terça-feira, 31 de julho de 2012

O SOLDADO DESCONHECIDO

...O padre José Soares pôs-lhe uma mão num dos ombros. Apertou forte. Ali estava um homem cuja sólida formação moral não lhe dava grandes alternativas. Fugir do seu passado era a solução. O padre estava profundamente perturbado.
- Que idade tens António?
- Tenho trinta e dois anos senhor padre.
- Mas tu ainda és um jovem. Desistes assim da vida?
- Desisto dos laços que me ligaram ao passado. Se eu surgisse agora, já pensou nas infelicidades que iria causar? E com que objectivo? O António Avilar de hoje não é bom marido para ninguém. Mundo senhor padre, mundo é do que eu preciso. Um casal de camponeses em França recolheu-me, salvou-me a vida. Talvez vá viver com eles.
- Sabias que há pouco tempo depositaram no Mosteiro da Batalha o corpo de um soldado português, morto em França? Chamaram-lhe “ O Soldado Desconhecido".
- Talvez seja o corpo do meu amigo " Rouxinol".
- De quem?
- Um companheiro da trincheira, que ao saltar o parapeito foi cortado ao meio por uma rajada de metralhadora. Sinto-me muito satisfeito com essa notícia. Isso prova que Portugal não esqueceu os seus mortos da guerra.
- Sabes António, nós os portugueses somos muito rezingões, mas temos uma grande alma. Não fossemos nós o povo que inventou o fado!! - o padre calou-se por uns instantes e depois disse - há muito tempo que eu não conversava assim tanto. Depois que o Vitorino foi morto, deixou de haver pessoas capazes de preencherem o seu lugar, até apareceres tu, não com esse ar de caminhante, mas como um verdadeiro homem, com todos os sentidos no lugar.
- Obrigado senhor padre. O senhor era muito amigo do senhor morgado, não era?
- Se eu era amigo? Nesta terra fui o seu protector, eu e o José Chambão. Com o desaparecimento deles e a minha falta de habilidade para tentar fazer algo a fim de alterar a situação, passei um bocado muito mau. Olhava para aquela pobre Lucinda e enchia-me de remorsos por não a ajudar a aliviar o desespero. O desaparecimento do pequeno Leandro quase a enlouqueceu. Ainda hoje veste de preto. Eu estive prestes a abandonar a vida eclesiástica. Mas a fé falou mais alto. Escrevi ao bispo, pedi licença por meio ano. Apresentei as minhas razões. Alfeizerão ficou sem pastor. Pouca falta fiz. Desde essa noite o tempo quase parou aqui. Com muita dificuldade todos nós temos recuperado do violentíssimo choque. Nesse meio ano, eu fiquei bem comigo mesmo. Fiz uma auto-avaliação. A minha vocação é fazer chegar a palavra de Deus aos homens. Caçar bandidos não faz parte das minhas aptidões. A rapidez de execução do assalto ultrapassou-me por completo. Restou-me a esperança de um dia Deus me enviar o modo pelo qual se chegasse à solução deste mistério de doze anos. E surgiste tu. Agora que tenho um aliado, um reforço de Deus e que sei quem é o autor daquela noite de amargura, estou disposto a ir ao limite das minhas forças e da minha consciência. Nos teus planos alguma vez contaste comigo?
- Não senhor padre, porque não o sabia tão envolvido com as gentes do solar.
- Pois agora que o já sabes, que pretendes tu fazer?
- Apenas tenho a certeza de que o Barreto Raposo terá de pagar pelo que fez ao senhor morgado e a mim. Ainda não pensei na melhor forma de actuar. Talvez o senhor padre me possa dar uma ajuda. Duas cabeças sempre pensam melhor do que uma só.
- Posso tentar António, mas gostaria que tudo fosse feito sem ser necessário recorrer à violência. O homem, miséria não trouxe. A herdade está mais produtiva do que nunca. E temos de pensar nos dois filhos que ele lá tem no Bombarral...
(em continuação, pág. 102, ex. XXXV)
in Quando Um Anjo Peca
Março/1998







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