...Dizia que
eu e a Lucinda esperávamos que o Hélder atingisse a idade adulta para o pormos
ao corrente dos factos. Ele decidiria o que fazer. Fosse o que quer que fosse,
teria o meu apoio.
- Mas,
suponho que isso não irá ser preciso?!
- É
verdade, a sua intervenção, senhor doutor, e a de mais alguém, estão a
antecipar as coisas.
- E esse
alguém é...
- O anjo de
quem eu há pouco lhe falava. Mas, por favor, não insistamos nesse ponto.
Mostre-me a cópia que fez do tal documento.
- Pois
então vamos a ele.
Américo Afonso levou a mão direita ao
lado esquerdo do casaco e do bolso interior retirou uma folha branca dobrada em
quatro. À visão daquela folha, o padre entrou numa excitação febril. Bem sabia
que aquele não era o documento original. Bem sabia que a mão que escrevera as
linhas ali representadas não fora a mão do morgado. Mas, acreditando na
competência e seriedade daquele advogado, tinha a certeza de que o que ali
estivesse escrito representava um atroz sofrimento, porque foram decerto das
últimas palavras que atravessaram a mente do seu querido Vitorino. Por isso, o
padre José Soares disse:
- O senhor
doutor tem a certeza de que o conteúdo deste documento corresponde
fidedignamente ao original?
- Em
absoluto. Só aí falta a assinatura do morgado Vitorino.
- Pois
vamos então tentar desvendar a verdade - e o padre José Soares iniciou a
leitura do documento.
“aos
quatro dias do mês de outubro de mil novecentos e dez, eu, vitorino de lourenço
fernando, declaro sob minha fé que vendo a minha herdade vila de ló, delimitada
a nascente por s. martinho do porto e a poente por alfeizerão, a norte por
salir do porto e a sul pelo vale paraíso, ao senhor barreto raposo. ao assinar
o documento, olho com esperança para a
base do armário onde guardo os livros. sem fé.”
As lágrimas romperam a capacidade de
disfarce do padre José Soares. Sempre que era obrigado a falar sobre o morgado
o seu amor próprio ficava destituído de significado, a dor feria-lhe a alma.
Imóvel, deixando as lágrimas correrem livremente pelo rosto, fixava aquelas
palavras. A pequena frase final “sem fé” era tão triste, tão vazia, tão
sofrida...(em continuação, ex. LIV)
in Quando Um Anjo Peca
Março/1998
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