...Dois dias depois regressei a casa do
Conde de Cértima. A aplicação atempada dos unguentos no braço dorido era
fundamental para que surtisse o efeito desejado. Ao reentrar naquela casa, tive
a perfeita noção de que, muito acima do médico, quem ali entrava era o homem,
pois os meus olhos procuravam avidamente a figura esbelta de Maria Clara.
A
governanta recebeu-me com o seu ar cândido, um semblante que denunciava também
o resgate de uma desculpa. O seu olhar não transmitia felicidade, antes uma
necessidade imensa de se encontrar consigo própria. Eu sentia-o, sem no entanto
o perceber. Aquela casa transmitia à existência feminina, ali presente, um não
sei quê de enigmático.
D.
Rodrigo Corga recebeu-me com a ânsia normal que o doente denota pela presença
do médico, em quem deposita a esperança da cura da doença que o apoquenta. Mas
era apenas isso. O nosso relacionamento baseava-se somente, pelo lado dele, na
necessidade de ser curado; e pelo meu lado, pôr em prática os meus
conhecimentos para curar. Da parte dele não tinha havido ainda uma palavra
calorosa, que denunciasse a vontade de querer conversar comigo, como homem. E
isso intranquilizava-me, pois tornava Maria Clara cada vez menos acessível.
Teria de tomar uma atitude, pela qual me fosse permitido entrar ali mais vezes
e de forma mais hospitaleira. Teria de saber ultrapassar a oposição a esse meu
anseio, que residia na pessoa do filho do Conde de Cértima. Ainda o não tinha
visto. Por isso, enquanto fazia a aplicação dos unguentos, perguntei:
- E o filho de Vossa excelência, o
senhor Pedro Corga?
- O meu filho já regressou aos seus
afazeres militares. Foi-se embora ontem à noite.
- E vai a cavalo até ao Porto?
- Não. O exército tem constantemente
em deslocação carruagens para transmissão de ordens e de outras questões
militares. Na Mala-Posta o meu filho tomou uma carruagem que saiu do Regimento
de Infantaria de Coimbra e foi para o Porto. Claro está que a esta
possibilidade de transporte apenas têm direito os oficiais. E bem se vê que a
arraia miúda não precisa dela, pois o seu burgo está sempre próximo do seu
regimento. Agora com os oficiais a história é outra. Não existem assim tantos e
têm de ser colocados onde é preciso; e ultimamente as movimentações da tropa
têm sido constantes. Isto de surgir no reino a ideia de que o poder não deve
estar apenas concentrado no rei, só trouxe problemas. E o que é mais assustador
é saber que o próprio rei aderiu a esses ideais. Como sabe, acabou por expulsar
o infante D. Miguel do reino, não se sabe muito bem qual o paradeiro da rainha,
a senhora D. Carlota Joaquina… e segundo diz o meu filho, tudo isso está a
provocar divisões no seio do próprio exército.
- Compreendo, excelência – disse eu,
sem levantar os olhos do trabalho que estava a executar.
- Diga-me doutor, e que mal lhe
pergunte, de que lado está?
- Excelência, se um rei souber ser
justo, se através da coroa que lhe adorna a cabeça tiver amor pelo seu povo,
não me faz diferença que o poder seja só dele. Afinal é Deus que lho confere...(em continuação, pág. 40, ex. XVIII)
in Alma de Liberal
Junho/2009
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