sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

DILEMA ENTRE O RISCO E A VERDADE


Eu não podia acreditar no que aquele mensageiro de má nova dissera. Por momentos quedei-me a olhar para o local por onde aquela figura desaparecera.

- Ninguém liga ao que este Zé Corno diz – disse o meu pai, vendo-me tão calado.

- Vossemecê tinha razão.

- Eu? Em quê?

- Quando disse que naquelas mortes haviam vacas encoiradas. E muito mais encoiradas são elas do que se poderia pensar.

- Pois tu acreditaste no que o maluco disse?

- Meu pai, o que ele disse bate certo com a forma como os corpos estavam. O homem estava morto ao pé da porta da capela e a mulher estava mais à frente. E este punhal é uma prova importante.

- Esse punhal vai p’ró fogo já – disse o meu pai.

- Desculpe meu pai, mas isso eu não posso permitir – disse eu, agarrando no punhal.

- Tu queres-te pôr a perder, Joaquim?

- Não, meu pai, não quero. Mas neste reino ainda tem de haver decência moral. Vossemecê tem razão quando diz que os tempos não estão para festas. Eu tenho consciência disso; mas também sei que a vida humana é valiosa. Se assim se não pensasse não estaria o reino preocupado em fazer médicos. Eu não sou nobre, mas sou médico. E aos médicos é-lhes dado o direito de protestar quando vidas humanas são ceifadas. É esse direito que eu vou pôr em prática.

- E esse punhal? Que vais fazer dele?

- Este punhal é, provavelmente, uma prova daquele crime. Cabe ao regedor avaliar se ele é mesmo uma prova.

- Queres dizer que vais entregar esse punhal ao regedor?!

- Vou reflectir muito sobre isso. O meu pai sente perfeitamente que este crime não pode passar assim sem que nada se faça. O inglês contou-me o que viu porque se achou pequeno demais para chegar à justiça e denunciar um fidalgo. O meu pai sabe-o tão bem quanto eu.

- Pois sei. Eu não sou doido! Mas também sei que, embora os nobres andem à turra e à massa uns com os outros, isso não quer dizer que acatem de boa mente um plebeu a acusar um deles de ser matador. Não atires a tua profissão p’rá estrumeira por causa de quem morreu que a ti não te é nada.

- Meu pai, não vamos estar com mais delongas sobre isto. Eu compreendo o que sente. Esteja descansado que nem o meu nome será manchado, nem a minha profissão será atirada à estrumeira.

- Mas p’ró que havia de dar ao estupor do Zé Corno vir p’ra aqui com estas denúncias. Já é o bastante para me tirar o sono, é o que é- dizia o meu pai, afastando-se. 
O meu pai era um homem extraordinário. Genuinamente do povo, soube interpretar muito bem todos os regulamentos sociais do seu tempo. Tinha consciência de qual era o seu lugar nessa sociedade. Por isso foi um homem extremamente cauteloso. Sabia que embora o povo aspirasse o liberalismo, não fora o povo que criara esse novo conceito que prometia mais justiça social. O meu pai queria viver numa sociedade mais justa, mas não acreditava que fosse possível impor-se aos nobres o liberalismo, obrigando-os a perder regalias em favor da plebe. O meu pai estava pronto a dar a vida pelo liberalismo, desde que tivesse garantias de que o povo, realmente, iria receber benefícios por isso.

         E por não lhe ter dado ouvidos, eu quase vi a minha profissão a ser atirada para a estrumeira…(em continuação, ex. XXXI)
in Alma de Liberal

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