Eu não podia acreditar no que aquele
mensageiro de má nova dissera. Por momentos quedei-me a olhar para o local por
onde aquela figura desaparecera.
- Ninguém liga ao que este Zé Corno
diz – disse o meu pai, vendo-me tão calado.
- Vossemecê tinha razão.
- Eu? Em quê?
- Quando disse que naquelas mortes
haviam vacas encoiradas. E muito mais encoiradas são elas do que se poderia
pensar.
- Pois tu acreditaste no que o maluco
disse?
- Meu pai, o que ele disse bate certo
com a forma como os corpos estavam. O homem estava morto ao pé da porta da
capela e a mulher estava mais à frente. E este punhal é uma prova importante.
- Esse punhal vai p’ró fogo já –
disse o meu pai.
- Desculpe meu pai, mas isso eu não
posso permitir – disse eu, agarrando no punhal.
- Tu queres-te pôr a perder, Joaquim?
- Não, meu pai, não quero. Mas neste
reino ainda tem de haver decência moral. Vossemecê tem razão quando diz que os
tempos não estão para festas. Eu tenho consciência disso; mas também sei que a
vida humana é valiosa. Se assim se não pensasse não estaria o reino preocupado
em fazer médicos. Eu não sou nobre, mas sou médico. E aos médicos é-lhes dado o
direito de protestar quando vidas humanas são ceifadas. É esse direito que eu
vou pôr em prática.
- E esse punhal? Que vais fazer dele?
- Este punhal é, provavelmente, uma
prova daquele crime. Cabe ao regedor avaliar se ele é mesmo uma prova.
- Queres dizer que vais entregar esse
punhal ao regedor?!
- Vou reflectir muito sobre isso. O
meu pai sente perfeitamente que este crime não pode passar assim sem que nada
se faça. O inglês contou-me o que viu porque se achou pequeno demais para
chegar à justiça e denunciar um fidalgo. O meu pai sabe-o tão bem quanto eu.
- Pois sei. Eu não sou doido! Mas
também sei que, embora os nobres andem à turra e à massa uns com os outros,
isso não quer dizer que acatem de boa mente um plebeu a acusar um deles de ser
matador. Não atires a tua profissão p’rá estrumeira por causa de quem morreu
que a ti não te é nada.
- Meu pai, não vamos estar com mais
delongas sobre isto. Eu compreendo o que sente. Esteja descansado que nem o meu
nome será manchado, nem a minha profissão será atirada à estrumeira.
- Mas p’ró que havia de dar ao
estupor do Zé Corno vir p’ra aqui com estas denúncias. Já é o bastante para me
tirar o sono, é o que é- dizia o meu pai, afastando-se.
O meu pai era um homem
extraordinário. Genuinamente do povo, soube interpretar muito bem todos os
regulamentos sociais do seu tempo. Tinha consciência de qual era o seu lugar
nessa sociedade. Por isso foi um homem extremamente cauteloso. Sabia que embora
o povo aspirasse o liberalismo, não fora o povo que criara esse novo conceito
que prometia mais justiça social. O meu pai queria viver numa sociedade mais
justa, mas não acreditava que fosse possível impor-se aos nobres o liberalismo,
obrigando-os a perder regalias em favor da plebe. O meu pai estava pronto a dar
a vida pelo liberalismo, desde que tivesse garantias de que o povo, realmente,
iria receber benefícios por isso.
E
por não lhe ter dado ouvidos, eu quase vi a minha profissão a ser atirada para
a estrumeira…(em continuação, ex. XXXI)
in Alma de Liberal
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