-
Há quanto tempo estás na tropa, Serôdio?
-
Estou há dez meses. Daqui a seis venho-me embora.
-
A tropa è boa?- perguntou a senhora.
-
Penso que em tempo de guerra a tropa deve ser uma
coisa muito má. Em tempo de paz a tropa è apenas maçadora. Para aqueles que têm
a mesma idade que eu, mas têm postos superiores ao meu, a tropa deve ser muito
melhor do que a minha. Agora para mim, que não tenho posto nenhum, que recebo
ordens de toda a gente, a tropa è mesmo muito maçadora.
-
Recebes ordens de toda a gente porque eles são uns
estúpidos- declarou a mãe de Serôdio.
-
Mãe, eu efectivamente não consegui fazer os testes que
eles me puseram à frente. Como podia eu aspirar a ser oficial com nota zero?
-
Mas eles deviam ter compreendido a razão da tua incapacidade.
-
Na tropa, ou è ou não è- disse o pai de Serôdio- no
caso do nosso filho«não foi», e ele foi para soldado raso. E então? Eu também
fui soldado e ainda aqui estou.
-
Mas senhor Manuel, o seu filho chegou a estar no curso
dos oficiais. Deve-lhe ter custado um bocado!
-
Sim, acredito, mas a vida tem de continuar. E sei de
alguns casos, em que conhecidos meus foram oficiais na tropa e depois deram em
miseráveis na vida civil. E outros foram soldados na vida militar e conheceram
a prosperidade na vida civil- disse o pai de Serôdio, disfarçando a mágoa que
sentira pelo que sucedera ao filho em Mafra.
-
Como vai a tua memória Serôdio?- quis saber D.
Silvina.
-
Tenho-a obrigado a funcionar. Preocupo-me em ler
bastante. Estou a melhorar. E o seu sobrinho Narciso, por onde anda ele?-
perguntou Serôdio subitamente.
D.
Silvina teve um momento de silêncio. Um certo desconforto instalou-se na sala.
-
O menino Narciso è quase um doutor- respondeu Armando
com uma expressão de fadiga.
-
Porque è que te lembraste agora do meu sobrinho?-
perguntou D. Silvina.
-
Porque nunca mais ouvi falar dele. Ultimamente tem-me
vindo à memória.
-
O Narciso está a tirar um curso de Inglês numa
universidade do Norte. Acho que lhe falta só um ano para acabar esse curso.
-
Tem falado com ele?- perguntou Serôdio.
-
Tento evitá-lo- disse a senhora- depois do que se
passou nesta sala, naquela noite, nunca mais tive grande vontade em lhe falar.
Um sobrinho que me tentou assaltar e se calhar até mais do que isso, não fosse
a tua oportuna intervenção, não me merece qualquer consideração. O meu irmão já
reparou que eu não tenho grande estima pelo filho, por isso a nossa relação já
conheceu melhores dias.
-
Mas então o seu irmão não compreende os seus motivos?
-
Compreende! Tanto compreende que quando o Narciso
confessou o assalto, o meu irmão mandou-o
de castigo para a campanha do tomate, em França.
-
Eu não sabia disso- interrompeu Serôdio.
-
Pois não Serôdio, ele foi para França no dia seguinte
a tu teres sido violentamente agredido. Por lá passou as férias desse verão.
Mas o que aconteceu, è algo que marca profundamente uma família. O meu irmão
fala pouco comigo, mais por vergonha do que por outra razão. Os parâmetros de
educação em que eu e ele fomos educados, estão muito distantes da acção que o
filho dele cometeu em relação a mim. Eu sei que o meu irmão vive um dilema
muito grande. Por um lado tem um filho a quem ama e a quem necessita de
proteger, por outro lado tem-me a mim, que sou a sua única irmã, viúva. De
certa forma ele sente que lhe mereço o seu carinho e o seu apoio. E eu fui
vítima da má índole do seu filho. Na medida do possível, tento aliviá-lo desse
tremendo peso, mas lá estão as severas regras morais do nosso pai a falarem
mais alto. No entanto, a vida tem de continuar, não è assim D. Amélia?- interrogou
D. Silvina, dirigindo-se à mãe de Serôdio.
-
È verdade, a vida sempre continua. O seu sobrinho
Narciso já está encaminhado, agora o meu filho...
-
O teu filho não è doente nem aleijado- interrompeu
Serôdio...(em continuação, pág. 69, ex. XXII)
in FILHOS POBRES DA REVOLTA
Março/2003
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