...Da
janela do seu quarto, Serôdio contemplava laconicamente a rua onde morava, uma
pequena viela que não lhe proporcionava grandes motivos de interesse. Por ali passavam
poucas pessoas, o movimento era mínimo. Mas fora naquela pequena casa que
crescera. Era a partir dali que iria dar o arranque para a sua vida, um futuro
que já fora mais promissor. Alguém forçara o seu destino a mudar de rumo. O
curso de medicina era agora um objectivo adiado, senão mesmo sem esperança de
ser alcançado. As lesões de que havia sido vítima eram afinal mais graves do
que se supusera. Tinha falta de equilíbrio, arrastava a perna direita, não
tinha coordenação de movimentos com a mão direita, pelo que o acto de escrever
era de momento algo impossível de fazer. Mas o mais grave de tudo residia no
facto de não conseguir reter a informação
que recebia através da leitura. Notara que ao ler um livro se encontrava
permanentemente perdido no enredo, pois conforme ia avançando na narração, ia
ao mesmo tempo esquecendo o que já lera. Se não conseguia assimilar a leitura
de entretenimento, o que não aconteceria com a leitura técnica! Teria com
certeza de recorrer aos bons serviços de um neurologista e fazer ginástica de
recuperação. E toda essa recuperação levaria quanto tempo? Sim, porque ele não
admitia que houvesse outro resultado que não fosse o ficar senhor de todas as
suas faculdades. Mas isso poderia levar meses... anos. E nem o tempo nem o seu
relógio biológico esperariam por ele.
Havia
uma semana que saíra do hospital. Sentia-se bem na sua pequena casa. Como filho
único que era, os pais tratavam-no com um carinho muito especial, pois ele era
um tesouro inestimável que por muito pouco eles não perderam. Já na sua casa,
D. Silvina o fora visitar. Levara também o Armando. As lágrimas que vira
aflorarem aos olhos do criado negro, tocaram-lhe fundo no coração, pois
demonstraram-lhe que naquele homem, nascido numa África distante, tinha um
amigo dedicado. D. Silvina oferecera-lhe um bom livro, para atenuar os momentos
de tédio. E foi ao ler esse livro que Serôdio se apercebeu daquela deficiência.
Ainda não dissera nada aos pais, mas tinha de o fazer.
Os
seus pensamentos, que na pacatez do seu quarto iam e vinham, como únicos
companheiros de um recolhimento forçado, foram interrompidos pela sua mãe, D.
Amélia, que lhe trazia o lanche, composto e apetecível num tabuleiro bem
recheado.
-
Em que pensavas filho?- perguntou a mãe enquanto
poisava o tabuleiro do lanche numa pequena mesa.
-
Pensava se algum dia conseguirei vir a ser aquilo que
quero.
-
E não hás-de conseguir porquê? Apenas tiveste uma
pequena paragem no teu percurso. Faz de conta que chumbaste um ano.
-
Mas não chumbei mãe. Sou um aluno que merece entrar na
faculdade. Revolta-me saber que por vontade de alguém, eu fui impossibilitado
de lá entrar. E mais revoltado fico por não me lembrar quem foi esse ordinário.
A policia não tem nenhuma pista?
-
Não filho. Falámos com um chefe, ou um comissário ou
lá o que è, mas... disse-nos que iam investigar. Não sei se investigaram ou
não, o que è certo è que até agora não obtivemos qualquer resposta. Mas não
admira, pois olhando para aqueles policias ficamos com a convicção de que com
aquele tipo de homens, a investigação não vai dar a lado nenhum.
-
Bem mãe, não vamos agora culpar quem não tem culpa
nenhuma. Mais do que saber o nome de quem me pôs neste estado, interessa-me
agora è curar-me. Eu estou pior do que aquilo que se possa pensar.
-
Estás pior filho? Que queres dizer?
-
Não consigo memorizar o que leio.
-
Não percebo Serôdio- exclamou D. Amélia.
-
Mãe, já li bastantes páginas do livro que a D. Silvina
me deu e se me perguntares qual o seu conteúdo, eu não te sei responder. È como
se nunca o tivesse aberto. Neste estado, como posso eu continuar a estudar?
-
O teu pai já sabe disso?
-
Não. Eu tenho-me andado a experimentar, mas agora
tenho a certeza.
-
Temos de ir ao médico.
-
Deus queira que o meu problema tenha resolução.
-
Com a ajuda de Deus, há-de ter filho...(em continuação, pág 59, ex. XVIII)
in FILHOS POBRES DA REVOLTA
Março/2003
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