... Acabem com
essa discussão - atalhou o padre José Soares, pondo cobro àquela situação
difícil.
- É melhor.
Dias não faltarão- disse o mouro, que montando no cavalo abalou em direcção ao
solar.
- António,
tu queres pôr tudo a perder? - perguntou o padre.
- Não senhor
padre, mas não posso permitir que lhe faltem ao respeito. Este velhaco anda ao
cimo da terra sem prestar contas a ninguém. Ele tem de temer alguma coisa.
- Meu
rapaz, concentra-te na elevada missão que tens de cumprir. Ao desviares-te por
outros caminhos perdes discernimento e força espiritual, que tanta falta te
fazem.
- Mas
senhor padre, aquilo que tenho de fazer passa também por este mouro.
- Não
obrigatoriamente António. Contas saldadas com o Barreto Raposo, este desgraçado
e ainda o outro logo deixarão de ter voz activa.
- O senhor
padre bem que gostaria que as coisas fossem fáceis.
- Fáceis
não serão, eu tenho consciência disso, mas tentemos mexer na podridão sem nos
deixarmos infectar por ela.
- O senhor
padre José Soares sempre foi uma pessoa de muito bem - disse Lucinda, saindo
finalmente de uma espécie de estado hipnótico para o qual fora empurrada pela
atitude bruta e prepotente do mouro - nem enfrentando aquele malandro o senhor
padre deixa de ser calmo.
- Ouve
Lucinda, já alguma vez viste um homem nervoso resolver fosse o que fosse? Que
ganho eu com os nervos? A serenidade de espirito é uma óptima conselheira. Mas
temos coisas tão bonitas para conversar. Tu Lucinda, já conheces este homem?-
perguntou o pároco referindo-se a António Avilar.
- Claro, é
o “ Ti Zé da Estrada".
- Não
Lucinda, ele chama-se António Avilar. Com a tua precipitação nem me deste tempo
para eu te poder falar nele.
- Senhor
padre, o senhor vai falar de mim à Lucinda?
- Mas
afinal quem é este homem? - perguntou Lucinda com um semblante de curiosidade,
à mistura com uma grande dose de felicidade, como havia muitos anos não sentia.
- Lucinda,
este homem não é aquele desgraçado sem eira nem beira que todos julgam ser.
Como há pouco eu te dizia, o Leandro está vivo e se está um rapagão, a este
homem o deve.
Lucinda não teve palavras espontâneas
que lhe saíssem da boca para responder ao que lhe estava a ser anunciado. O seu
cérebro tinha de se preparar, tinha de compreender antes de tudo que aquele
pobre caminhante conhecia profundamente, de uma forma oculta, qual o destino de
um dos grandes pilares da sua vida - o pequenino Leandro. Medindo com o olhar
António Avilar, como que tentando avaliar capacidades escondidas, disse:
- Vocemecê
sabe onde está o meu Leandro?
- Assim é -
respondeu António Avilar - o seu Leandro, que me considera pai dele.
- Como?
- Lucinda,
rapariga, que outra coisa esperavas? - interveio o padre José Soares - o
Leandro saiu daqui com um ano de idade.
- E porque
è que vocemecê nunca me disse nada?- perguntou Lucinda a António Avilar.
- Ouça
Lucinda, eu ia lá imaginar que estivesse assim ligada ao rapaz?! Desconfiei,
quando pela primeira vez vi o Helder. Achei que eram muito parecidos. Por isso
fui ao Bombarral, de propósito, para confirmar as suspeitas. Afinal, eles são
iguais.
A estas palavras de António Avilar,
Lucinda começou a chorar. Eram lágrimas de alegria...(em continuação, pág. 111, ex. XXXIX)
in Quando Um Anjo Peca
Março/1998