...O
casebre que servia de moradia a António Avilar encontrava-se ligeiramente mais
acolhedor, se é que este termo podia ter significado naquela pobreza. Lucinda e
o padre José Soares encarregaram-se de levar algum conforto àquelas paredes
feitas de desilusão. A enxerga velha e apodrecida fora substituída por uma
pequena cama já bastante usada, feita de ferro, pintada de branco, apresentando
aqui e ali o sobressair castanho da ferrugem. Um velho colchão de palha, ao
qual fora previamente mudada a palha, completava a cama. Três cobertores
castanhos com riscas transversais vermelhas, serviam para defender do frio o
corpo cansado do morador. Uma bacia branca, colocada num suporte próprio e um
jarro também branco, eram a maior utilidade e a única decoração daquele local.
Fora improvisada uma lareira a um dos cantos do casebre. Bem útil era. Atenuava
o frio que teimosamente entrava pelas frinchas existentes entre as velhas
tábuas que davam forma àquele abrigo.
Estava-se
em pleno Novembro. O Outono tornara-se mais frio. A noite envolvia todo o
casario trabalhador da herdade Vila de Ló. Através da escuridão plena
divisava-se o vermelho vivo e quente das brasas, que piedosamente na lareira
aqueciam o ar do pobre casebre. Lá fora o vento soprava forte e o céu molhava a
terra com chuva intensa, que abatendo-se sobre Alfeizerão, fazia a água
escorrer sobre o telhado da pobre habitação de António Avilar, criando bicas,
tantas quantos eram os regos côncavos formados pelas telhas.
António
Avilar dormia na velha cama. Dormia um sono agitado. Repentinamente acordou e
encontrou-se sentado na cama. O seu rosto fortemente barbado suava. Levantou-se
e tacteando com as mãos encontrou a caixa de fósforos que procurava. Acendeu a
vela de sebo e com o mesmo fósforo acendeu ainda um cigarro. Inalou
profundamente o fumo do tabaco. Estava deveras pensativo, incrédulo,
preocupado, confuso. Acabara de ter um pesadelo. Mas não fora um pesadelo
normal. Sentia que algo o avisara contra um perigo iminente. Um homem que ele
nunca conhecera, vestido de preto e calçado com botas de montar, surgiu-lhe
repentinamente quando ele trabalhava perto dos seis carvalhos. Agarrou-o por um
braço e velozmente, não compreendendo como, se dirigiram ambos para o solar.
Quando lá chegaram, o tal homem desapareceu e António Avilar ficou ali,
especado, observando uma daquelas coisas esquisitas com quatro rodas a que
chamavam automóvel, que ali se encontrava parado. Subitamente, por detrás do
automóvel apareceu o mouro, que logo montou naquela coisa, tendo-se esta de
imediato posto em movimento. O mouro berrava e com a cimitarra cortava o ar,
encetando uma feroz perseguição ao desgraçado do António Avilar. Este corria,
corria imenso, olhando de vez em quando para trás. Subitamente, da retaguarda
do automóvel surgiram soldados alemães que com as baionetas brilhantes ao sol
ajudavam na perseguição. António Avilar queria fugir para algum local seguro,
mas tudo se transformara num enorme deserto. Só existiam ele, o automóvel, o
mouro e os soldados alemães, que progressivamente se aproximavam. Nesse momento
o sol tornou-se também seu inimigo, ferindo-lhe os olhos e retirando-lhe força
às pernas para prosseguir a fuga. Caído no chão, sem protecção, viu horrorizado
o automóvel aproximar-se, tendo por ocupante o mouro, de olhos injectados de
ódio, clamando por sangue. Quando o automóvel estava prestes a alcançá-lo,
acordou...(em continuação, pág. 117, ex. XLIII)
in Quando Um Anjo Peca
Março/1998
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