...Américo
Afonso, ao ver as lágrimas romperem dos olhos do vigário de Alfeizerão, ficou
constrangido, pelo que tentou dar a perceber que não vira tais lágrimas.
- Não é o
padre que chora senhor doutor. É o homem, o protector, quase o pai do infeliz
que escreveu estas linhas. Pobre do meu Vitorino. Quanto não terá sofrido ao
escrever estas palavras. Mas aqui está tudo explicado. Ele foi mesmo forçado a
escrever este documento.
- Eu também
estou convencido disso - disse finalmente Américo Afonso - mas qual a maneira
de provar a mentira?
- Senhor
doutor, o documento fala por si. Começa logo pela data. No dia quatro de
Outubro de 1910, dia anterior à implantação da república, eu almocei na herdade
e passei lá o resto da tarde. Não vi por ali ninguém estranho. Nos dias
seguintes ao cinco de Outubro fui à herdade e não notei nada de anormal. Aquela
data é terrivelmente intencional e traduz uma mensagem.
- E onde se
encontra essa mensagem para poder ser compreendida? - perguntou o advogado.
- É um
enigma, mas reparou no despropósito da alusão ao armário dos livros?
- Não me
passou despercebida.
- Pois é
senhor doutor, a data falseada e o armário bem que podem estar relacionados. É
bem possível que a mente humana, perante uma ameaça mortal, se torne arguta de
modo a desmistificar a mentira, caso essa mentira seja a razão do perigo.
- E que
hajam pessoas perspicazes, com capacidade para entenderem a mensagem - disse
Américo.
- Sim,
talvez, mas conhecendo o Vitorino como conheci, não é difícil detectar os
segredos que existem neste documento. Estou perfeitamente convencido de que
enquanto decorria a redacção deste texto, o Vitorino se deve ter apercebido de
que o Barreto Raposo não sabia ler.
- E ele não
sabe ler?- perguntou o advogado.
- Não.
- Já o
confrontou com alguma leitura?
- E é
preciso senhor doutor? Numa paróquia como é Alfeizerão, um padre conhece todas
as virtudes e defeitos, capacidades e inabilidades dos seus paroquianos. Repare
bem no texto. No fim foge por completo à intenção para que foi escrito. O
Vitorino escreveu aquelas palavras perfeitamente confiante de que o outro não
detectaria o engano. E pelos vistos não detectou.
- E o
funcionário da conservatória?- perguntou Américo Afonso.
- Esse já
estava bem comprado. Pouco ou nada se preocupou com o que estava escrito no
texto. Foi fazer uma escritura bem apressada, antes que o país voltasse à
normalidade.
- Que enorme
injustiça se vive nesta terra- disse Américo Afonso fixando a folha de papel
branca, finalmente se apercebendo da real dimensão daquela injustiça, já com
uma existência de doze enganosos anos.
- O senhor
doutor conseguiria defender a causa do Barreto Raposo?
- Não senhor padre. Para abraçar uma causa eu
tenho de ter fortes indícios de que defendo quem carece de justiça. O direito
está ao serviço dos homens, mas só pela razão eu me bato nas barras dos
tribunais. Mas diga-me senhor padre José Soares, vê no documento algo mais que
nos possa servir para defendermos a causa do pequeno... dos pequenos, dos
gémeos?
- Claro -
disse o padre peremptoriamente- o morgado chamava-se Vitorino de Lourena
Fernandes e não o nome que aí está escrito…(em continuação, ex. LV)
in Quando Um Anjo Peca
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