sexta-feira, 20 de julho de 2012
ECOS DE GUERRA- O QUE OS OLHOS NÃO ALCANÇAM MAS A ALMA SENTE
...- Tu foste combatente?
- Em França, na Flandres.
- Tu António, tu és sobrevivente da batalha de La Lys?
- Assim é senhor padre. A muito custo, como o demonstra o meu rosto, mas aqui estou mais rijo do que nunca.
- Porque razão não te tens dado a conhecer?
- Estive entre a vida e a morte. Durante a batalha fui duramente castigado pelas armas alemãs. Desmaiei. Quando recuperei os sentidos estava-se no fim da tarde. Encontrava-me rodeado de cadáveres, uma visão horrível senhor padre. Os campos alagados da Flandres eram um perder de vista de gente morta. O cheiro a podre enchia-me as narinas. Levantei-me como pude. Tinha um golpe profundo no rosto. Eu era uma pasta de sangue. A baioneta que me feriu o rosto e me cegou uma vista, estava junto a mim, manchada com o meu sangue. O seu dono também, um alemão jovem. Que Deus tenha a sua alma em descanso, que ele foi um desgraçado tal qual eu. Não conseguia falar, não sentia o meu rosto. Comecei a caminhar. Muito dificilmente me distanciei daquele cemitério a campo aberto. Estava vivo, era um milagre. Vivo, mas vivo para quê?
- Não digas isso homem. Não sejas mal agradecido. Deus devolveu-te a vida. Deves estar grato e vivê-la o melhor que puderes e souberes.
- Senhor padre, eu sei o modo de viver uma vida melhor do que esta, só que não posso, porque a minha consciência não me deixa.
- A tua consciência? Mas que crime cometeste tu?
- Nenhum. Fui casado. A minha mulher julgou-me morto em França. No estado em que estou, não fui capaz de me chegar a ela. Se nem o Barreto Raposo me reconheceu, já o senhor padre pode fazer ideia de como estou desfigurado. E depois... sabe senhor padre... já não consigo ser homem. Entende-me senhor padre?
- Mas é claro António. E a Luísa não iria entender isso?
- Talvez entendesse, é mulher para isso. Mas eu iria andar desconfiado. Feio como estou, inútil como me sinto, casado com uma mulher bela como é a Luísa, mais tarde ou mais cedo eu próprio iria criar o meu inferno. Ela já se habituou à ideia da minha morte. Casou-se há poucos dias. Soube-o por uma conversa que ouvi a um dos da herdade, que foi ao Bombarral levar gado à feira, ao serviço do Barreto Raposo. Eu sabia que isso se estava a preparar. Mas saber a situação concretizada deu-me volta aos miolos. Eu ainda a amo senhor padre.
- Mas homem, ela não é viúva.
- É sim senhor padre. O António Avilar com quem ela se casou ficou em França. Este que está aqui na sua frente é uma sombra desfigurada. A guerra corrói todos os nervos a um homem. Transforma-o. Eu estou transformado de duas maneiras: no que se vê e naquilo que os olhos não alcançam mas a alma sente. Por isso resta-me acabar uma tarefa, de alguma maneira fazer pagar à origem do meu mal toda a desgraça para onde me empurrou.
- Quais são as tuas intenções?
- Essencialmente restituir a herdade aos pequenos.
- E depois?
- Depois irei por esse mundo fora. Nada tenho para oferecer à minha filha Rosa. Ela está bem. A mãe arranjou-lhe um padrasto rico. Também me sinto rico senhor padre. Todas as terras me servem de casa. Não é uma felicidade? - e dos olhos de António Avilar brotavam mais lágrimas...
(em continuação, pág. 100, ex. XXXIV)
in Quando Um Anjo Peca
Março/1998
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