...O
padre José Soares pôs-lhe uma mão num dos ombros. Apertou forte. Ali estava um
homem cuja sólida formação moral não lhe dava grandes alternativas. Fugir do
seu passado era a solução. O padre estava profundamente perturbado.
- Que idade
tens António?
- Tenho
trinta e dois anos senhor padre.
- Mas tu
ainda és um jovem. Desistes assim da vida?
- Desisto
dos laços que me ligaram ao passado. Se eu surgisse agora, já pensou nas
infelicidades que iria causar? E com que objectivo? O António Avilar de hoje
não é bom marido para ninguém. Mundo senhor padre, mundo é do que eu preciso.
Um casal de camponeses em França recolheu-me, salvou-me a vida. Talvez vá viver
com eles.
- Sabias
que há pouco tempo depositaram no Mosteiro da Batalha o corpo de um soldado
português, morto em França? Chamaram-lhe “ O Soldado Desconhecido".
- Talvez
seja o corpo do meu amigo " Rouxinol".
- De quem?
- Um
companheiro da trincheira, que ao saltar o parapeito foi cortado ao meio por
uma rajada de metralhadora. Sinto-me muito satisfeito com essa notícia. Isso
prova que Portugal não esqueceu os seus mortos da guerra.
- Sabes
António, nós os portugueses somos muito rezingões, mas temos uma grande alma.
Não fossemos nós o povo que inventou o fado!! - o padre calou-se por uns
instantes e depois disse - há muito tempo que eu não conversava assim tanto.
Depois que o Vitorino foi morto, deixou de haver pessoas capazes de preencherem
o seu lugar, até apareceres tu, não com esse ar de caminhante, mas como um
verdadeiro homem, com todos os sentidos no lugar.
- Obrigado
senhor padre. O senhor era muito amigo do senhor morgado, não era?
- Se eu era
amigo? Nesta terra fui o seu protector, eu e o José Chambão. Com o
desaparecimento deles e a minha falta de habilidade para tentar fazer algo a
fim de alterar a situação, passei um bocado muito mau. Olhava para aquela pobre
Lucinda e enchia-me de remorsos por não a ajudar a aliviar o desespero. O
desaparecimento do pequeno Leandro quase a enlouqueceu. Ainda hoje veste de
preto. Eu estive prestes a abandonar a vida eclesiástica. Mas a fé falou mais
alto. Escrevi ao bispo, pedi licença por meio ano. Apresentei as minhas razões.
Alfeizerão ficou sem pastor. Pouca falta fiz. Desde essa noite o tempo quase
parou aqui. Com muita dificuldade todos nós temos recuperado do violentíssimo
choque. Nesse meio ano, eu fiquei bem comigo mesmo. Fiz uma auto-avaliação. A
minha vocação é fazer chegar a palavra de Deus aos homens. Caçar bandidos não
faz parte das minhas aptidões. A rapidez de execução do assalto ultrapassou-me
por completo. Restou-me a esperança de um dia Deus me enviar o modo pelo qual
se chegasse à solução deste mistério de doze anos. E surgiste tu. Agora que
tenho um aliado, um reforço de Deus e que sei quem é o autor daquela noite de
amargura, estou disposto a ir ao limite das minhas forças e da minha consciência.
Nos teus planos alguma vez contaste comigo?
- Não
senhor padre, porque não o sabia tão envolvido com as gentes do solar.
- Pois
agora que o já sabes, que pretendes tu fazer?
- Apenas
tenho a certeza de que o Barreto Raposo terá de pagar pelo que fez ao senhor
morgado e a mim. Ainda não pensei na melhor forma de actuar. Talvez o senhor
padre me possa dar uma ajuda. Duas cabeças sempre pensam melhor do que uma só.
- Posso
tentar António, mas gostaria que tudo fosse feito sem ser necessário recorrer à
violência. O homem, miséria não trouxe. A herdade está mais produtiva do que
nunca. E temos de pensar nos dois filhos que ele lá tem no Bombarral...
(em continuação, pág. 102, ex. XXXV)
in Quando Um Anjo Peca
Março/1998
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