...Eu estava em brasa, mas seguindo o
sábio conselho do meu pai, preferi ficar-me por ali, muito embora eu tivesse a
percepção de que não conseguira disfarçar a faceta liberal do meu ponto de
vista político. Olhei então para um relógio de parede, mais um, existente numa
das paredes da sala de jantar. Marcava oito horas. Queria sair dali o mais
depressa possível, tentando, no entanto, que o Conde de Cértima visse em mim o
seu médico e nada mais do que isso.
- São oito horas. Vossa excelência,
senhor conde, ir-me-á desculpar, mas tenho de me ir embora.
- Durma cá, doutor Joaquim Lopes.
Mando que a Maria do Carmo prepare um dos quartos de hóspedes.
- Fico muito agradecido a vossa
excelência, mas meus pais ficariam em cuidados. E ainda hoje quero estudar uns
apontamentos que tirei sobre uns desarranjos intestinais que afligem as pessoas
de um só lugar.
- Então mandarei que dois dos meus
homens o acompanhem. Os caminhos hoje em dia não são seguros.
- Agradeço a amabilidade, excelência.
E não me esquecerei das aplicações dos unguentos nesse braço.
E
pouco depois encontrava-me a subir para a minha caleche, tendo por companhia
dois fortes mocetões, cada qual no seu cavalo. A governanta Maria do Carmo
acompanhou-me até à caleche. Aproveitando o facto de tanto o conde, como o
filho, não se encontrarem ali, fiz uma pergunta à governanta:
- Senhora Maria do Carmo, poder-me-á
responder a uma pergunta?
- Se eu souber a resposta, lha darei,
senhor doutor – respondeu a governanta um pouco intrigada.
- É sobre a senhora D. Maria Clara.
- Que tem a filha do senhor conde? –
perguntou ela, com um semblante de relutância em falar sobre aquela bela
mulher.
- É precisamente isso que eu gostava
de saber. O que tem aquela bela senhora, que faz dela o rosto da tristeza?
- Talvez lhe não fizesse mal que o
senhor doutor a visse, um dia destes, com os olhos de médico.
- Não me pareceu que sofra de alguma
doença.
- Maleita é decerto. Talvez não seja
do corpo, mas quem sabe… talvez a palavra de um médico trouxesse a cura tão
desejada.
- Quer-me dizer que algo há!
- Boa viagem, senhor doutor. Que Deus
permita que venha a esta casa mais vezes – disse-me a governanta, fixando-me
bem nos olhos, dirigindo-se de seguida para a casa do seu amo.
Esta
pequena conversa com a governanta, trouxe-me a certeza de que algo existia
naquela casa, que fazia com que aquela esbelta mulher, Maria Clara, quase se
desvanecesse no seio daquela família.
Durante
toda a viagem pensei na Maria Clara. Apercebi-me então de que estava
completamente absorvido na imagem daquela mulher. Sorri para comigo mesmo. Em
Coimbra embeiçara-me por duas tricanas, aventuras que terminaram com tremendas
nódoas negras feitas por varapau de fútricas ciumentos. Mas, na verdade, ainda
não existira nenhuma mulher que tivesse retido a minha atenção. Talvez para
isso tivesse contribuído, em muito, a minha educação eclesiástica. Já ia sendo
tempo de os assuntos do coração me trazerem alguns afazeres. Os meus pais já me
haviam sondado sobre isso, tendo até adiantado nomes de raparigas, filhas de
outros lavradores. Mas ao homem não é dado o poder de comandar a sua vida,
muito embora ele julgue que sim. O ar cândido, belo e sofredor de Maria Clara
me havia impressionado, e acho que tinha despertado em mim algo que até ali
estivera adormecido.
Algum
tempo depois vim a saber que, após a minha saída, Pedro Corga, o filho do
conde, me considerou um perigoso pedreiro-livre, achando não ser benéfica a
minha presença naquela casa, dado eu me poder transformar numa má influência
para a sua irmã, que ele bem tinha reparado na intensidade com que eu a olhara,
tendo-lhe o pai respondido que ainda era o chefe daquela casa, como tal, eu
entraria ali como médico e nada mais do que isso; e caso eu tivesse outras
intenções, ele, à parte a idade que já tinha, ainda possuía autoridade para me
pôr no meu lugar e saber defender a filha de más influências.
Pedro
Corga, oficial do exército, era um homem de aguçado olhar e raciocínio
certeiro...(em continuação, pág. 38, ex. XVII)
in Alma de Liberal
Junho/2009
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