...O
mouro dirigia-se pé-ante-pé em direcção à porta, na esperança de poder ouvir
algo que lhe desvendasse a origem daquelas gargalhadas sem sentido. De repente,
foi surpreendido pelo aparecimento súbito da mulherzinha de preto. Saía de
casa. Era Lucinda e dizia:
- Por Deus
o meu menino está vivo. O meu Daniel tem de saber. Há doze an...
Lucinda
deu de caras com o mouro, que muito quieto a observava a cerca de meia dúzia de
metros.
- Que temos
aqui? - perguntou o mouro - uma mulher sempre tão deslavada, tão
“insonsa", e de repente pareces mais nova! Posso saber de onde te vem essa
alegria?
- Sua coisa
ruim - respondeu Lucinda com desprezo – vai-te daqui belzebu.
- Olha
mulher, se o teu "home” não te sabe pôr a direito, eu ponho - e ao dizer
isto avançou para Lucinda, quando de dentro da casa surgiu também o padre José
Soares.
- Que vais
tu fazer homem? - perguntou o padre. O mouro deteve o passo e disse:
- O padre
não a ouviu falar?
- Ouvi e
também te ouvi agora a ti. Não há um pouco mais de respeito por mim? O padre, o
padre! Não podias dobrar um pouco a língua?
- Não me
venha com " seremõezes", que eu não sou de missas. Esta estupor
mangou de mim e isso ninguém faz.
- Ela não
mangou de ti. Apenas disse que não gosta de ti.
- Não gosta
de mim? Alguma vez lhe fiz ma1?
- Nunca se
sabe. Quando um cristão não teme a Deus, os outros cristãos têm desconfianças
dele.
- E
vocemecê também não gosta de mim?
- Sabes, um
bom pastor tem de se preocupar com as ovelhas do seu rebanho. Se se preocupa
com as ovelhas de outros rebanhos com certeza que não dará a atenção que
deveria dar às suas.
- O padre
deve andar com as ideias trocadas. Põe-se-me a falar de ovelhas e pastores. A
que é que isso vem ao caso? Gosta de mim ou não?
- Se
passares a ir à missa hei-de te ver com outros olhos.
- Já
entendi. Pois fique-se lá com os seus santos. E tu fica a saber que havemos de
conversar.
- E que tem
vocemecê para conversar com a Lucinda? - perguntou uma voz vinda da retaguarda
do mouro. Este virou-se. Os seus olhos frios faiscavam de cólera. Não estavam
habituados a que o enfrentassem. Atrás de si encontrava-se o António Avilar.
- Olha,
olha, hoje até ao zarolho se lhe desenrolou a língua. Eu não quero que ali o
padre fique a pensar coisas ainda piores de mim. Mas estou com muita vontade em
te ir a esse focinho. Já te esqueceste de que sou o capataz?
António
Avilar muito serenamente respondeu:
- Não, mas
vocemecê ouviu-me dizer que o não era?
- Então e o
respeito que me deves? Se eu quiser desandas daqui enquanto o diabo esfrega um
olho.
- Espera aí
homem - interveio o padre José Soares - tu só o podes mandar embora se ele mostrar
não ter capacidades para desenvolver o seu trabalho.
- Ó padre
cale-se para aí que ninguém lhe pediu conselho. Já estou a ficar farto de o
ouvir a arengar...
- Ouça cá
seu capataz marroquino, não lhe admito que ofenda o senhor padre - disse
António Avilar com a voz carregada de raiva e as mãos crispadas à volta do cabo
da enxada que transportava.
- Ó zarolho
dum raio, mas quem és tu para me falares assim? Racho-te ao meio não tarda.
- Cuidado
senhor capataz, muito cuidado. Nem tudo o que se vê será o que parece.
Enquanto proferia aquelas palavras de
aviso, António Avilar levou a mão direita ao interior da jaqueta e com ela fez
vários movimentos na base do abdómen, na zona por onde passava o cinto que lhe
segurava as calças. O mouro seguiu com os olhos aquele movimento estranho da
mão direita do seu oponente. As palavras com sabor a ameaça ainda lhe feriam os
ouvidos. O ar determinado e sério de António Avilar fizera vacilar o mouro na
sua estúpida convicção de que era o dono e senhor de toda aquela gente. Os dois
homens, sem se movimentarem, fixavam-se, quais gladiadores em arena romana,
tentando adivinhar os pontos fracos um do outro. António Avilar sabia que o
maior ponto fraco do mouro era este estar convencido de que só tinha pontos
fortes...(em continuação, pág. 109, ex. XXXVIII)
in QUANDO UM ANJO PECA
Março/1998
Sem comentários:
Enviar um comentário