«Nestas últimas semanas tem sido
um sério desafio falar de algo que esta pandemia não tenha afectado de forma
séria, ou que esta pandemia não nos faça reflectir sobre. Uma delas é
certamente a agricultura. No meio das nossas séries de Netflix, os resultados
do nosso clube, as viagens que fazemos para qualquer parte deste planeta, a
agricultura é (e sempre será?) a filha pobre da nossa sociedade.
É tão básica, dada como
adquirida e invisível como o ar que respiramos. E como em tudo na
nossa vida, como em tudo na nossa mente, só a sua falta ou dificuldade ao seu
acesso é que nos lembra que afinal ela não é nada básica, não é nada invisível
e nem pouco mais ou menos é um dado adquirido. E ela não se importa com isso.
Não pede reconhecimento, não luta
pelo reconhecimento da sua importância, não faz conferências de imprensa sobre
as injustiças de que é alvo. E então mais ainda se torna invisível.
Não é fácil encontrar uma
indústria que não sobe os seus preços quando a sua procura aumenta, e a sua
oferta tem dificuldade em aumentar. E impossível mesmo é encontrar uma
indústria onde esta pressão faz quebrar o produtor, em vez de o enriquecer.
Quando sai um telemóvel topo de gama que tem as melhores funcionalidades do
mercado, e que por alguma razão antropologicamente justificável faz aumentar o
status quo de quem o adquire, o seu fabricante apenas produz uma quantidade
limitada destes produtos, o seu valor dispara, o status quo que ele oferece dispara
também e os seus clientes, salivando e com os seus olhos raiados de sangue,
fazem acampamentos à porta dos revendedores para o adquirirem 30 segundos
depois do seu lançamento, custe o que custar, mesmo que nos meses vindouros
esses clientes não se alimentem devidamente. Já quando a procura de um produto
agrícola aumenta (por causa de um qualquer açambarcamento assustador) ou a sua
oferta diminui (por um período de seca prolongado, uma praga, um aumento
pornográfico dos preços dos combustíveis), quem sofre as consequências é por
norma o produtor. É ele que tem que encontrar soluções técnicas, atalhos
financeiros, prescindir muitas vezes da totalidade da sua margem de lucro e
tantas vezes não ter tempo para dormir, de modo a que os contratos com as
grandes superfícies sejam cumpridos, os seus clientes tenham alimentos frescos
nos seus frigoríficos e a sobrevivência da sua família seja garantida, ainda
que sem evolução na sua qualidade de vida. Ora… lá se foi o aspecto
supostamente “básico” pela janela fora. O negócio agrícola tem todos os
riscos de qualquer outro negócio, mais todos os outros riscos: riscos
económicos e financeiros, mas também riscos climatéricos, biológicos,
genéticos, entre tantos outros.
E quando o produtor não tem
capacidade de fazer frente ao problema que põe em risco o fornecimento dos seus
produtos a todos nós, é aí que ela, a agricultura, deixa de ser dada como
adquirida. Quanto mais debilitada é a agricultura numa região, país ou
continente, mais frágil e incapaz de responder a situações de emergência ela se
torna. Terei oportunidade de em próximas oportunidades ir mais a fundo nesta
temática, mas vejamos a quantidade de pessoas que neste momento têm dificuldade
em adquirir alimentos, por dificuldades de locomoção, por dificuldades financeiras,
por impedimento devido a este estado de emergência, e a quantidade de
produtores que pelas mesmas razões e por razões crónicas têm dificuldade em
escoar os seus produtos. Simplesmente não faz sentido. E por regra, são os
consumidores com menor capacidade financeira, e os produtores com menor
capacidade financeira, que têm maiores dificuldades, o que nos diz que este é
um problema do sistema, da forma como as relações comerciais estão
estabelecidas.
Bem sei que estamos inseridos num
paradigma de mercado único, mas como o nome indica, o mercado tem de ser único,
e, portanto, todos terão de estar incluídos. Assim como se vão criando formas
originais de ajudar as pessoas mais fragilizadas neste momento de tão grande
dificuldade a nível do consumo de bens de primeira necessidade, também se
deveriam criar, não subsídios, não injecções de capital, mas vectores
prioritários de escoamento de produtos nacionais que estão, neste momento em
que estás a ler esta crónica, a criar situações tão angustiantes para produtores
com os seus armazéns, arcas frigoríficas ou estábulos cheios, como a angústia
de tantos portugueses terem neste momento o frigorífico vazio.
Não é mais importante cumprir as
directrizes europeias sobre o mercado de produtos agrícolas, do que é tratar
todos os cidadãos portugueses como iguais, sejam eles consumidores, ou sejam
eles produtores agrícolas, sendo a esmagadora maioria dos mesmos que passam
sérias dificuldades, dos poucos agentes económicos do interior do país que fixa
pessoas, que atrai pessoas, ainda que cada vez mais este interior esteja… do
avesso.»
João Miguel Fareleira Simão Gomes
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