...Álvaro
encolhia os ombros e sorria. Todos se entreolharam e começaram a rir à
gargalhada.
-
Bom, vamos ter com a restante rapaziada. Deste dia
nunca mais me esqueço. Dentro de um caldeirão mágico alguém pôs uma floresta
densa, uma picada de fazer nervos, uma companhia de militares portugueses que
procuravam cruéis inimigos, um alferes bruxo, um capitão maluco, turras com
habilidades de saltarem troncos, darem guinchos e pinotes sem se lhes fazer
qualquer mal, e três russos...ou suecos...ou finlandeses... esse alguém mexeu a
mistura dentro do caldeirão mágico, e surgiu um gozo de um dia passado em
Angola, no maiombe guerrilheiro.
E abanando a cabeça, o capitão Rebelo
dirigiu-se para o outro grupo de combate, que ficara na picada aguardando,
enquanto era seguido por cem homens que muito desejavam que a guerra, que todas
as guerras tivessem sempre aquele desfecho. Ao passarem pelo tronco que
obstruía a picada pegaram nas armas abandonadas pelos guerrilheiros angolanos.
Muitas daquelas balas, ainda miraculosamente inseridas nos carregadores,
estavam destinadas a embeberem-se no sangue de muitos dos que agora as
transportavam. Que dia aquele! Que incrível história de guerra...que saudável
sopro de paz num cenário predestinado a colorir-se de vermelho, mas que por súbita
intervenção do inexplicável, e mau grado do seu cenógrafo, se pintara de verde
esperança.
Chegados à curva da picada, os cem
homens passaram por uma grande cratera feita pelo rebentamento da mina.
-
Havia de ser lindo- dizia o comandante de companhia enquanto
mentalmente media a dimensão dos efeitos destrutivos, ao inspeccionar tão
grande buraco.
Todos os olhares se voltaram para o
local onde estivera armadilhada a mina. Impressionados por aquela visão, os
soldados quase que podiam sentir, arrepiados, a deslocação do ar provocada pelo
violento rebentamento e as centenas de estilhaços buscarem avidamente os seus
corpos. Para alguns teria sido uma prenda de Angola, uma lembrança para o resto
de suas vidas, ou o final das suas vidas numa lembrança sem memória.
Na curva aguardavam-nos aqueles que
tinham ficado na coluna. O alferes que ficara à frente do armamento pesado,
dirigiu-se ao capitão Rebelo dizendo:
-
Meu capitão, isto è um milagre. Numa zona operacional
como è esta, capturarmos cinquenta turras desta maneira tão pacífica... eu nem
sei o que dizer.
-
Nem eu nosso alferes, nem eu. Na guerra não è assim
que acontecem as coisas. Até tenho receio de levantar suspeitas no Quartel
General. Onde estão os turras?
-
Estão ali deitados no chão- indicava o alferes.
Toda a companhia avançou. Na picada,
junto aos carros militares, encontravam-se os cinquenta negros deitados de
barriga para baixo, com as mãos atadas atrás das costas, formando uma comprida
fila, guardados pelos soldados portugueses, que de pé lhes apontavam os tapa
chamas das g3.
-
Há algum que fale português de gente? Sabe-se porque è
que fugiram sem mais nem p’ra quê?- perguntava o capitão Rebelo.
-
Nós vimo-los a correrem em nossa direcção- explicava o
alferes de armas pesadas- logo lhes apontámos as armas. Eles caíram aqui de
joelhos sem oferecerem resistência. Depois eu fiz algumas perguntas e houve um,
que fala um português comestível, que disse quando se encontravam atrás do
tronco, começaram todos a ouvir uma voz que não sabiam de onde vinha, que lhes
falava em dialecto Nhemba, e que lhes dizia que os portugas sabiam que eles
estavam ali e que se não fugissem iam ser todos mortos. Logo a seguir surgiu um
sol no meio das árvores...
-
Isto anda tudo doido- interrompeu o capitão Rebelo-
nós estávamos atrás deles e não vimos nem ouvimos nada.
-
E de dentro do sol apareceram três brancos com roupas
esquisitas. Eles entraram em pânico e fugiram- concluiu o alferes.
-
Você disse três brancos?- questionou o comandante de
companhia.
-
Sim meu capitão, foi o que eles disseram, três
brancos.
-
Alferes Santa Cruz, você que falou com eles, o que me
tem a dizer a isto?
-
Meu capitão, eu não falei com eles. Apenas recebi
mensagens telepáticas. E não sei o que diga. Percebo tanto isto como o meu
capitão. Agora, que a mensagem que recebi se mostrou completamente verdadeira,
disso não há dúvida nenhuma. E com certeza que...sejam lá eles quem forem, são
indiscutivelmente nossos aliados.
-
Pois, e eu capitão do exército português, se digo ao
Marcelo Caetano que, se tive êxito numa missão de reconhecimento, devo-o ao
apoio de aliados desconhecidos e praticamente invisíveis, sou dado como
imbecil, alienado, incompatível com a função, e adeus carreira.
-
Meu capitão- disse Álvaro- o senhor tem cento e
cinquenta testemunhas. Dessas, cem viram efectivamente três homens brancos
vestidos de uma forma...diferente. Se houve loucura, ela foi colectiva mas
perfeitamente justificada. Haverá em qualquer parte do mundo um momento de
guerra mais pacificador do que este? Capturarem-se cinquenta elementos ao
inimigo sem se verter uma pinga de sangue?
-
Você tem razão alferes Santa Cruz. Eu estou como o
pobre que desconfia da esmola, quando ela è muita. O governo quer resultados e
aqui esses resultados existem. Mas só por isso me posso sentir um pouco
confiante, porque em relação ás minhas testemunhas que poderiam confirmar o meu
depoimento, não se iluda nosso alferes. Para aqueles senhores ministros, a raia
miúda nada sabe dizer, nada sabe ver. Mas fiquemos por aqui, porque já estou a
dizer o que não devia. Bom, meus senhores, vamos para o Ninda. Com tanto turra
aqui connosco è improvável que existam mais nas imediações. Tenho um longo
relatório à minha frente...(em continuação, pág. 84, ex. XXIV)
in VISITADOS
Novembro/1999
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