...Organizado
o grupo de ataque, todos desapareceram na imensidão do capim e da floresta. Na
picada ficaram cinquenta homens junto às viaturas e armamento pesado, que uma
vintena de metros antes da curva,
aguardavam o sinal de ataque. O silêncio humano era total. Apenas se
ouvia o diálogo da floresta. Aves e macacos tagarelavam animadamente na sua
linguagem feita de guinchos e grasnidos.
Os cem homens comandados pelo capitão
Rebelo avançavam divididos em secções de dez. Duas das secções eram comandadas
por dois alferes. As restantes oito eram lideradas por sargentos e furriéis.
Caminhavam muito lentamente, ligeiramente curvados, as g3 bem seguras nas mãos
suadas. O capim roçava-lhes os camuflados. Todos tinham os olhos postos num
ponto- o local onde o tronco fora derrubado. Embora o não vissem, todos
pressentiam a sua localização exacta.
À direita dos soldados estendia-se a
imensa floresta. Vigiavam a frente, a densidade do capim e também observavam as
copas das árvores. A sua comunicação era apenas gestual. De vez em quando
paravam e ajoelhavam-se para melhor se confundirem com a vegetação, e assim a
observação poder ser mais precisa.
Álvaro comandava a primeira secção. Ia
em permanente contacto visual com o comandante de companhia. Seguiam-no dez
homens, dez jovens rapazes, que tentavam disfarçar o medo que os consumia.
Pertenciam ao seu pelotão e tinham feito questão em o seguir naquela incursão
inesperada pela densidade da mata. Eram dez bons e dedicados amigos. Ali se
desenrolava um exemplo do que ele considerava ser o espírito militar, de mãos
dadas com a condição de se ser homem: a entre ajuda, a solidariedade, a amizade
que os unia e os fortalecia na luta contra a morte. Cem homens, cem famílias
que naquele preciso momento,
encontrando-se na Metrópole, ignoravam que os seus ente queridos
caminhavam engolidos pelo mato, as mentes vazias de tudo o que constituía a
vida, mentes prenhes apenas de instinto de sobrevivência.
Caminhavam havia duas horas, quando o
capitão Rebelo repentinamente se agachou e fez o gesto para todos se deitarem.
Seguidamente os homens, rastejando, se foram juntando, desenhando uma longa
fila. A cerca de cem metros à frente, lá se encontravam cinquenta rostos
negros, que escondidos na robustez do tronco caído, com as Kalachnikov e
algumas g3, aguardavam o aparecimento da companhia de tropas portuguesas.
Ignoravam por completo que grande parte dessa companhia se encontrava à sua
retaguarda, tendo-os bem na mira.
-
Alferes Santa Cruz, a sua previsão não podia ser mais
exacta- disse o capitão Rebelo, sorrindo.
-
Estou a ver que sim meu capitão. Mas não consigo
compreender como isto me aconteceu.
-
Olhe, eu também não percebo nem estou interessado em
perceber. Apenas me sinto grato a si por ter acontecido. Íamos levar uma
tareia...
Subitamente, os guerrilheiros negros
que se avistavam por entre o capim, começaram aos pulos, abandonaram as armas,
galgaram a espessura do tronco e bateram em retirada, correndo pela picada na
direcção do resto da companhia, que se encontrava para lá da curva, ao mesmo
tempo que se ouvia uma forte detonação. A mina anti carro, colocada na picada,
acabava de explodir.
Os soldados observavam a cena atónitos.
O capitão Rebelo ainda deitado de barriga para baixo, perguntava:
-
Mas que raio se está ali a passar? Isto è a guerra ou
um filme de desenhos animados?
-
Então meu capitão, não está contente? Sem disparar um
tiro desbaratou um grande grupo inimigo. Vai apreender armamento e se calhar
até fazer prisioneiros! Foi uma operação segura e nada dispendiosa- dizia o
alferes Mendes.
-
Alferes Mendes, tenha dó de mim- respondia o capitão-
nós não ganhámos nada. Não tivemos mérito nenhum nesta operação. O alferes
Santa Cruz deu em adivinho e os turras puseram-se a fugir sem sequer termos
disparado um tiro. Ao menos, com uns tiritos dados, talvez eu tivesse
trabalhado para uma medalhita ao peito, lá na Metrópole.
-
Meu capitão, não há baixas nem feridos. Isso não è o
bastante?- perguntou Álvaro.
-
Não houve guerra alferes Santa Cruz. E eu sou um
profissional da guerra. Bom, mas deixemos esta conversa. Para vocês, oficiais
milicianos, è muito difícil compreender a lógica da guerra. Mas vós sois bons
rapazes. E no fundo estou feliz por tudo ter acabado bem. Com tantos turras
aqui aglomerados, será muito improvável que tenha sido outro grupo e não este,
que há dias atacou o aquartelamento. Só não sei que raio hei-de eu escrever no
relatório da operação. Vamos para o Ninda fazer a celebração que eu prometi. A
ver vamos se o cozinheiro nos pode dar rancho melhorado.
Os homens abandonavam o local de onde
se preparavam para atacarem os guerrilheiros angolanos, quando Álvaro puxou o
braço do comandante de companhia e disse:
-
Meu capitão, olhe ali para a esquerda.
-
Para onde?
-
Ali- e Álvaro apontava- olhe ali três brancos.
A cerca de cem metros encontravam-se
três homens. Dois estavam vestidos de amarelo torrado e o terceiro de azul. Os
três tinham a cabeça coberta por farto cabelo extraordinariamente branco. O
capitão Rebelo, ao avistá-los, ficou momentaneamente imobilizado. Depois,
recompondo-se da surpresa gritou:
-
Hei, quem são vocês?
Como resposta, apenas o homem de azul
levantou a mão direita em jeito de saudação. Seguidamente os três homens
viraram costas e internaram-se na compactes da floresta.
-
Vamos atrás deles. Tinham ar de nórdicos. Tenho de
saber o que fazem aqui.
-
Meu capitão, foram eles que me avisaram da emboscada
que nos aguardava.
-
Foram eles? Como sabe você disso?
-
Disseram-mo agora.
-
Disseram-lhe? Mas eles estavam tão longe! E eu estou
junto a si e não ouvi nada.
-
Disseram-me telepaticamente- respondeu Álvaro.
O capitão olhou para o ar enquanto
mantinha as mãos na cintura.
-
Senhor alferes Santa Cruz, posso saber porque motivo
não foi essa mensagem transmitida à minha pessoa? Caramba, convenhamos, o
comandante de companhia ainda sou eu.
-
Não lhe sei responder a essa pergunta meu capitão.
Nunca senti nada disto.
-
E eles quem eram?
-
Também não sei meu capitão.
-
Porra, que você há pouco sabia tudo e agora não sabe
nada...(em continuação, pág. 80, ex. XXIII)
in VISITADOS
Novembro/1999
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