sexta-feira, 5 de abril de 2019

DEMOS À SOLTA ENTRE DOIS DÓRIS, NAS ÁGUAS GELADAS DA TERRA NOVA


...O bacalhau hoje não quer nada contigo ó Mário.
- Quando comecei a lançar o trol tive a primeira guinada na barriga. Acho que não lancei nada de jeito. Os anzóis devem-se ter embrulhado uns nos outros. O capitão vai dar cabo de mim.
- Vamos puxá-lo para ver como está e vou-te levar ao navio.
- Não Manel, que o homem dá cabo de mim.
- Dá nada! Se o trol estiver emaranhado põe-se direito. Tu não estás em condições de nada.
         E o Manuel da Benta amarrou os dois botes um ao outro, saltou para o dóri do amigo e começou a puxar o trol, o que fez com a maior das facilidades, pois que efectivamente os anzóis haviam-se embrulhado uns nos outros.
         Subitamente Mário Carvalho foi acometido por uma dor lancinante nos intestinos, evacuando pelas pernas abaixo.
- Eu estou-me a cagar todo…estou-me a cagar todo- gritava.
- Tira as calças depressa e caga à ré- dizia Manuel da Benta na ânsia de ajudar o amigo.
         Enquanto Mário Carvalho se espremia, depois das calças tiradas, e de rabo ao léu, Manuel da Benta, pela outra borda do dóri passava as calças pela água do mar.
         Porra, que estava mesmo gelada.
         Manuel da Benta foi ao seu dóri buscar uma manta, que trazia guardada num pequeno habitáculo do minúsculo barco, para prevenir um camadão de frio maior, e com ela cobriu o seu amigo.
- Senta-te aí que eu vou levar-te ao lugre. Além de estares desarranjado da barriga, estás aqui estás a morrer de frio.
         O outro pescador não disse nada. Simplesmente se submeteu à vontade do amigo. Nada mais havia a fazer. Aquele era daqueles dias em que o estupor do inferno abria as portas, soltava todos os demos…e um deles vira-o. Raios partisse aquela sorte.
         Manuel da Benta, agarrando-se ao seu par de remos, energicamente remou em direcção ao lugre deles, o Senhora do Pranto, que estava ali a uns quinhentos metros, rebocando o seu amigo Mário Carvalho e o respectivo dóri.
         Nos anos verdes da juventude não havia coisa nenhuma que metesse medo a um homem. Em pouco mais de vinte minutos estava junto ao navio. À amurada já se encontrava o capitão do lugre, que se apercebera da aproximação estranha daqueles dois dóris.
- Então, que temos?- perguntou o capitão lá do cimo.
- Senhor capitão, o Mário Carvalho está bastante doente. Não pode estar aqui assim. Já se cagou todo.
- Ó raio, depois tem de lavar o dóri. E claro, quem não trabuca não ganhuca.
- Todo o peixe que eu apanhar hoje é a contar para ele. Não há problema, pois não?
- E quem é que limpa esse peixe?
- Sou eu- respondeu o Manuel da Benta.
- Se é assim, está bem. Tu é que sabes. Se queres assim, o ganho é dele. Icem o dóri e ajudem a subir o Mário Carvalho- gritou o capitão. E foi-se embora.
         Todo o bacalhau que Manuel da Benta pescou naquele dia, e foi muito benzesse-o Deus, foi todo a contar para o rol do Mário Carvalho, o seu bom amigo.
         Mário Carvalho podia ter muitos defeitos, mas o da ingratidão não era por certo. Por toda a sua vida não mais esqueceria aquele gesto amigo do seu companheiro de faina, o Manuel da Benta. (em continuação, ex. II)
in Nas Arestas da Terra e do Mar



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