A
partir dos meus catorze anos, sem que desconfiasse que a vida me preparava a
separação da minha cidade, comecei a sentir profundamente Coimbra. Por isso as
minhas deambulações pela cidade eram constantes, e não se limitavam apenas ao Bairro da Cumeada, onde morava, em Santo
António dos Olivais. E quando falo deambular por Coimbra, não me refiro por
toda a Coimbra, pois que a velha Aeminium é já uma cidade de dimensões
consideráveis, mas pelos seus pontos mais nevrálgicos: a Praça da República e o
café Mandarim; o Largo da Sé Velha e o café Oásis; a Portagem e o café A
Brasileira; toda a baixa da cidade e o café Bocage, perfeitas artérias por onde
corria o sangue e tradição coimbrã. E mesmo as salas de cinema que citei faziam
parte desse sentir coimbrão, pois que o conimbricense via o cinema de uma forma
muito peculiar. E para ir a tanto lado usava preferencialmente um transporte
público de que tenho muitas saudades: o eléctrico. Que saudades tenho dos
velhinhos eléctricos. Já era profissional, eu e os outros, a sair do eléctrico
com ele ainda em andamento. Sair do eléctrico com ele parado, era coisa de
velhos. Um risco enorme, pois que um descuido, um tropeçar inesperado, e o
nosso mandar o corpo para a frente com ele inclinado para trás e com as pernas
preparadas para darem passos rápidos abruptamente, ao receber o choque de pisar
o chão com o corpo ainda balanceado com a velocidade do eléctrico, poderia
transformar-se no desastre, o que nunca aconteceu a ninguém. Éramos bons!
Essa
maluquice e outras eram fruto da nossa irreverência, natureza inerente aos
primeiros anos da adolescência. E porque éramos muito jovens não tínhamos ainda
assimilado o significado do termo «fascismo». Aliás, esse era um termo que
nunca tínhamos ouvido. Tínhamos consciência de que não podíamos dizer tudo o
que nos apetecia. Sabíamos perfeitamente que a Pide era uma policia que ia
buscar pessoas a casa. Mas não sabíamos avaliar muito bem a diferença entre nós
e um país livre e democrático, porque não conhecíamos outra realidade e também
nunca tínhamos ouvido o termo Democracia. Ouvíamos falar em surdina que este ou
aquele, alta noite, em sótãos isolados, recheados de tralha velha, com um rádio
muito baixo, ouvia emissões da BBC, mas não percebíamos muito bem que mensagem
passava nessas emissões, e não tínhamos quem nos explicasse, porque os nossos
pais não o faziam porque não tinham conhecimentos para isso, ou então porque
não se queriam expor, já que naqueles tempos «até as paredes tinham ouvidos».
Sabíamos bem que decorria uma guerra no ultramar. Ainda não tinham passado
muitos anos desde a altura em que eu fora doutrinado na Mocidade Portuguesa,
onde me fora incutido que Portugal começava no Minho e terminava em Timor.
Quando entrei para a escola primária, em 1962, a guerra do ultramar eclodira no
ano anterior. Por isso, na escola aprendíamos que os nossos soldados iam para
África defender a nossa pátria. E aproximava-se rapidamente a altura de eu
também o ir fazer. Assim, a minha realidade ainda não tivera tempo de
percepcionar a real verdade das palavras. E muito por força do facto de eu não
passar necessidades.
Exceptuando
aquele ano tortuoso de 1969, a minha vida tinha sido composta de relativas
facilidades. A necessidade muitas vezes dá origem à politização. Ouvia com
frequência «as conversas em família» do Marcelo Caetano na televisão mas pouca
ou nenhuma importância lhe ligava; tivera consciência da crise académica de
1969, sem no entanto lhe ter percebido bem o sentido. Ouvira falar no
«Tarrafal», mas não sabia ao certo o que era, porque o termo «preso político»
nunca tinha chegado aos meus ouvidos. Ainda não tinha maturidade suficiente
para sentir que a minha liberdade de expressão estava mutilada, porque o
conteúdo da minha expressão ainda não ia além do amor livre e da Académica, não
entrando, pois, em colisão com os ditames do regime.
25
de Abril de 1974
Mas naquela manhã, a cinco dias de eu
completar os meus dezoito anos, tudo mudou.
Tal como em todas as manhãs saí de casa
por volta das oito menos um quarto em direcção ao Liceu D. João III. Todas as
manhãs passava nas imediações do quartel da GNR na Avª Dias da Silva. Naquela
manhã achei que as coisas não estavam, na verdade, iguais. Existiam mais homens
por ali, e sentia-se que estavam mais agitados. Ao chegar ao liceu existia no
ar também agitação. Viam-se muitos professores pelos corredores. Perguntei a um
colega se se passava alguma coisa. Respondeu-me que havia um problema qualquer
em Lisboa. Dirigi-me para a sala de aulas onde já se encontravam alguns dos
meus colegas, os mesmos do caso da Mofina Mendes, que mais nenhumas informações
puderam acrescentar. Tocou para a entrada. Do professor…nada. Passaram-se os
minutos e deu o segundo toque. O professor continuava a não aparecer. Passados
mais uns minutos, quando já nos preparávamos para sair da sala, lá apareceu o
professor que nos ia dar a aula, numa enorme agitação.
Entrou e mandou-nos sentar. Depois
disse-nos que ia ser breve. Não iam haver aulas, porque estava a decorrer em
Lisboa um Golpe de Estado. Disse-nos que muito provavelmente o regime fascista
iria cair. Perguntámos-lhe o que era o regime fascista. Ficou admirado de não
sabermos. Dissemos-lhe que nunca ninguém nos tinha falado nisso. E o professor
explicou-nos. E naquela minha primeira sessão de esclarecimento, que durou
cerca de meia-hora, percebemos bem em que tipo de regime vivíamos, e o motivo
pelo qual se estava a dar aquele Golpe de Estado. Ficámos a saber que existiam
em Portugal muitas prisões de presos políticos, e que a do Tarrafal, no
arquipélago de Cabo Verde, era a principal. E entendemos então que a guerra do
ultramar mais não era do que a luta de povos pela sua liberdade, e que nós
éramos os opressores, e que Angola, Moçambique, Guiné, S. Tomé e Príncipe, Cabo
Verde, Macau e Timor, não eram nada Portugal. E que a pide era uma polícia
política, que torturava pessoas para preservar a continuidade do regime
fascista. E que o que se ouvia na rádio, altas horas da noite, transmitido pela
BBC, uma rádio democrática, era a denúncia do que se ia passando em Portugal. E
que a censura era uma coisa anormal, inimiga da criatividade e da verdade,
característica apenas de regimes ditatoriais. E que um dos objectivos
principais do Golpe de Estado era o de terminar imediatamente com a guerra do
ultramar, além de erradicar o totalitarismo e implementar uma democracia.
Foi uma meia hora intensa, talvez a mais
intensa de toda a minha vida. Saímos da sala de aula com uma visão
completamente diferente de tudo. Percebíamos agora que em Lisboa se lutava por
deixarmos de ser quem tínhamos sido até ali. Percebíamos agora a preciosidade
daquela manhã, em que a vida nos dava o privilégio de estarmos a viver uma
revolução, tal como as tinham vivido os portugueses de 1910, 1640 e 1383.
A manhã foi decorrendo sob uma forte ansiedade.
Depois chegou a notícia de que tropas, vindas de Lisboa, marchavam sobre
Coimbra, porque o Governador Civil de Coimbra não se queria submeter aos
revoltosos. E quando houve a certeza de que Marcelo Caetano e Américo Tomás
haviam sido derrubados, alguém gritou que fossemos cercar as instalações da
PIDE/DGS. E aí, com o sangue a ferver de ardor revolucionário, um magote enorme
de estudantes do Liceu D. João III, onde eu me incluía, se lançou numa corrida
desenfreada em direcção à pide, cuja sede em Coimbra se localizava a cerca de
500 metros do liceu, na Rua Antero de Quental.
A sede da pide localizava-se numa espécie
de casa senhorial enorme, de arquitectura colonialista, com um jardim, rodeada
a toda a volta por um forte e alto gradeamento, junto à qual existia um largo.
Não muito longe encontrava-se o quartel general da Região Militar Centro. No
largo já existiam algumas pessoas, mas após a nossa chegada, rapidamente o
largo ficou super-lotado, com algumas centenas de pessoas ali existentes a
gritarem todo o tipo de ofensas, dirigidas aos agentes da pide que se sabia
estarem dentro da casa. Logo a seguir surgiram soldados do quartel vizinho,
amontoados em unimogues, sorridentes, a corresponderem aos vivas que lhes
enviávamos, e que, de certa forma, foram servir de segurança aos «pidescos». A
dado passo, alguém disse que um Ford Escort, novinho, vermelho, que ali se
encontrava estacionado, pertencia a dos agentes da pide, que se encontravam
refugiados dentro do seu «quartel-general». Eu, que há já uns dois anos que
sentia que no meu país se vivia sobre uma paz podre, pois que alguma coisa de
errado existia, muito embora ninguém nos elucidasse de nada, nem os nossos professores,
nem os nossos pais, tomado de um enorme sentimento de revolta por o meu país, tão
bonito, ser tão mal visto lá fora e por tratar tão mal muitos dos seus filhos,
e muito por culpa de homens como os que ali se encontravam escondidos, odiei
tremendamente aquele carro, porque odiava o seu dono, e possuído desse ódio, na
companhia dos meus colegas de liceu, violentamente nos atirámos ao carro,
começando a balançá-lo fortemente, a ponto de o termos conseguido virar de
rodas para o ar, para gáudio da multidão. O carro, que deveria ter o depósito
de combustível atestado, começou a fumegar e logo de seguida pegou fogo, pelo
que os soldados acudiram com extintores e o fogo foi logo apagado. O carro,
como se pode imaginar, não ficou com muita saúde.
E foi ali, naquele largo, mesmo junto ao
edifício da pide, que em Coimbra se deu o primeiro grito de liberdade. Não sei
se almocei nesse dia. Não me recordo a que horas é que fui para casa. Apenas me
lembro de ali ter estado muito tempo, de ter visto muitos soldados a chegarem
em berliets, com largos sorrisos nos rostos, levantando bem alto as G3, ao mesmo
tempo que o povo os recebia com palavras de ordem, comuns a todo o país, por
certo criadas e ordenadas por alguém, que diziam: «O POVO ESTÁ COM O MFA,
SOLDADO AMIGO O POVO ESTÁ CONTIGO, O POVO UNIDO JAMAIS SERÁ VENCIDO».
Depois, pelos dias fora, foi uma
permanente necessidade de acompanhar o curso dos acontecimentos pela televisão,
ao mesmo tempo que eu participava em enormes manifestações pela Baixa de
Coimbra, onde dava a sensação que o povo, porque era tanto, escorria pela
Visconde da Luz, em direcção à Rua da Sofia. E então tudo o que estivera
camuflado saltou para a ribalta: os Fortes de Caxias e o de Peniche, que nós
nem sequer sabíamos que existiam, abriram as suas portas e começámos a ver essa
espécie humana que de nós fora escondida- os prisioneiros políticos, a serem
libertados, com muitas lágrimas e abraços apertados. Ouvimos a expressão:
«Conselho da Revolução» a ser pronunciado, e claro, o eternamente belo MFA-
Movimento das Forças Armadas. Começámos a ouvir múltiplas histórias de guardas
da PSP a serem enxovalhados em plena rua; surgiu o termo «bufo», espécie de
homo sapiens português altamente nocivo à sociedade, que em tempos, por troca
de um ou outro favor, denunciava semelhantes seus à pide, como sendo perigosos
opositores ao regime.
E depois surgiram as canções de
intervenção, a primeira das quais havia ganho o Festival da Canção desse ano- E
Depois do Adeus, cantada pelo Paulo de Carvalho, que serviu de senha (viemos a
saber depois) para o arranque do movimento. Logo a seguir veio a Grândola Vila
Morena, do Zeca Afonso. O próprio Zeca Afonso tornou-se um herói nacional, com
a panóplia de músicas que compusera, que cantavam e denunciavam a escuridão do
regime fascista, canções que nós, até então, desconhecíamos. E sucederam-se
outros autores e intérpretes. E depois chegou o momento do país ficar a
conhecer os grandes Álvaro Cunhal e Mário Soares, exilados políticos, outra
expressão que ficámos a conhecer a partir daí. E um nome que a todos aconchegou
o coração- Salgueiro Maia, o grande Capitão de Abril, que comandou a coluna
militar que saindo de Santarém marchou sobre Lisboa, e que deu o peito às
possíveis balas em prol da possibilidade de uma revolução. E o Major Otelo
Saraiva de Carvalho que esteve ao comando das operações, num gabinete, em
Lisboa, e que mais tarde viria a comandar uma força militar que, durante algum
tempo, controlou todo o país- o Copcon. E o então capitão Vasco Lourenço, outro
muito famoso capitão de Abril, pela sua entrega ao Conselho da Revolução, e
que, ainda hoje, passados quarenta e cinco anos, me transmite esse ardor
revolucionário e me consegue mostrar ainda o rosto do 25 de Abril. E o General
Spínola, que viria a ser o primeiro presidente da república, em democracia,
depois do «corta-fitas» Américo Tomás.
E vimos todo o país ficar manchado de
encarnado, a mancha formada por milhares e milhares de cravos vermelhos, que
formaram um incomensurável tapete no caminho da liberdade.
in Prosas Pelas Janelas da Vida
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