...Fiquei sem palavras. Nunca tinha
ouvido o meu pai falar assim. O meu pai era um doutor da vida. Fiquei orgulhoso
dele. O meu pai tinha razão no que dizia. Toda a vida se sentira humilhado pela
nobreza. Ao fazer de mim médico, não me fazia nobre, mas proporcionava-me os
requisitos para ser respeitado pelos nobres. O discurso do meu pai refreou os
meus ímpetos liberais, pois eu sabia que, muito embora o meu pai fosse um
convicto liberal, não que soubesse algo sobre a carta constitucional de 1822, mas
apenas porque aspirava a mais liberdade, a experiência da vida dizia-lhe que as
classes dominantes nunca iriam ser tão estúpidas, que se despojassem dos seus
direitos em prol do povo, pelo que, eu, que através da minha actividade clínica
poderia tirar proveitos dessas mesmas classes dominantes, deveria ser
suficientemente inteligente para, não deixando de ser liberal, ter consciência
de que a mudança politica que se operava no reino, estava a ser feita pela
própria classe dominante. O povo limitava-se a seguir os acontecimentos. Mas, e
se o povo resolvesse ser ele a tomar a rédea desses mesmos acontecimentos?
Olhei-me
ao espelho do consultório. Tinha um bom aspecto. As minhas espessas suíças até
ao meio das faces, faziam-me parecer mais velho, mas talvez isso fosse
conveniente. Acabei por seguir o conselho do meu pai e ataviei-me em condições.
Levei
hora e meia a percorrer a distância que separava Malhal de Sula da povoação do
Luso, onde o Conde de Cértima tinha construído a sua casa senhorial.
Eu,
viajando na minha charrete e o jovem criado, que se chamava Adelino, montado na
mula, lá fomos calcorreando os caminhos por entre espessos pinhais. O sol
abrasador de Agosto ensopava-nos em suor. Para tornar a viagem menos monótona,
fui conversando com o jovem criado, que me falou sobre o seu mundo: a casa onde
servia.
D. Rodrigo Corga tinha cerca de sessenta anos de idade, um
pouco mais velho do que o meu pai. Era viúvo e tinha dois filhos: a Senhora D.
Maria Clara Corga e o filho mais novo, o Senhor Pedro Corga. Na casa havia uma
governanta, a Maria do Carmo, que directamente planeava as tarefas de toda a
criadagem.
Eu, algumas vezes ouvira falar no Conde de Cértima, mas
desconhecia a existência dos seus filhos. Seriam pessoas para a minha idade,
certamente.
Decerto este Pedro Corga pouco sabia ler, ou não o saberia
mesmo. Mas tinha o futuro assegurado pelo título de nobreza que o seu pai
detinha. No seio do povo existiam poucos, mas já existiam alguns homens que
conheciam o poder das letras; no entanto, não era esse o facto que os impediria
de muito terem de batalhar na sua existência para darem alguma dignidade à sua
vida. Em contrapartida, os nobres, ignorantes que fossem, tinham como certa a
dignidade na vida, pelo simples facto de terem nascido nobres. Este era um dos
padrões do absolutismo, padrões esses que o liberalismo tentava contrariar. Eu
sabia que o meu pai dissera o que dissera não por convicção, antes por
precaução.
Finalmente o jovem criado apontou para o sítio onde se
localizava a residência do Conde de Cértima. Era uma enorme casa com três
fiadas de janelas, em arquitectura setecentista. Reparei que por cima da porta
principal existia um brasão de armas: na vertical uma espada, com a ponta
virada para cima, ladeada por uma oliveira. Em baixo, a toda a largura do
brasão, representava-se o que parecia ser um rio, alusão provável ao rio
Cértima, que banhava aquela zona. Nunca soube, nem me preocupei em saber, o
significado da espada e da oliveira...(em continuação, pág. 25- ex. XI)
in ALMA DE LIBERAL
Junho/2009
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