PERIGOSO CARRASCO

Ontem, dia 11 de Julho de 2013, as minhas fibras democráticas foram violentadas…as fibras democráticas que ainda resistem a este ambiente virulento que mina o nosso estado democrático.
Via na televisão um resumo de uma sessão da Assembleia da República, que discutia a restruturação da função pública, quando das galerias subiu um grito de desespero que pedia «demissão». Uma palavra de ordem gritada do fundo da alma de quantos ali marcavam presença, os verdadeiros representantes do povo naquela assembleia. Lançaram papéis para cima dos deputados. A presidente da Assembleia da República, Assunção Esteves, a segunda figura na hierarquia do Estado, logo a seguir ao Presidente da República, mandou evacuar as galerias. Até aí nada a opor. O que veio a seguir é que foi moralmente deplorável. Assunção Esteves, com a voz embargada, vestindo a roupagem de vítima, qual injustiçada a subir ao cadafalso, tomou a palavra, dirigiu-se aos deputados e disse-lhes que não temessem…não tinham sido eleitos para serem desrespeitados, nem ofendidos, e que não podiam deixar que os seus carrascos lhes dessem maus costumes.
A presidente de uma assembleia que representa o povo, considerou o povo seu carrasco.
O povo deveria ter o poder de ser o carrasco político de tantos e tão maus políticos, porque, possivelmente, se assim fosse, talvez muitos dos nossos problemas se resolvessem.
No cimo da sua altivez e de toda a sua competência que a levou áquele cargo, no cimo da sua muito difícil vida, não teve a presidente da assembleia da república a sensibilidade para perceber os dramas que obrigaram aquele povo a manifestar-se da forma como se manifestou.
Para chegarmos ao estado da nação a que chegámos, em que andamos, pelo conjunto de razões políticas e de competência postas em prática, a mendigar, e a dar satisfações á troika invasora, somos forçados a concluir que a Assembleia da Republica, caso tivesse estado de portas fechadas, não se sentiria a diferença.

Em Portugal, um povo de sangue na venta precisa-se.

sábado, 6 de julho de 2013

RETROSPECTIVAS DE MOMENTOS PORTUGUESES, Á MESA, NUMA SALA AFRICANA

...Ao chegar a casa, na Viela da Fonte dos Amores, recebeu a boa notícia de que nesse Sábado iriam todos jantar à casa Lobito de Benguela, com a sua querida amiga D. Silvina e o Armando, aquele inestimável amigo negro. E era assim que na sala africana todos se encontravam à mesa, falando com alegria. Dizia D. Silvina:
-         Há quanto tempo estás na tropa, Serôdio?
-         Estou há dez meses. Daqui a seis venho-me embora.
-         A tropa è boa?- perguntou a senhora.
-         Penso que em tempo de guerra a tropa deve ser uma coisa muito má. Em tempo de paz a tropa è apenas maçadora. Para aqueles que têm a mesma idade que eu, mas têm postos superiores ao meu, a tropa deve ser muito melhor do que a minha. Agora para mim, que não tenho posto nenhum, que recebo ordens de toda a gente, a tropa è mesmo muito maçadora.
-         Recebes ordens de toda a gente porque eles são uns estúpidos- declarou a mãe de Serôdio.
-         Mãe, eu efectivamente não consegui fazer os testes que eles me puseram à frente. Como podia eu aspirar a ser oficial com nota zero?
-         Mas eles deviam ter compreendido a razão da tua incapacidade.
-         Na tropa, ou è ou não è- disse o pai de Serôdio- no caso do nosso filho«não foi», e ele foi para soldado raso. E então? Eu também fui soldado e ainda aqui estou.
-         Mas senhor Manuel, o seu filho chegou a estar no curso dos oficiais. Deve-lhe ter custado um bocado!
-         Sim, acredito, mas a vida tem de continuar. E sei de alguns casos, em que conhecidos meus foram oficiais na tropa e depois deram em miseráveis na vida civil. E outros foram soldados na vida militar e conheceram a prosperidade na vida civil- disse o pai de Serôdio, disfarçando a mágoa que sentira pelo que sucedera ao filho em Mafra.
-         Como vai a tua memória Serôdio?- quis saber D. Silvina.
-         Tenho-a obrigado a funcionar. Preocupo-me em ler bastante. Estou a melhorar. E o seu sobrinho Narciso, por onde anda ele?- perguntou Serôdio subitamente.
D. Silvina teve um momento de silêncio. Um certo desconforto instalou-se na sala.
-         O menino Narciso è quase um doutor- respondeu Armando com uma expressão de fadiga.
-         Porque è que te lembraste agora do meu sobrinho?- perguntou D. Silvina.
-         Porque nunca mais ouvi falar dele. Ultimamente tem-me vindo à memória.
-         O Narciso está a tirar um curso de Inglês numa universidade do Norte. Acho que lhe falta só um ano para acabar esse curso.
-         Tem falado com ele?- perguntou Serôdio.
-         Tento evitá-lo- disse a senhora- depois do que se passou nesta sala, naquela noite, nunca mais tive grande vontade em lhe falar. Um sobrinho que me tentou assaltar e se calhar até mais do que isso, não fosse a tua oportuna intervenção, não me merece qualquer consideração. O meu irmão já reparou que eu não tenho grande estima pelo filho, por isso a nossa relação já conheceu melhores dias.
-         Mas então o seu irmão não compreende os seus motivos?
-         Compreende! Tanto compreende que quando o Narciso confessou o assalto, o meu irmão mandou-o  de castigo para a campanha do tomate, em França.
-         Eu não sabia disso- interrompeu Serôdio.
-         Pois não Serôdio, ele foi para França no dia seguinte a tu teres sido violentamente agredido. Por lá passou as férias desse verão. Mas o que aconteceu, è algo que marca profundamente uma família. O meu irmão fala pouco comigo, mais por vergonha do que por outra razão. Os parâmetros de educação em que eu e ele fomos educados, estão muito distantes da acção que o filho dele cometeu em relação a mim. Eu sei que o meu irmão vive um dilema muito grande. Por um lado tem um filho a quem ama e a quem necessita de proteger, por outro lado tem-me a mim, que sou a sua única irmã, viúva. De certa forma ele sente que lhe mereço o seu carinho e o seu apoio. E eu fui vítima da má índole do seu filho. Na medida do possível, tento aliviá-lo desse tremendo peso, mas lá estão as severas regras morais do nosso pai a falarem mais alto. No entanto, a vida tem de continuar, não è assim D. Amélia?- interrogou D. Silvina, dirigindo-se à mãe de Serôdio.
-         È verdade, a vida sempre continua. O seu sobrinho Narciso já está encaminhado, agora o meu filho...
-         O teu filho não è doente nem aleijado- interrompeu Serôdio...(em continuação, pág. 69, ex. XXII)
in FILHOS POBRES DA REVOLTA

Março/2003