...No 61 da
Rua Frei Tomé de Jesus o silêncio imperava. Catarina encontrava-se no seu
quarto, embrenhada na fabulosa e sedutora imaginação de um autor desconhecido,
que fosse quem fosse, escrevera o livro « Contacto ». Ela lia deitada na cama,
bem aconchegada pelo calor macio dos cobertores, caricia muito ansiada num
Novembro muito frio.
Era Sábado à noite. Só ela estava em
casa. Os pais tinham ido passar a noite a uma quintarola de pessoas amigas, nos
arredores de Coimbra, lá para os lados de S. Martinho do Bispo. Claro está que
a tinham convidado, mas não, aquela pequena quinta não a seduzia em nada. No
seu quarto, no seu pequeno grande mundo, sentia-se muito feliz. Ali residiam as
suas tristezas, as suas alegrias, os seus gostos e desgostos, as suas certezas
e incertezas, os seus pensamentos sérios, os seus devaneios, o amor de Álvaro
expresso nas cartas escritas por ele, que ali no seu quarto guardava. Havia
quatro dias que não recebia nem uma letrinha dele. Como isso a fazia sentir-se
vazia! Decerto que tivera qualquer coisa para fazer, que o obrigava a
afastar-se de uma folha de papel. Como estava a ser tola! Era claro que ele não
estava em Angola para escrever cartas, mas... que malvadez o Estado fazia aos
casais apaixonados, quando arrancava os
namorados dos braços um do outro e os afastavam por distâncias inimagináveis,
durante eternidades, que os angustiavam, desgastavam e envelheciam. Catarina
tomou uma expressão de preocupação. Seria possível que Álvaro viesse mais
velho? Bem, mais velho viria! Devia
também vir mais tisnado, bronzeado pelo sol africano. Mas vinha mais maduro,
mais homem. Deus permitisse que não viesse transformado num durão, como já
ouvira muitas histórias de rapazes, que após cumprirem o serviço militar no
Ultramar, vinham metamorfoseados em pessoas de coração frio, sem sentimentos de
ternura, sempre prontos para uma boa briga. Mas não, com Álvaro tinha a certeza
de que nada disso se iria passar, porque ele tinha a capacidade natural de
conjugar harmoniosamente o verdadeiro homem que havia em si, com a delicadeza
de espirito, a sensibilidade às coisas belas, o saber dar e receber amor.
O livro mantinha-o aberto, virado com
as páginas para baixo, poisado no ventre. A mente divagara um pouco, sinal de
que o cansaço e o sono reclamavam aquele momento. Pegou no livro de capa preta
e leu de novo as últimas linhas da penúltima página a que chegara. Era a página
80.- « ...anómala fonte rádio
intermitente em ascensão recta 18h 34m, declinação mais 38 graus 41 minutos,
descoberta por exploração sistemática do céu pelo Argus... ». Sem dúvida o
projecto Argus detectara qualquer coisa no céu. O romance prometia. Olhando
para o relógio reparou que já passava da uma hora da manhã. Fechou o livro,
tendo o cuidado de colocar o marcador de papel amarelo na página 80, e poisou-o
na mesinha de cabeceira. Seguidamente embrenhou-se no calor dos cobertores,
deixou que toda a cama a envolvesse, apagou a luz e imperceptivelmente começou
a escorregar para o mundo dos sonhos, o mundo onde muito se faz sem que disso
se tenha consciência...(em continuação, pág. 86- ex. XXVI)
in Visitados
Novembro/1999
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