A Teresa,
uma simpática senhora de meia-idade, que na medida do possível ajudava o padre
José Soares, cozinhara para aquele almoço um suculento arroz pardo. Regado com
bom vinho tinto, o almoço estava divinal, ajudando assim a que a frigidez, que
a princípio existira entre os dois homens, acabasse por desaparecer.
- Aqui
nesta sala, muitas vezes almoçou comigo o morgado Vitorino- começou por dizer o
padre José Soares.
- O morgado
Vitorino, dono da herdade que o senhor Barreto Raposo comprou - acrescentou
Américo Afonso.
- Dono da
herdade que o Barreto Raposo ocupa- corrigiu o padre- parecem dizer os factos
que a comprou, mas eu recuso-me a acreditar nisso.
- E porquê?
- Porque
fui eu que eduquei o Vitorino. Eu era o seu conselheiro. Ele não tinha intenção
de vender a herdade porque ela era a sua vida. Mas mesmo que tivesse intenção
de o fazer, tinha-me transmitido essa vontade. Essa venda, essa transmissão de
propriedade, foi forjada.
- Eu
concordo consigo senhor padre - disse o advogado - só numa situação de efectiva
instabilidade, como foi a república substituir a monarquia, é que esta venda
pôde ter lugar, através de um simples documento. Eu trago-o aqui copiado.
- Não me
diga! Conseguiu isso?
- Fui na
qualidade de advogado, tutor do pequeno Carlos.
- Esse é um
outro assunto delicado - disse o padre José Soares.
- Qual? -
perguntou Américo Afonso.
- O nome do
pequeno. Ele não se chama Carlos Avilar. O seu nome é Leandro Vital de Lourena
Fernandes.
- Como?
Leandro? Esta história é uma caixa de surpresas.
- E ainda
não acabaram senhor doutor. Se realmente defende os interesses do Leandro, não
pode ficar só por aí. Tem também de defender os interesses do irmão.
- Como
assim? - perguntou Américo Afonso, com semblante de grande confusão.
- O morgado
Vitorino tinha dois filhos, o Leandro e o Helder. São gémeos. Como pode
calcular, aqui em Alfeizerão, vive um rapazinho com treze anos de idade, que
deve ser uma réplica perfeita do Leandro. E digo deve, porque eu não vejo o
Leandro há doze anos. O senhor doutor, se quiser, poderá conhecer o Helder.
- Olhe
senhor padre, eu já não sei que lhe diga. A minha Luísa quando souber disto
tudo, não sei como reagirá. Será melhor nem lhe dizer nada agora. Está para
breve o nascimento do nosso filho. Mas diga-me senhor padre, o senhor Barreto
Raposo sabe alguma coisa sobre a existência das duas crianças?
- Não, este
é um segredo que Alfeizerão guardou muito bem guardado. Eu e a Lucinda...
- Quem é a
Lucinda?
- A Lucinda
está para o Helder como a D. Luísa está para o Leandro.
- Percebo.
E a mãe dos pequenos quem é?
- A mãe dos
gémeos foi a saudosa Marta. Morreu ao dá-los à luz.
- Meu Deus,
os miúdos estavam predestinados ao infortúnio- disse Américo numa reflexão
sentida - o senhor padre falava na Lucinda... (em continuação, ex. LIII)
in Quando Um Anjo Peca
in Quando Um Anjo Peca
Março/1998
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